A primeira intérprete de “Ronda” fala sobre cultura popular, a música caipira de São Paulo e Minas e a origem das duplas sertanejas
Inezita Barroso, a grande dama da música paulista, foi a primeira a gravar o samba “Ronda”, de Paulo Vanzolini, hoje um hino paulista e a música mais cantada em bares e boates da cidade. Nesta entrevista exclusiva, Inezita fala sobre sua convivência com Raul Torres, um dos mestres da música sertaneja, a importância musical de Mário de Andrade em sua obra e como os jesuítas espanhóis estão presentes na cultura musical de São Paulo. Para ela, globalização econômica, internet e cultura de massa não são componentes capazes de destruir a alma regional. “No fundo, a pessoa continua caipira”, diz Inezita, em seu apartamento no bairro paulistano de Santa Cecília, povoado por dezenas de vasos com plantas e centenas de livros.
Inezita Barroso é seu nome artístico, não? É o diminutivo de Inês. Meu nome é Inês Madalena Aranha de Lima. Barroso era o sobrenome do meu marido.
Você nasceu em São Paulo? Na Barra Funda. Morei lá até mais ou menos os doze anos, em seguida mudamos para Perdizes, que é um bairro que eu amo de paixão. Depois minha mãe e meu pai mudaram-se para Santa Cecília e acabei ficando aqui.
E quando veio a música? Você tem formação universitária em outra área? Eu fiz biblioteconomia. Tinha mania de livro, biblioteca etc.; adorava essas coisas desde criança. Com dez, onze anos, montei uma biblioteca em casa, na garagem. Era tudo muito bem organizado e eu emprestava livros para as crianças do bairro. Gosto muito de livros até hoje, na minha casa eles caem na cabeça das pessoas. Por isso fiz o curso e aproveitei para ler tudo o que podia sobre Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Jorge Amado e todos os regionais, de todos os cantos do Brasil. Participei da primeira turma de biblioteconomia da USP; ficávamos na praça da República. Agora a música, eu sempre estudei.
E a ligação com a cultura caipira? Meu pai foi colega de Raul Torres, que eu conheci ainda criança. Então, comecei a me apaixonar por música caipira. Além disso, meus tios tinham fazenda no interior e minhas férias eram sempre no campo. A viola foi a minha querida de infância. Eu tocava um pouquinho de violão, mas não quis perder aquela coisa linda da espontaneidade e do ritmo caipira. Sempre gostei de inovar na viola e no violão. Agora é que estão aparecendo violeiros que fazem arranjos de música para viola, isso é muito recente. São músicos como Roberto Correia e Ivan Vilela, muito competentes. Há duas vertentes: a parte pura, que seria caipira mesmo, ligada à terra, que é dos violeiros anteriores, do tempo de Raul Torres; e a parte mais erudita, formada por músicos que tocam por música e escrevem arranjos para viola. Tem uma leva boa de violeiros mais novos com o dom de gostar da viola caipira, de valo-rizá-la e de escrever peças lindas para o instrumento.
Você chegou a refazer, ou pelo menos a utilizar, o material que Mário de Andrade havia recolhido em suas viagens etnográficas? Não podemos nos desligar disso se quisermos entender a parte folclórica. Mário de Andrade foi, realmente, o maior. Ele fez um estudo abrangente do Brasil inteiro, não somente da sua região, por isso, ele é muito importante na cultura popular brasileira. Eu me animei bastante, li muita coisa dele, tudo o que pude enquanto fazia estágio de biblioteconomia. Minha tia foi aluna dele no conservatório de música e morava na rua Lopes Chaves, onde ele morou a vida inteira. Eu ia na casa dela à tarde para brincar com a molecada e ficava esperando ele chegar. Ficava abobada olhando para ele, mas acho que ele nem prestava atenção, devia nos ver apenas como um bando de moleques barulhentos. Mas ele morreu cedo e não consegui conhecê-lo direito.
Quais são as diferenças entre as culturas musicais paulista e mineira? Na fronteira é igual. Considero a fronteira geográfica entre os dois estados uma piada, é só um riozinho. Outro exemplo é o Rio Grande do Sul com a parte uruguaia, o Mato Grosso com a paraguaia. Toca-se lindamente a harpa paraguaia em Mato Grosso e, por outro lado, os paraguaios aprenderam sanfona, que é nossa. A fronteira não existe, só muda um pouquinho o sotaque no caso de países diferentes. Mas São Paulo e Minas Gerais, além de terem a mesma língua, têm um sotaque muito parecido e as músicas também, conseqüentemente.
Podemos dizer que São Paulo possui uma cultura musical própria? Claro. Ela é muito forte, inclusive. João Pacífico é um dos expoentes, o próprio Raul Torres e muitas duplas, como Tonico e Tinoco. Eles são legitimamente paulistas, apesar de serem filhos de espanhóis. Embora se esteja escondendo um pouco as coisas. São Paulo ficou muito para trás. Não entendendo a nossa cultura, as pessoas pensaram que aqui só tinha estrangeiro. Italianos, espanhóis etc. Que nada. Eles é que assimilaram a nossa cultura.
Qual é a matéria-prima que resulta na cultura musical paulista? Os índios e os jesuítas, mais os espa-nhóis que os portugueses. O padre Anchieta era espanhol e no Pátio do Colégio ensinava-se espanhol às crianças. Como os estrangeiros encontraram um ambiente muito rico em crenças, histórias e música, eles resolveram aproveitar isso. O padre Anchieta escrevia peças de teatro para os índios representarem na língua deles. Toda semana eles apresentavam alguma peça no convento. E mesmo a viola, que entrou logo no começo.
Influência dos jesuítas? Sim. Eles apagaram um pouco da cultura indígena, afinal, era uma cultura pagã. Os jesuítas tentavam atraí-los com associações. No caso do ritual da lua, por exemplo, eles diziam que a lua era Nossa Senhora. Mas o índio acreditava só na hora, depois fazia o culto dele para a lua. Isso é bem brasileiro. Acender uma vela para cada santo. Mas muita coisa ficou. A mais forte é a cantoria em duas vozes da dupla caipira. O caipira é louco por dupla. Eu sou solista, o Sérgio Reis também, os caipiras aceitam e respeitam, mas o grande amor deles é pelas duas vozes.
E de onde surgiu essa história de dupla caipira? Do coral das igrejas jesuítas. Eles nunca tinham visto ninguém cantar junto porque a música indígena era uníssona. Dez, vinte índios cantando a mesma coisa. E eles ficaram loucos quando perceberam uma terça de diferença ou uma quinta. Os padres deixavam eles tomarem parte nas missas e foi assim que pegou essa história de duas vozes. Então, a dupla caipira seria descendente dos corais jesuítas. Sim. E no caso das duplas caipiras é ainda mais interessante porque o cantor que faz a segunda voz não sabe o que o outro vai cantar. Um começa e o outro segue. Até hoje é assim. Até pouquíssimo tempo não havia música caipira escrita em pauta. É uma coisa tão instintiva que qualquer um faz isso no interior.
Em termos de melodia, a nossa in-fluência é mais européia ou indígena? É misturada. A moda de viola, por exemplo, tem gente que não entende, acha chata e comprida. Se o tema é um crime, ele é contado em todos os detalhes. O que as pessoas não sabem é que as modas de viola vêm das famosas sabatinas que os jesuítas faziam com os índios. Se o índio queria contar que não sei quem matou uma onça, ele tinha de descrever o acontecido com todos os detalhes, desde que o fulano pôs a mão na espingarda até a onça estar morta, passando pelo achado da onça, a fuga dela e tudo mais que ele quiser colocar na história. Cantar dentro de um limite de tempo é fato que só aconteceu depois do disco, que tinha de ter faixas limitadas. Cururu, por exemplo, que é o nosso importantíssimo desafio caipira, ainda tem sede em Piracicaba, Tietê e Tatuí, com grandes cantadores. O cururu é um improviso cantado, muito difícil, que conta uma história. Então, se o cantador quiser cantar uma hora sem parar, ele pode. E a platéia fica ali, firme. Em geral, pelo assunto escolhido, rende uma hora tranqüilamente. Há outro cantador que faz a segunda voz, mas que não sabe a letra. Ele deduz o que o outro vai falar porque a rima é estabelecida.
E São Paulo não sabe de nada disso... Ficou um buracão em São Paulo de-vido a várias causas, políticas e de crendice. Essa história de caipira ser um mendigo infeliz. Caipira nunca foi mendigo. Até hoje, nas festas juninas das escolas, as professoras põem remendo na calça jeans dos alunos e isso não tem nada a ver. Além disso, ainda pintam o dente da criança de preto para ela ficar bem banguela, bem mendigão doente. O chapéu todo esfiapado... Isso não existe.
Mas isso não vem de Monteiro Lobato? Infelizmente. Foi um lapso. Ele foi contratado para fazer um anúncio de Biotônico Fontoura em almanaques distribuídos em farmácias - que, aliás, eram quadrinhos superinteressantes -, aquele coitadinho que sofria de amarelão, de maleita e andava descalço na terra, com bicho de pé, sem dente e preguiçoso. Coisa que não existe. E no anúncio o sujeito toma Biotônico Fontoura e fica lindo, de chapéu, dentadura e bota. É uma história antiga, mas que machucou muito o caipira. Até hoje, em algumas cidades você não pode dizer que fulano é caipira. Ribeirão Preto, por exemplo. Vá dizer que alguém lá é caipira. Eles até se dão o luxo de não gostar muito desse tipo de música, ainda mais quando você os chama de caipira. Campinas também é um pouco assim.
Voltando às modas, em termos de estrutura e métrica, qual o padrão paulista? Não tem padrão. No cururu é muito difícil, você pode começar com verso de doze, ou de sete, você tem uma música sua, que ninguém entende porque não tem letra, chamada baixão. A carreira do divino, por exemplo, é muito difícil porque tem de rimar tudo em “ino”. A mais fácil é a de São João. Quando eles não querem judiar, eles soltam essa, porque tem muita palavra que termina em “ão”. Existem várias carreiras. É tudo decidido na hora, inclusive o assunto.
Nos últimos dez anos, o interior de São Paulo se modernizou muito. Isso tem modificado a cultura caipira? São duas coisas distintas. Essa riqueza, esse progresso, esse avanço da cidade é algo externo. O amor, a cultura, a tradição e o respeito pelas coisas é interno. Ele pode até nem mostrar, ficar quieto, aprender a lidar com o computador, mas por dentro o caipira é diferente, ele é legítimo. Muitos jovens estão mostrando isso agora. Tem muita orquestra de viola aparecendo, muita criança querendo aprender a tocar esse instrumento. É algo que nasce com a pessoa e ela leva para a vida toda. Não ter vergonha disso é muito melhor. Porque daí ele diz: “eu sou violeiro com todo orgulho”. A pessoa pode ser rica, pé no chão, pobre, caipira ou não. Por exemplo, o pessoal que estuda agronomia em Piracicaba é todo assim. Eles vão para o exterior, brilham no mundo inteiro em suas carreiras, mas aqui no Brasil você fala em cururu, eles co-nhecem todos os famosos cururueiros. E sempre que podem, vão às competições.
Você acha que apesar dessa história toda de cultura de massa pela televisão, globalização etc., a cultura regional resiste? A prova disso é o meu programa. Está no ar há 22 anos e tem briga para entrar. O programa começa às três horas da tarde e o pessoal chega às nove horas da manhã e fica esperando, na chuva, no sol, no vento. No auditório, eles mostram muito respeito, é como se eles estivessem numa missa. É muito lindo. Quando eles gostam de alguma coisa não param mais de bater palma, alguns velhos sobem na cadeira.
Aproveitando essa sua memória fantástica, de quem é aquela música que fala do rio de Piracicaba? Ah, tem uma briga danada aí. Ela está assinada por Lourival dos Santos, que foi um grande compositor; por Piraci, de Piracicaba, e por Tião Carreiro. A história é a seguinte: Tião Carreiro era do sul de Minas e ouvia essa música na terra dele, somente este estribilho: “quando chegar as águas dos olhos de alguém que chora (...)”. Em Minas Gerais existe uma cidadezinha chamada Piracicaba. E essa música veio de lá. O rio de Piracicaba é o de lá e não o daqui. Tião trouxe essa música, Lourival achou bonita e quis aumentar. Todo mundo entrou na composição e ela estourou como “Rio de Piracicaba”, mas na verdade chama-se “Rio de lágrimas”. Você lançou “Ronda”, de Paulo Vanzolini, hoje o hino paulista. Paulo cantava “Ronda” e nós aprendemos com ele. Quando fui para o Rio de Janeiro gravar a “Moda da pinga”, gravei “Ronda”. Eu não estava nem acreditando, nem era profissional. Isso foi em 1953.
Era o seu primeiro compacto? Que nada. Era o meu primeiro 78 rotações, um discão preto, pesado, com duas músicas. Foi assim: Paulo também estava no Rio e ia voltar para São Paulo. Mas, como bom cientista, ele tinha ido num museu e estava voltando com umas caixas, estudava lá os bichos dele, tudo muito complicado. Ele perguntou se daríamos uma carona. Eu disse que tudo bem, mas que ele teria de esperar a gravação acabar. Daí, ele se sentou no estúdio com as caixinhas dele... Cantei a “Moda da pinga” com o Regional, não foi nem com a viola, porque no Rio, na época, viola era palavrão. Na verdade, era o que tinha restado do Regional do Canhoto, de Américo Jacomine. Eram só cobras: Chiquinho do Acordeon, Bola Sete no violão, Menezes; só gente boa. Eles perguntaram que música iria do outro lado do disco. Eu não sabia, estava tão abobalhada de ter gravado na RCA Victor que até esqueci que tinha o outro lado. Então Paulo sugeriu que eu gravasse o samba dele, “Ronda”. O diretor do estúdio perguntou o que iríamos gravar e eu disse que era um samba paulista. Rapaz, pra quê... O homem carregou o sotaque carioca e disse: “Samba paulista? Isso não existe!”. Deixou tudo de lado e foi embora. O Regional ficou paradão, tinha de acabar de gravar. Menezes me disse: “Pega o violão e toca ‘Ronda’”. Toquei e eles ficaram bestas e o Paulo todo feliz. Ensaiamos mais ou menos e gravamos. E está aí até hoje. “Ronda” é a música mais tocada à noite em boates.
E o que você acha de São Paulo ter essa música como hino? A avenida São João sempre foi a mais importante. O carnaval era lá, cansei de fazer cursos lá, os desfiles militares eram lá... Depois foi decaindo. Não tinha outro lugar para ser cantado em São Paulo, a não ser o rio Tietê, cantado por Mário na época em que era limpo e lindo.
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