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Cultura
Cultos e populares

Postado em 01/08/2002

Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, professora titular de Literatura e Civilização Brasileira na Universidade de Paris X, fala sobre o surgimento do Movimento Armorial trinta anos atrás

Movimento Armorial é um movimento cultural e artístico que nasceu oficialmente há pouco mais de trinta anos. Ele conheceu uma vida brilhante e atribulada e pareceu sumir no início dos anos de 1980, mas continuou sua vida subterrânea e discreta para reaparecer mais criador e vivo do que nunca na última década.
Podemos dizer que a reaparição deu-se com um público mais amplo, redescobrindo, por exemplo, o teatro de Ariano Suassuna por outras vias, como a televisão e o cinema; assistindo aos espetáculos de Antonio Nóbrega; rindo com o humor e a malandragem de Tonheta; vendo os quadros de Dantas Suassuna e ouvindo as músicas de Antonio José Madureira.
Em 18 de outubro de 1970, uma orquestra recém-criada, a Orquestra Armorial, realizava um concerto na Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife. Paralelamente, acontecia uma exposição de artes plásticas. Ambas as manifestações tinham sido organizadas pelo Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. No texto do programa, seu diretor, Ariano Suassuna, revelava oficialmente ao público a existência do Movimento Armorial.
No ano seguinte, com a segunda exposição e outra formação orquestral - o Quinteto Armorial -, apresentavam-se também as mesmas características. A partir dessa data, em 1971, o Movimento Armorial passava a existir em grande número de publicações e concertos, exposições e representações de artistas que reclamavam ser do movimento.

A criação e o espaço
Os artistas armoriais mantêm uma ligação muito forte com o Nordeste. Todos, ou quase todos, nasceram no que Suassuna chama de “coração do Nordeste”, ou seja, nos estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Todos mantiveram em sua infância, e às vezes ao longo de sua vida, um contato estreito com o mundo rural e com suas tradições. Todos, ou quase todos, estudaram em Recife, onde pro-duziram suas primeiras obras. E se viajaram, voltaram. A maioria deles continua vivendo e produzindo em Recife. Quem se transplantou para São Paulo, talvez viva até mais intensamente essa relação fundadora.
Apesar de originários de uma região geograficamente delimitada, e que se constitui abertamente em espaço privilegiado de criação, os artistas armoriais não são regionalistas, nem procuram ser realistas, uma das convicções quase que necessárias do regionalismo. Tanto para Ariano Suassuna como para João Guimarães Rosa, o sertão é o mundo, mas sua obra é o universo.
James Joyce também ancorou suas criações em Dublin. Quem pensa que a Dublin de Joyce é a capital da Irlanda, está errado. Law-rence Durrell contava com muito humor as peregrinações dos turistas ingleses que chegavam em Alexandria com O Quarteto de Alexandria na mão: “Pobrezinhos, nunca entenderam nada. Vão procurar a Alexandria da minha obra...”, desdenhava. Desse mesmo modo, quem quiser procurar as chaves da criação suassuniana nas ruas de uma cidadezinha do interior da Paraíba chamada Taperoá, arrisca-se a uma decepção.

Forma e conteúdo
O Movimento Armorial nasceu e desenvolveu-se numa demanda poética e artística apoiada no imaginário popular, usando livremente seu direito de transformar e criar, no riso e na dor, uma nova linguagem artística, uma nova arte brasileira. Nessa relação artística e no nascimento do movimento, no início, está Ariano Suassuna, e ele continua presente.
Canto improvisado, folheto, romance tradicional, danças populares, espetáculo de marionetes... O conjunto constituído pelas manifestações tradicionais, orais ou escritas, impõe-se através da obra inteira de Ariano Suassuna como objeto artístico. Parece fácil afirmá-lo, contudo se trata de uma ruptura radical com a perspectiva habitual. Essa objetivação conduz a uma reflexão estética nova - quando a arte popular não é mais considerada primitiva, documento sociológico ou produção de oprimidos, mas simplesmente arte cujo grau de elaboração e complexidade pode ser apreciado de modo autônomo, independente de qualquer hierarquia social dos valores estéticos.
Nessa perspectiva, a relação com a cultura oral e popular nordestina brasileira, em vez de limitar a arte armorial a um regionalismo, ou nacionalismo estreito, incentiva uma verdadeira viagem dentro das culturas brasileiras e universais.
A forma dos autos e a etnocenologia remetem para os instrumentos da catequese no período dito colonial, que por sua vez articulam-se com práticas medievais e tradições judaicas e árabes, com a herança do teatro espanhol do Século de Ouro. Não é “coisa de Nordeste”, mas remete para um universo cultural muito mais amplo.
No Nordeste, espaço onde se criou, segundo a fórmula particularmente feliz de Darcy Ribeiro, a matriz étnico-cultural original que garantiu ao longo dos últimos dois séculos a coerência da identidade brasileira, a transmissão oral funda uma “memória longa”, que ultrapassa os limites do tempo nacional.
Olhar armorial
Essa insistência sobre a multiplicidade e sobre a abertura cultural ganha hoje um sentido que não era o mesmo do início do Movimento Armorial. Agora, em tempos de globalização cultural, ela adquire uma significação de particular importância: precisamos ser diferentes para não desaparecer.
A referência à obra popular representa o cimento do Movimento Armorial, e, no meu entender, é sua peculiaridade na história da cultura brasileira. Mas evidentemente não é a referência exclusiva.
O Movimento Armorial não reúne artistas populares, mas artistas cultos que recorrem à obra popular como material a ser recriado e trabalhado. Essa dimensão culta, e às vezes erudita, manifesta-se tanto numa reflexão teórica que acompanha a prática de criação, como na multiplicidade das referências culturais.
Ariano Suassuna gosta de citar uma frase de Thomas Mann, que considero extremamente significativa da relação que um artista pode ter com um modelo ou com outro artista: “Ninguém pode adquirir o que não possuía ao nascer, nem desejar o que lhe é estranho”.
As referências culturais dos artistas devem ser vistas mais como confluência de interesses do que realmente como influências. É na medida em que tiveram objetivos ou caminhos comuns ou próximos dos artistas armoriais que Gil Vicente, Rabelais, Calderón de la Barca, Cervantes, José de Alencar, Euclides da Cunha ou Federico García Lorca foram identificados como os mestres dos artistas armoriais.
Uma grande coerência aparece na escolha, consciente ou não, dessas influências. Todos esses autores criaram uma obra em relação estreita com a cultura popular de seu país. A obra de um escritor letrado, ou declarado como tal, pode constituir, portanto, para quem o lê hoje, uma via de acesso segura à cultura oral de sua época.
A arte armorial não retrata nem ignora a realidade. Procura recriá-la poeticamente. “É um mundo de reis, cangaceiros, loucos, bispos, heróis, diabos, juízes de togas negras e vermelhas, dançarinos, palhaços, pícaros, valentões falsos e verdadeiros, com máscara de couro ou tatuada no rosto, de guerreiros brancos, negros, vermelhos e mestiços, de reis magos e pastores, onde se ouve a corneta do diabo, on-de brilha a estrela do Cristo, cachorro de Deus. Será um mundo apalhaçado, violento e que parecerá mesmo, aos olhos dos refinados, elementar, pouco interior e pouco profundo” (Ariano Suassuna).

Idelette Muzart participou do evento Lunário Perpétuo, em julho, no Sesc Pompéia.

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