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Terceira Idade
Para todas as idades

Postado em 01/08/2002

Uma cidade e suas histórias, contadas a partir da memória de atores da terceira idade, dão o tom do espetáculo Ouvindo Avós

Certo dia, fui a um restaurante em Santos e tinha lá um casal que eu não conhecia e que começou a acenar para mim. Pensei: ‘Mas o que será que estão querendo comigo?’. Eu nunca tinha ido àquele lugar antes. De repente, o rapaz se aproximou de mim e disse: ‘A senhora não é a mulher da vassoura na peça do Sesc?’. Eles me reconheceram, me abraçaram, foi incrível.”
Assim começa contando Maria Thereza sobre sua vida agora que virou atriz e tem um papel de destaque na mais nova produção teatral da programação de terceira idade do Sesc Santos, a peça Ouvindo avós. A ex-comerciária, que já está no teatro há dez anos e tem experiência de ou-tros trabalhos - realizados no Sesc, inclusive -, faz a impagável Dirce, uma empregada irreve-rente, despachada e, como todos os outros personagens, cheia de histórias. Na verdade, é disso que trata o espetáculo: uma caixinha de me-mórias de antigos moradores da cidade de Santos, contadas por personagens inspirados nos próprios atores e que carregam lembranças de momentos importantes da história brasileira, como o Golpe de 64 e a revolução de costumes nas décadas de 1960/70. Um misto de ficção e realidade. “Mas não é pelo fato de ser uma peça com um elenco todo de terceira idade que ela se destina somente a esse público”, alerta Maria Thereza. “É um espetáculo que contempla todas as faixas etárias.”
A palavra-chave usada por todos os envolvidos quando se referem ao projeto é a mesma: desafio. Tanto para o autor, Perito Monteiro, quanto para a diretora, Neyde Veneziano, e, principalmente, para todos os atores. “Quando fui convidada pelo Sesc, achei ótimo poder enfrentar isso”, conta Neyde. “De imediato, comecei a pensar como seria trabalhar com pessoas dessa faixa etária.” Nem Neyde nem Perito nunca tinham participado de um projeto como o atual, mas encontraram no grupo teatral de terceira idade do Sesc Santos um bom material de trabalho. “Para minha surpresa, vi que eles não estavam lá somente para passar o tempo, eles tinham, assim como eu, muito interesse no resultado.” O es-petáculo tomou forma com toda a equipe participando de sua concepção. Um trabalho de quase um ano que começou com aulas de história de teatro e técnicas de interpretação, passou por um momento de coleta de informações e relatos dos próprios atores - tudo aproveitado por Perito para a criação do texto e dos personagens - até a definição dos papéis e o início dos ensaios propriamente ditos. “Percebi que dava para trabalhar duro com eles”, continua a diretora. “Claro que respeitando os limites de cada um, de idade e de vida, afinal não se trata de pessoas com a disponibilidade de um ator profissional.”
Para aqueles que possam pensar que o principal entrave para um trabalho como esse seja a memória dos atores, ou melhor, a falta dela, vale registrar que em nenhum momento isso atrasou a produção. “Não foi difícil porque eles estavam bastante disponíveis pa-ra ensaiar. Chega determinado mo-mento em que surgem as dificuldades, mas nós temos os truques: parar, um contar a história do outro para desenvolver a atenção etc., o que acaba sen-do muito positivo para eles. Tem a ver com o exercício mesmo, que eles praticam bastante.”

Platéia e palco cheios
O autor Perito Monteiro teve a preo-cupação inicial de observar atentamente todos os atores do elenco durante a fase de exercícios e jogos dramáticos para perceber as potencialidades de cada um. Afinal, seriam vinte e quatro atores em cena, se alternando entre as falas e os números coreografados. “Minha preocupação ao escrever o texto era, além de amarrar a história toda, criar situações que permitissem que todos participassem do espetáculo”, conta. “Não há ninguém que não participe de alguma cena.”
Os papéis principais são quatro. No início do espetáculo, durante uma enorme comoção na cidade - por conta de um surto de mosquitos -, dois ho-mens, o patrão e seu empregado, refugiam-se na casa de uma rica senhora, que mora sozinha e tem uma empregada - a Dirce (Maria Thereza). “Quando não há conflito não há teatro”, retoma Perito. “Então há a empregada e a patroa, o subordinado e o patrão. Essas diferenças geram o conflito que carrega a história. A maneira que encontramos deles começarem seus relatos, co-meçarem a relembrar o passado, foi fechá-los numa casa, sendo que alguns nunca tinham se visto antes. Ali, naquela situação-limite, eles começam a falar do passado.” O que se segue, então, são lembranças dos “velhos tempos” na cidade de Santos. Algumas boas, outras tristes. Todas carregadas de muita emoção, sem, no entanto, escorregar para o exagero, uma preocupação da diretora. “Não existe uma receita”, explica Neyde. “Mas é preciso estudo e saber quais são as chaves do melodrama, da pieguice e da canastrice para não usá-las, como não usamos nesse espetáculo.” A diretora exemplifica contando que, no começo, os atores interpretavam seus papéis apegando-se a alguns clichês da atuação dramática, como tremer as mãos e a voz. Com o tempo, a direção foi “limpando” os gestos, até atingir a espontaneidade necessária. “Foi um trabalho para deixá-los ser mais autênticos e menos preo-cupados com a atuação, porque é assim que fica emocionante.”

Vera, José, Jorge e Dirce
Os atores escolhidos para os papéis principais são um capítulo à parte, a maioria deles tinha experiência em ou-tros trabalhos. Nelson Ballarini, Walter Techelsk, Júlia Kudlinski e Maria Thereza surpreendem pela força de suas performances, tirando da cabeça da platéia qualquer comparação com teatro ama-dor ou profissional. Trata-se, digamos, de um teatro real. “Quando fui convidado para fazer minha primeira peça, fiquei apavorado”, relembra Nelson, que faz o papel de José Aparecido. “A peça era A ópera do malandro, que durava quatro horas e eu era o ator principal.” Nelson conta que não se deixou intimidar pela responsabilidade. Decorou toda a obra de Chico Buarque, lustrou o bico do “pisante” e foi para o palco. “Consigo decorar facilmente as falas e pego as coisas rapidamente. Você tem de gostar de teatro. Não é qualquer pessoa que consegue. É preciso muita de-dicação.”
Nelson já participou também de alguns comerciais para tevê. A chance chegou quando um diretor viu um ví-deo dele em um concurso de dança. “Gostaram do visual, né?”, brinca Nel-son. “Daí comecei a fazer comer-ciais.” No teatro, o ator já participou, entre outros espetáculos, de Nossa história é assim, montagem com di-reção de Pamela Duncan, produzida pelo Sesc Santos.
Novata no teatro, mas já acostumada aos palcos pela formação em balé, a atriz Júlia Kudlinski (a personagem Vera Helena) conta que ficou surpresa quando foi escolhida para um dos papéis principais. Uma surpresa que logo se transformou em certa apreensão. “Eu adoro desafios, mas era a única que nunca tinha feito teatro antes. O meu receio era não corresponder à expectativa da diretora.” Mas o medo, por sua vez, não demorou muito a passar. “Com o domínio do personagem, já nos primeiros ensaios, fui percebendo que o levaria tranqüilamente até o final.” Júlia faz questão de explicar que parte do prazer foi descobrir potencialidades em si mesma que julgava esquecidas. Sentimento que ela chama de típico de uma “segunda adolescência”. “Na adolescência, começamos a delimitar o nosso espaço e descobrimos nossas potencialidades”, opina. “A terceira idade é outra fase da adolescência, na qual o indivíduo também as descobre. Eu me dediquei com muito prazer, é um trabalho duro e cansativo, mas muito prazeroso.”
Já a atriz Maria Thereza credita o sucesso de sua Dirce às características que a personagem tem em comum com ela. “Em uma cena ela fala ‘levei na bolsa todos os meus santinhos e até meu patuá’”, conta a atriz. “E eu, Maria Thereza, carrego para onde vou todos os meus santinhos também. Além disso, a Dirce é muito simples, como eu. Gosto das pessoas simples. Eu me dei muito bem com ela. Estou adorando.”
Não são apenas os atores que têm passagens de suas vidas em comum com as dos personagens do espetáculo. Em entrevista à Revista E, o autor Perito Monteiro “confessou” que um momento da vida do personagem José Aparecido aconteceu com ele próprio. Trata-se da passagem em que o personagem se recorda de que quando jovem chegou a se converter ao protestantismo. No entanto, certo dia, a caminho da igreja, não resistiu à “tentação”. Trocou o culto pelo baile e o pastor pela companhia dos amigos e da namorada. “Eu tinha quinze anos”, recorda Perito. “Meu avô era protestante e me levou para a igreja para fazer uma peça e comecei a freqüentar as missas, depois desisti e acabei indo rever os amigos num baile da cidade.”

Teatro-educação - Processo bom, resultado bom
É assim que Neyde Veneziano sintetiza o êxito de Ouvindo avós. Ela explica que o espetáculo não deve se inserir na categoria de teatro amador, da mesma forma que não poderia ser classificado como teatro profissional. “Trata-se de uma produção em teatro-educação, ou seja, formas de aproveitar o teatro enquanto processo para o bem-estar, o desenvolvimento e o crescimento do ser humano”, define em suas próprias palavras. O espetáculo ainda foi apresentado no Festival Internacional de Teatro, no Sesc São José do Rio Preto, e será encenado no teatro do Sesc Santos, no dia 28 de setembro, data em que se comemora o Dia Municipal do Idoso, em Santos, e dia seguinte ao Dia Nacional do Idoso.

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