Postado em 30/07/2021
A VIDA E OS PROJETOS MAGISTRAIS DE PAULO MENDES DA ROCHA
Uma praia urbana a ser erguida na Praça da República, tradicional endereço na região central de São Paulo. Essa foi uma das propostas para a capital paulista imaginadas, um dia, pelo arquiteto, urbanista e professor Paulo Mendes da Rocha. “Um trecho de Ipanema, digamos, com duas praias, dois solários (espaço para tomar sol) e com uma piscina no centro, do tamanho da praça”, detalhou o criador capixaba, em 2018, em depoimento por ocasião da mostra Ocupação Paulo Mendes da Rocha, do Itaú Cultural. Da mente ao traço, a carreira de um dos mais reverenciados nomes da arquitetura brasileira sempre esteve voltada a oferecer espaços para todos – e onde todos pudessem, sobretudo, interagir livremente.
“A visão de cidade de Paulo Mendes Rocha era fortemente baseada em criar condições de vida urbana intensa”, explica a professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Regina Meyer. “Assim, ele negava através de seus projetos as formas exacerbadas e crescentes de separação entre o espaço público e o privado. Criar e recriar continuidades dentro da cidade era um mantra.”
A docente acrescenta que o arquiteto, que seguia a vertente modernista, não era contra os meios contemporâneos de mobilidade, mas não apoiava a forma desgovernada como os carros invadiram as cidades. “O fundamental para ele era que os espaços urbanos permanecessem abertos, que oferecessem sempre caminhos franqueados aos pedestres”, reflete.
ESBOÇOS INICIAIS
Mendes da Rocha se formou em 1954, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e é parte da geração de modernistas influenciados pelo curitibano João Batista Vilanova Artigas (1915-1985), pilar da chamada Escola Paulista ou Brutalismo Paulista. No início dos anos 1960, atuou como assistente de Artigas no Departamento de Projetos da FAU, a convite do mentor. Àquela altura, o promissor arquiteto já havia assinado o projeto do ginásio do Club Athletico Paulistano, com o então sócio, João Eduardo de Gennaro (1928-2013), e se destacava pelo desenho apurado, pela ênfase nas soluções estruturais de grande porte, pelo marcante emprego do concreto armado e pelo uso de materiais em estado bruto.
A trajetória na FAU seria interrompida de maneira precoce, em 1969, quando foi cassado, com outros 65 professores da universidade, após a publicação do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Voltou à sala de aula em 1980, com a anistia política, na condição de auxiliar de ensino. Permaneceu na função até 1998, quando se tornou professor titular, ano em que também foi aposentado compulsoriamente, aos 70 anos. O arquiteto retornou à instituição, nos anos seguintes, como professor convidado das disciplinas de projeto de edificações, na maioria das vezes como ministrante de prestigiadas aulas inaugurais. Em 2010, recebeu o título de professor emérito.
INTERVIR NA CIDADE
Com a redemocratização, Paulo Mendes da Rocha viveu uma nova etapa de reconhecimento público de sua obra, com projetos como o Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), finalizado em 1995, e a reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo (leia boxe Poesia bruta), instalada no edifício neoclássico desenhado pelo engenheiro e arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928).
“Seus projetos arquitetônicos produzem efeitos positivos na cidade, em qualquer lugar onde estejam implantados. Os exemplos estão presentes na consideração ampla que ele fazia diante de cada um dos desafios que enfrentou ao implantar um novo edifício, como é o caso do Museu da Escultura, ou de refuncionalizar uma histórica edificação existente, como foram os casos da Pinacoteca do Estado e do mais recente, quase revolucionário, exemplo presente no Sesc 24 de Maio”, pontua Regina Meyer.
A capacidade de pensar a partir de novas perspectivas rendeu ao arquiteto reconhecimentos diversos, como o prêmio Pritzker, considerado o Nobel da arquitetura, em 2006. Foi o segundo brasileiro a receber a honraria – o primeiro foi Oscar Niemeyer, laureado em 1988. Rocha recebeu, ainda, o prêmio Mies van der Rohe para a América Latina, o Leão de Ouro da Bienal de Veneza e a Medalha de Ouro do Royal Institute of British Architects.
A FORMA E O VERBO
O professor livre-docente da FAU Rodrigo Queiroz lembra a vocação de Mendes da Rocha em sala de aula. “Para além do seu talento excepcional e da sua proficiência profissional, Mendes da Rocha foi um homem da palavra, exímio orador, um professor no seu melhor sentido”, relata. “As imagens construídas pelo seu discurso se equivalem à sua arquitetura. A mistura equilibrada entre indignação, senso de humor e carisma deu feição a uma visão de mundo que conquistou gerações e continuará conquistando.”
Queiroz comenta o lugar do discurso e do pensamento de Mendes da Rocha à luz do momento atual, considerando as novas modalidades de convivência e de troca de conhecimento advindas das transformações resultantes da pandemia, a partir de uma definição cunhada pelo próprio arquiteto, que morreu em 23 de maio, aos 92 anos, em decorrência de um câncer no pulmão: a arquitetura como amparo para a imprevisibilidade da vida. “De certa forma, as mudanças decorrentes da pandemia aceleraram nossa consciência acerca do caráter da arquitetura segundo Mendes da Rocha”, pontua o professor. “Esse amparo para a imprevisibilidade da vida consiste justamente na condição desejável da arquitetura de receber os mais diversos usos e se adaptar às mais variadas funções.”
UM LEGADO EMBLEMÁTICO ESPALHADO PELO MUNDO
Paulo Mendes da Rocha criou projetos que são lições para o urbanismo contemporâneo. Conheça as principais obras que têm a assinatura do arquiteto.
Ginásio do Club Athletico Paulistano (1961)
A quadra poliesportiva é sustentada por seis pilares, presos à marquise, proporcionando a impressão de flutuar. Na cobertura metálica, uma claraboia translúcida. O projeto recebeu o grande prêmio internacional de arquitetura na Bienal de São Paulo de 1961.
Rua Honduras, 1400, Jardim América, São Paulo (SP).
Estádio do Governo de Goiás – Serra Dourada (1975)
No interior, grandes vãos, vigas contínuas, planos de marquises e arquibancadas.
Avenida Fued José Sebba, 1170, Jardim Goiás, Goiânia (GO).
Capela de São Pedro Apóstolo (1988)
O vidro é o destaque da obra, cuja estrutura está apoiada em um pilar central, em concreto armado.
Rua Dr. Miguel de Campos Júnior, Jardim Dirce, Campos do Jordão (SP).
MuBE - Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (1995)
O prédio é reconhecido como um marco da arquitetura mundial, e conta também com jardim assinado por Roberto Burle Marx.
Rua Alemanha, 221, Jardim Europa, São Paulo (SP).
Centro Cultural da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) Ruth Cardoso (1998)
Um dos marcos da intervenção do arquiteto foi a recuperação da distância original entre o asfalto e a entrada principal do edifício.
Avenida Paulista, 1313, Cerqueira César, São Paulo (SP).
Pinacoteca do Estado de São Paulo (1998)
A reforma projetada por Paulo Mendes da Rocha cobriu os vazios internos do edifício com claraboias de aço e vidro laminado, e interligou os pátios laterais por meio de passarelas metálicas.
Praça da Luz, 2, Luz, São Paulo (SP).
Marquise da Praça do Patriarca – Entrada e saída da Galeria Prestes Maia (2002)
Provavelmente o mais controverso dos projetos de Mendes da Rocha. Composto por um átrio metálico, com 40 metros de vão, onde antes havia um terminal de ônibus.
Praça do Patriarca, s/n, Sé, São Paulo (SP).
Estação da Luz – Museu da Língua Portuguesa (2006)
O projeto arquitetônico do museu interativo é assinado por Paulo e Pedro Mendes da Rocha, pai e filho. O museu foi reconstruído depois de ser atingido por um incêndio em 2015 e reaberto ao público em 2021.
Praça da Luz, s/n, Luz, São Paulo (SP).
MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal (2010)
Reúne grande acervo sobre mineração e metalurgia, temas profundamente ligados à história do Estado de Minas Gerais. Possui volumes envidraçados e blocos em forma de U, para melhor circulação interna.
Praça da Liberdade, s/n, Funcionários, Belo Horizonte (MG).
Museu Nacional dos Coches (2015)
O projeto é composto por um pavilhão principal, nave suspensa para abrigar exposições e um anexo. Rampas permitem a passagem pública dos pedestres.
Praça Afonso de Albuquerque, 1300-004, Lisboa, Portugal.
Sesc 24 de Maio (2017)
Construída aproveitando a estrutura do antigo prédio-sede das lojas Mesbla, a unidade possui 13 andares, dois subsolos, térreo com área para circulação e, na cobertura, uma piscina de 625 m² (leia boxe A última das obras-primas).
Rua 24 de Maio, 109, República, São Paulo (SP).
A FACETA CENÓGRAFO DE UM GÊNIO DO TRAÇO
Paulo Mendes da Rocha projetou sete cenários para teatro e ópera. Trabalhos que evocavam uma ambiência como linguagem e revelavam sua profunda interpretação e reflexão crítica em relação a cada uma das narrativas textuais apresentadas nos espetáculos, como explica a arquiteta e urbanista Fernanda Ferreira, autora de dissertação sobre a vertente cenográfica na obra de Mendes da Rocha.
“Dessa relação entre arquitetura e teatro criaram-se, sobretudo, cenários móveis, com forte carga humana e antropológica, fundamentados em um discurso que buscava interpretar o mundo e propor formas amparadas nos mais diversos territórios de conhecimento”, diz a pesquisadora.
O arquiteto assinou quatro trabalhos em parceria com a diretora paulistana Bia Lessa: Sour Angélica (em 1990, 1992 e 1995), Futebol e O Homem sem Qualidades (1994) e Grande Sertão: Veredas (2017). Projetou, ainda, a cenografia das óperas de Giacomo Puccini (1858-1924) Il Tabarro, sob direção de Jorge Takla (1992 e 1995), e Gianni Schicchi, com direção de Gabriel Vilella (1992) e Hamilton Vaz Pereira (1995). A Ópera dos 500 Anos, dirigida por Naum Alves de Souza (1992), também possui cenários de sua autoria.
SESC 24 DE MAIO SINTETIZA BUSCA POR ARQUITETURA SOCIAL QUE PERMEOU TRAJETÓRIA DO MESTRE
No centro histórico de São Paulo está ancorando um dos projetos em que melhor se manifestam o raciocínio, a filosofia e a técnica de Paulo Mendes da Rocha. O Sesc 24 de Maio, inaugurado em agosto de 2017, após uma reforma iniciada oito anos antes, é resultado da colaboração do criador com o escritório MMBB, formado pelos arquitetos Marta Moreira e Milton Braga. “O projeto arquitetônico propõe uma dinâmica de permeabilidade com a metrópole, o prédio é repleto de vãos, de espaços vazados que trazem a cidade para dentro: os andares foram concebidos como um conjunto de 13 praças sobrepostas”, informa Thiago Freire, gerente adjunto da unidade.
“As rampas que interligam os pavimentos se oferecem como uma extensão da rua. O térreo é basicamente uma galeria que permite a travessia entre a Rua 24 de Maio e a Rua Dom José de Barros, a exemplo de tantas outras historicamente existentes nos arredores: uma área privada que se transforma em espaço público, de passagem e de permanência”, destaca Freire. As entradas distribuídas em diversos pontos do piso térreo reforçam a relação entre o contexto urbano e o edifício.
O Sesc adquiriu o prédio da antiga Mesbla assim que a loja encerrou suas atividades, entre 1999 e 2000. “Naquele momento, a aquisição foi vista como a oportunidade de instalar uma unidade de grande porte, capaz de receber e desenvolver todos os programas da instituição e de atender ao volume de pessoas que frequentam e trabalham na região central”, comenta o gerente adjunto.
Durante a pandemia, a unidade está oferecendo os seus serviços de maneira limitada, a exemplo das outras unidades do Sesc no Estado de São Paulo e sempre de acordo com todas as normas sanitárias e os protocolos de segurança. Para conhecer os serviços atualmente disponíveis, acesse: sescsp.org.br/24demaio.