Letícia Wierzchowski
Era uma vez uma mulher que foi perdendo os traços. Não a perda costumeira e cotidiana, o tenaz assalto que o tempo faz a qualquer das mulheres deste mundo, quando lhes avilta a vivacidade do sorriso, a curva exata do queixo, o leve e perfeito arco das maçãs do rosto. Os traços da mulher desta história perdiam-se por outros caminhos que não o da idade e, se lhe iam amansando os brilhos loucos do olhar e, se, paulatinamente, também os seus contornos iam enveredando pelo desfiladeiro sem fim da maturidade, outra e maior revolução a assaltava. Nos últimos tempos, ao olhar-se no espelho pela manhã, enquanto escovava os dentes ou aplicava um dos cremes contra o fatídico, ou penteava seus cabelos, por alguns instantes, seu reflexo se perdia no aço. Por uma fração de segundos, ao fitar a superfície do espelho, a mulher não se via. Cruelmente, estavam ali os mesmos móveis de sempre, eles sim refletidos como ontem e antes ainda, eles sim reproduzidos em arestas, cores e texturas exatas. Para eles, infalível o espelho; para ela, o nada. Assustou-a muito essa desaparição. Seus dedos num ato reflexivo correram para o rosto, como para certificarem-se que ainda o tinham ali: para quê servem dedos onde feições não há, para quê as mãos, os braços, o tronco encimando tudo isso se não há rosto, não há sorriso, não há olhar? Mas ali estava sim o rosto, o mesmo rosto que durante tantos anos ali estivera, com seus risos e suas lágrimas. Os dedos desabaram para seu posto, subitamente confusos: mentia o espelho ou mentiam os olhos? A mulher deixou de lado muitas e muitas vezes essas questões matinais sem ter coragem de dizer ao marido que não se via ao espelho. E havia dias, para seu grande alívio, em que seu reflexo vinha prestigiá-la como outrora. Assim viveu ela por muitos meses, imaginando-se adoentada de tudo, perscrutando em detalhes a sua rotina, o seu organismo, a sua alma. Sumia por quê, afinal? Certa noite, teve um sonho. Era uma geladeira em meio ao deserto. Sob o sol escaldante, fabricava seus pequenos invernos glaciais. Em volta de si, as criaturas morriam de calor, inundadas por tempestades interiores que iam pouco a pouco lhes roubando a vida. E ela ali, a pequena geladeira, quantos alívios tinha a oferecer, a água gelada, fresca, que consolo para os ardores, que lenitivo para a sede daqueles corpos cozidos por um sol imperioso. Mas não vinham até ela, essas pessoas, nenhuma ousava bolinar seu trinco, penetrar em seu oásis de frio, tirar dali um pouco daquele gelo que lhe sobrava. Assim ficou a geladeira, empedrando-se por dentro, enquanto a tantos poderia ser útil. Invernos desperdiçados no deserto daquele sonho. Nesse dia, a mulher despertou assustada e fria. Correu ao espelho e o que viu foi pouco mais do que a sombra dos seus cabelos, um sopro pálido de fios castanhos que roçavam o espelho como um adeus. Soube então que sumia. Assustada, pediu auxílio ao marido. - Que houve? - quis saber ele, ao ouvir o seu nome com tanta ânsia, e entrou no banheiro ainda de pijamas. - Você me vê? - perguntou ela, no mesmo instante. - Me vê como sempre me viu, olhos, cabelos, boca, nariz, pescoço, colo, pernas e tudo? - Dormiu bem? - o marido estranhou muito aquela angústia. - Fique calma, vejo você inteirinha. Olhos, cabelos, boca, nariz, pescoço, colo, pernas e tudo. Mas por quê? Ela correu de volta ao quarto e atirou-se na cama. A verdade insuportável ardia como um tapa. - Pois eu não me vejo - respondeu. - Sinto-me apenas, mas não vejo. Ainda ontem, via meus dedos, minhas pernas, meus braços. Faz tempo que não vejo meu rosto, mas o resto ainda via, até ontem. O marido era um sujeito calmo, desses que não se assustam por pouco. Sentou-se ao lado dela e, tomando-lhe a mão entre as suas, foi dizendo que tudo passaria logo, talvez fosse um problema de vista, apenas, ou, quem sabe, um distúrbio psicológico. Talvez devesse procurar um terapeuta. - Os outros a vêem, querida - disse o esposo, calmamente -, isso é o que importa. - E eu, nunca mais me verei? - seu medo era latente. - Será que um dia terei de ir em busca das minhas próprias fotografias para que eu me relembre? Será que me perderei para sempre no labirinto da memória? E, se os outros me vêem, mas eu não vejo a mim mesma, como hei de ter certeza de que de fato existo e que não sou apenas aquilo que eles querem ver em mim? O tempo urgia, de modo que o marido deixou-a com as suas dúvidas, prometendo voltar a vê-la na hora do almoço. Até lá, pensaria em algo. A mulher aquiesceu, pedindo apenas que ele a ajudasse a vestir-se, porque não enxergava os pés nem as pernas. Assim, com o auxílio dele, em pouco tempo estava pronta. Sozinha em casa, a mulher andou de peça em peça como numa procissão sem fiéis. Viu as coisas, uma a uma, em seus lugares, a cadeira de mogno, onde tantas vezes sentara-se para ler um livro, ali estava, perto da estante, com seu estofamento negro, de couro, a mesma cadeira de ontem, sólida, neutra; viu os quadros em suas paredes, coloridos uns, tristes e pálidos outros, mas sempre coloridos os que tinham cores e apagados os brumais, porque assim tinham nascido e assim haveriam de permanecer - eram os desígnios. Imutáveis quadros, coisas inanimadas, cuja certeza de existir era tão clara e tão sólida quanto a madeira que lhes dava sustento. Desejou então ser apenas uma mesa, um abajur, uma poltrona gasta pelo uso. Da sala, foi ao quarto, à cozinha e ao escritório, percorrendo canto por canto, coisa por coisa, caneta, tinteiro, caderno, almofada, janela, televisão, livro, chinelo. Cada um com a sua função - respeitados os graus de importância na hierarquia da casa, tudo ali era muito preciso. Um quadro só servia por seu prazer, pela beleza ou pelo sentimento que proporcionava, assim como um abridor de latas tinha a sua utilidade única, nem maior nem menor do que a de um quadro: impossível seria ver o pequeno e desengonçado utensílio pendurado na sala de estar, tanto quanto serviria o quadro para abrir uma lata de picles. - E eu? Essa pergunta a corroeu por muitos dias. Era uma vez uma escritora que sumia pouco a pouco, entre seus quadros, livros, canetas e abridores de lata. A cada nova manhã, enquanto escovava os dentes com pasta dental e angústia, via que um detalhe de si havia desaparecido. Não que os outros notassem, para os outros era ainda a mesma que sempre fora, mas dentro de si, no lugar ermo em que habitavam as suas histórias, alguma coisa mudara. Afastavam-se mais e mais os dois mundos, o real e o irreal, pairavam, paralelos e inalcançáveis como dois pássaros em seu vôo. Agora já não mais se buscava no espelho. Aprendera com os personagens que criador e criatura viviam juntos o mesmo drama. Eram cativos das histórias. Vivia por eles, como eles viviam por ela. Quanto menos lidas fossem as histórias, mais brumosos eles ficavam. No entanto, bastava um par de olhos e uma alma para ressuscitá-los de seu sarcófago de páginas, e tudo então adquiria a sua forma original: coisas, personagens e pessoas. Pois não era o faz-de-conta uma coisa que vivia dentro de cada um? Como um abridor de latas em sua gaveta, entre facas e colheres, somente salvo dali quando a urgência de um pote de ervilhas o chamava? Então existia por uns poucos instantes, era algo, vibrava, cumpria sua função. Depois, a gaveta, o escuro. Com o tempo, deixou de sofrer tanto por sua existência inquietante. Andava pela rua sem sentir-se, flanando feito uma folha no outono, volitando, a graça e a dor de ser nada misturavam-se em seu sangue. Todos a viam, mas os espelhos continuavam desertos. Pela manhã, ritual que se tornara amoroso, o marido a vestia e a relembrava: - Seus olhos são negros, sua pele é clara, seus cabelos são dourados. - E minhas mãos? - São graúdas, longas. Todo dia, reaprendia-se. Era como aquelas pessoas que lêem um livro e, no dia seguinte, para que se recordem da história, começam a leitura da página anterior à que haviam parado.
Letícia Wierzchowski é autora de A casa das sete mulheres (Editora Record)
|