Postado em 16/06/2021
Nena começa pelo sapateado conduzida pelo som abafado da velha caixa de som. Há uma arritmia no taque-toque-taque-toque sobre o chão. A irmã, Lê, não percebe, encantada com o galope de pés descalços. Transfigurada em mariposa, a mais velha desdenha a gravidade. É uma menina-vapor, uma visão-residual, um redemoinho de passos, uma possessa. A rasante dos braços rasga a paisagem do quarto fechado. Lê responde ao pouso das pernas com um percussionar de palmas. A saia de Nena flutua, vira mancha amarela no ar parado. Os contornos da pele entram em dissolubilidade.
Desde que a porta da casa se trancou para as duas e o ar lá fora ficou doente, a música dilata as horas da tarde. A caixa de som do computador grita. A cadência crescente às vezes arranca socos na parede fria lateral. Nada interrompe Nena. Ela até puxa Lê para uma tarantela e as duas se unem numa rotação sem previsão de fim. Os circuitos aceleram até os corpos implorarem pelo assoalho. Deitada, Lê assiste a um caleidoscópio de pés de cama, lençol amarelado, tinta acrílica descascada e cadeira. Quer esperar o canário em cativeiro do peito parar de se debater, mas Nena engancha seus braços com fúria. A música não tolera descansos e tocará enquanto as duas não puderem sair. Mamãe mandou. Ao tombar brusco de sua cabeça – o sinal – Nena guia Lê pelo punho até o quarto e coloca vídeos musicais para tocar no computador. Enquanto não houver escola aberta para onde ir e as salivas respingarem doença nos rostos, Nena terá de ser a condutora de espetáculos musicais para Lê até que os arredores alcançassem a inexistência. Mesmo assim, o braço de Nena estalou em tapas quando ela anunciou para a mãe que quando crescesse seria dançarina da noite. Que nem você.
A mãe grita em uma voz lixada pelo tabaco e machuca com as palmas quando Nena profetiza um futuro diferente do que ela quer, quando dobra a saia para encurtá-la, quando se esquece de vestir a máscara ou coça os olhos com os dedos sujos. Lê não apanha, porque tem a intocabilidade do ser ainda submerso na ignorância. Como os filhotes de animais pequenos. Nena não deslembra a pulsação imediata aos tapas, mas as canções são tão altas que comprimem as memórias o suficiente para a expansão da dança em um aquecimento alegre do corpo. Ela é feita de pernas, braços, gingado. Só estanca quando a porta é destrancada e elas sentem o cheiro de álcool gel desprender dos dedos da mãe. O barulho da tranca assusta Nena toda vez. É assim depois daquela tarde em que o homem escancarou a porta, olhou para as duas crianças, xingou a mãe delas e prometeu que avisaria a Vara da Infância. Apesar dele, a música continua a ser tocada todos os dias.
Nos dedos da mãe, além do álcool, repousa um baralho magro de cédulas. Suas pupilas estão engradecidas e um pouco mortas enquanto ela silencia a caixa de som.
__ Toma. Pede um lanche para vocês duas. – Nena obedece, consciente de que “vocês duas” é um código para “nós três”. A casa toda cheira a álcool gel como se a mãe tivesse depurado presenças em um ritual. Sentadas em volta da cozinha, aguardam o entregador. O olhar de Lê faísca uma satisfação pela casa retomada e pela dança. Ela desconhece a semântica das tardes no quarto. Só Nena tem idade para apalpar os significados subterrâneos e entender que a música começa quando a mãe atravessa o corredor seguida por passos de um estranho. E se repetirão assim enquanto não forem vacinadas. Quando o lanche chega e Lê o mastiga sem repulsa, Nena e a mãe se entreolham e suspiram alívios unidos por uma irmandade. Reconhecem no rosto pequeno e magro uma inocência ainda imaculada, apesar das tardes em que precisam ficar em casa e dos outros sons que a música engole.
É engraçado. Só depois de dois anos da mudança, Miriam, do 701, está íntima dos pormenores do apartamento. Contou quatro passos largos de um extremo ao outro do quarto e se reconciliou com o cômodo. Achou até espaçoso. Nenhuma das paredes é branca, como achava. A pintura é de um cinza esbranquiçado, mais escurecido nas bordas. As infiltrações no teto criam desenhos. Cavalos, uma manada deles. Miriam imagina mustangues e os vigia, noite após noite, porque não gosta mais de olhar para fora da janela e vigiar os outros enclausurados ou as fugas que ela, com suas comorbidades, não ousa dar. Também pegou pavor da televisão – quando menos espera, as mortes se infiltram no entretenimento de seus programas de variedade. Resta ouvir os vizinhos.
No 801, Durval risca elipses com as havaianas contra o piso laminado. Algo a mais do que a gravidade calca seus pés. Talvez devesse telefonar para a filha. É, palavras faladas são mais cálidas que escritas. O ruim é que, quando gritadas, ferventam. O ressentimento contorcia a metade superior da face sobre a máscara face quando as portas do elevador a esconderam. Durval sabe que não devia ter gritado. A filha quis ser gentil. Vigilante, até. Seu único mal foi não ter o perguntado se o expurgo era bem-vindo. Durval apalpa o celular, mas a laringe comprimida entrava a passagem das desculpas. Ainda não são sinceras. Quando voltou do hospital, o apartamento inteiro recendia a Pinho Bril, água sanitária, lavanda e amaciante. A filha o recepcionou com um sorriso triste e as mãos enrugadas de limpeza. A cabeça de Durval latejava. O cheiro da mulher tinha ido todo embora.
No apartamento ao lado, ninguém percebe o andar insistente de Durval. Lá, Glória se concentra no hidratante transportado de seus dedos para o pescoço de Gabi, onde o lenço com álcool deixou queimaduras. Sente o relevo das úlceras na digital. São secas como as que formavam em sua pele quando era pequena e a mãe amarrava nela fraldas alcoolizadas nas temporadas das doenças respiratórias, como naquele julho em que foi dama de honra e vomitou na festa. Gabi herdou a predisposição. Solta tosses entrecortadas pela respiração cansada, mas não resmunga. Que não seja nada, meu Deus! Se for só gripe, Glória não vai mais a festas. Não marca mais nenhum encontro enquanto esse caos durar. Se sair, vai só ao banco ou supermercado, porque aí não tem jeito. Vai ver o mundo da sacada e basta. A sacada é bonita com seus vasinhos – a atrai. Mas um choro de criança escala da calçada até o quarto, agourento. Glória fecha as portas de vidro corrediças.
Estendida na calçada, Madá sente a ferida latejar sob o peso dos dois corpos – o próprio e o da bicicleta. Os pais e a irmã são figuras embaçadas. Machucou? Levanta um pouco a perna assim, Madá. Olha, foi só um raspãozinho. Mas os gemidos diluem as vozes. Madá sabe que não é dor, nem susto que a faz chorar. Foi o pensamento. A provocação. Nasceu enquanto ela olhava as três figuras adiantadas pela rua, quando ela lutava para se equilibrar no banquinho e alcançar o guidão. Se não chegar até os três em dez segundos, todos vão morrer com a doença, sufocados. O pensamento havia se infiltrado outra vez. Um. Madá correu. Obedece às provocações sempre. Dois. Os desafios eram como as assombrações dos filmes. Três. É só obedecer, eles somem, sempre dá certo. Quatro. Madá prometeu que Sofia sobreviveria ao parto, se fosse capaz de subir as escadas em trinta segundos. Cinco. Ela conseguiu e a gata teve três filhotes. Seis. Todos sobreviveram, mas a mãe os doou. Sete. Madá não soube se foi o peso do corpo ou uma pedra solta no pavimento. A bicicleta tombou. Faltavam só três até dez, Madá pensa enquanto sente o gosto de sal marinho na máscara.
Depois que tudo acabar, um dia Olívia foge. Volta para o meio do mato, para perto de rio. Se deixarem, mora até em barraco. Cria raízes na margenzinha feito planta d’água. Da cidade não gosta, não, pra ser bem sincera. Américo é quem quis vir. Diz que ela estava de acordo, mas foi no peito dele que se plantou a vontade de deixar pra trás a chácara e se encarapitar em prédio. Não no dela. Lá, perto do rio, ninguém ficava doente assim, não. O ar era azul e verde. Aqui, Olívia aspirava é asfalto quente, mascava resto de gasolina, e agora nem isso, porque está sempre mascarada. Mora-se em casinhas pequenas, todas gêmeas, cúbicas, coladinhas que nem pombal. Não é à toa que se pega tanta doença.
Mesmo com a quarentena, a cidade rosna rosnados de motocicleta, racha de carro, tiro cortante. Nem durante a noite o sossego vem. Olívia quase morre de tanta barulheira. A ela, bastava a mansidão da água para serenar. Tacava é fogo no Clonazepam que a doutora insiste que tome. O rio é que acalma. Borbulha feito os risos dos meninos quando pequenos, nos tempos em que a família não cansava de dar braçada, de boiar. Até Américo gostava mais dela quando era mocinhazinha e vivia em chácara. Dizia que ela tinha os pés de nadadeira. Os meninos, miúdos, ainda eram três e nenhum deles carecia de ar. A família encharcava e o sol secava as roupas na caminhada até a casa. De noite, Américo dormia respirando seus cabelos com perfume de aguapé.
As paredes do mercadinho abafam as brisas. Olívia não respira bem com a máscara. Mas usa, ao contrário da freguesia que resmunga e esbraveja quando ela chama atenção. Os homens são brutos na cidade. Feliz ela era nos dias da pescaria. Era um pouco rã, sabe? Feita pra terra e pra água. Seu sangue pulsava no bambu da vara, bombeava a linha esticada, vibrava na ponta do anzol. Américo e ela eram pescadores dos bons. Enchiam isopor com a corvina, a tilápia, o porquinho. Até as crianças tinham jeito quando ajudavam. Américo achava pouco, mas ela lembra que vendia bem. Dava pra economizar pra época de defeso. E tinha o barco. As crianças gostavam tanto dele. A menina até mais que os outros dois. Tinha a gargalhada frouxa quando a gente cruzava o rio, era feita de um peito forte, um fôlego encorpado. Foi assim até a cidade esvaziar a menina.
Na televisão, os repórteres de olhos tristes diziam que só velho e doente morriam. A menina era novinha. Vinte e três anos. Tinha pernas e braços fortes. Trabalhadeira. Foi difícil segurar quando ela começou a arfar, se debater. Parecia querer rasgar o pescoço com a unha, criar guelras. As enfermeiras a contiveram e depois a menina ficou cheia de tubos. Olívia não viu com seus olhos, mas enxerga tudo com as palavras dos filhos.
Olívia falou e repete. Américo não ouve, não quer ir embora. Vive de cuidar do mercadinho, papear com a freguesia. Fidelizar, como Américo fala, numa mímica do que ouve na tevê. Diz que no abre-fecha do comércio precisa trabalhar é mais que nunca quando afrouxam o fechamento.
Se ele não vai, muito que bem, um dia Olívia não aguenta e some. São trinta e dois anos juntos, Olívia nem nega. É uma vida toda de dormir lado a lado. Américo virou seu pai, sua mãe, seu homem. Ela mal tinha peito quando ele a tirou pra dançar. Américo ainda não havia criado barba quando ela não aguentou e mordeu sua boca pela primeira vez. Viu as rugas romperem a pele dele e ele assistiu as dela. Foi junto com ele que fiz filhos. Três. Sobraram dois. A cidade e a doença cobraram o pedágio.
Deixa a menina descansar. É tudo que Américo diz. Olha pros vivos, mulher. Seus outros filhos estão na cidade. E tem eu aqui agora. Américo diz sem nem virar os olhos. Olívia também não o encara quando repete seus refrãos. Não sei tu, homem, mas eu sou toda sentença. Um dia tudo passa e eu vou pro meio do nada, volto pra perto de rio.
Para a escritora Rafaela Tavares, as narrativas são um dos eixos de sua existência e construção como ser humano, das primeiras escutas de histórias pronunciadas pelas bocas dos pais e avós até a essência da vida profissional. Nascida em Araçatuba, em 1987, ela é formada em jornalismo e como repórter teve sua primeira experiência de veicular histórias de vida. Da não ficção fez uma travessia para a ficção: é autora do livro de contos “Enterrando Gatos”, lançado pela Editora Patuá em 2019, e do romance “Peixes de Aquário”, selecionado pela Editora Urutau para publicação em 2021. O desenvolvimento e estudo de personagens como investigação das condições humanas é o que movimenta seu interesse pela literatura.
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