Postado em 30/05/2021
No percurso da vida do bailarino e coreógrafo Ismael Ivo, algumas cidades simbolizaram a mudança de direção: São Paulo, Nova York, Viena, Berlim e Veneza. Mas foi Salvador aquela que representou um antes e depois na carreira do paulistano de Vila Ema, Zona Leste, que morreu em 8 de abril, aos 66 anos, em decorrência da Covid-19. O Rito do Corpo em Lua era o solo que Ivo apresentava na capital baiana em 1983. Na plateia estava o lendário coreógrafo afro-americano Alvin Ailey, expoente da dança moderna. Impressionado com o magnetismo do performer que acabara de conhecer, Ailey, na mesma ocasião, ofereceu-lhe a chance de ser parte da prestigiosa Alvin Ailey American Dance Theatre.
“Alvin Ailey me viu e disse: ‘Você tem uma forma diferenciada de se mover. Onde você está aprendendo isso?’”, recordaria Ismael Ivo em 2017, em entrevista aos professores-pesquisadores Noel dos Santos Carvalho e Ana Cristina Ribeiro Silva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Eu respondi que era minha pesquisa, do meu próprio interesse. Ele, então, me convidou para ir a Nova York. Meu axé estava plantado na Bahia. É de lá que eu tinha de sair para o mundo.”
PRIMEIROS GIROS
Assim, aos 28 anos, o bailarino trilhou o caminho que o levou à consagração internacional como um dos maiores nomes da dança, fiel às raízes de um Brasil moderno, mas conectado com a arte universal. Antes de Nova York, porém, fez história com obras de assinatura própria, uma dança-teatro paulistana, segundo explica a ensaísta, curadora e gestora em dança Cássia Navas, que também atua como professora-pesquisadora da Unicamp. “Suas performances já traziam, de maneira contemporânea, a marca da ancestralidade, construída em uma família de matriarcas, mulheres trabalhadoras, que o criaram numa casa com quintal, com árvore, bacias de água e roupa para lavar”, conta.
Era nesse lar simples que, menino, dançava “girando e girando”, observado pela mãe, empregada doméstica, de quem sempre recebeu incentivo para ir em frente. Na juventude, deu início a uma ascensão artística memorável, quando estudou com a bailarina Ruth Rachou, compôs elencos com os diretores Takao Kusuno e José Possi Neto, fez parte do Teatro de Dança Galpão e integrou o grupo experimental de dança do Theatro Municipal de São Paulo, levado pelo coreógrafo Klauss Vianna.
Dos Estados Unidos partiu rumo a Viena, onde, em 1984, com o diretor artístico Karl Regensburger, fundou o ImPulsTanz, festival de dança que se tornou um dos maiores da Europa. O continente foi a sua base por mais de três décadas. “Sempre lotando temporadas e colocando a sua dança – e a dança do Brasil – no mapa da difusão mundial”, comenta Cássia Navas.
Estabeleceu-se em Berlim em 1985. Morando na capital alemã, consolidou parcerias artísticas com nomes como Pina Bausch, William Forsythe, Yoshi Oida, George Tabori, Heiner Müller, Ushio Amagatsu, Kazuo Ono e Marina Abramović. Com a bailarina brasileira Marcia Haydée, ícone do Stuttgart Ballet, protagonizou Tristão e Isolda, Aura e Wie Callas, entre os anos de 1999 e 2004. Ivo se referia ao período como “um encontro de almas”, tamanha foi a sintonia da dupla – àquela altura, duas divindades em cena.
NOVOS PERCURSOS
Outro ápice aconteceu ao lado de um dos nomes mais respeitados da dança-teatro alemã, o coreógrafo austríaco Johann Kresnik. Juntos, trabalharam nas aclamadas montagens de Bacon e Othello. Na Alemanha, foi também diretor do Teatro Nacional de Weimar, entre 1996 e 2000, o primeiro negro – e estrangeiro – a ocupar o cargo. A bem-sucedida experiência como gestor o levou a dirigir a seção de dança da Bienal de Veneza, de 2005 a 2012. Também desenvolveu exitoso projeto Biblioteca do Corpo, em que jovens artistas brasileiros partem para um intercâmbio internacional, em parceria com o Sesc São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura e a SP Escola de Teatro.
Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 10 de abril em homenagem ao coreógrafo, Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, lembrou da sua vertente de educador: “Ismael Ivo escolheu, também, a educação, formando jovens e espalhando pelo mundo corpos-dança diversos e singulares”, escreveu. O bailarino que um dia decidiu traçar o próprio trajeto artístico podia, agora, guiar os talentos que encontrava. “Quando todos os corpos-Ivo se entrecruzam, dá-se o fenômeno do agora: pura presença e duração”, destacou no texto.
PRESENÇA INSPIRADORA
Um desses expoentes é Rubens Oliveira, coreógrafo e diretor da Gumboot Dance, premiado em 2018 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) com o espetáculo Subterrâneo. Dois anos antes, Oliveira participou da residência artística do ImPulsTanz, em Viena. “Tive o prazer de ouvi-lo dizer, para um público de milhares de pessoas do mundo todo, o quão importante era se alimentar de arte. Ele conseguia nos deixar hipnotizados com sua força e fome de dança, de expressão”, lembra.
Memórias que se assemelham às do diretor alemão Ralf Schmerberg, que dirigiu Ismael Ivo na videoperformance I Had Too Much Coffee. No trabalho, de 2002, o bailarino dança sobre centenas de xícaras de café, ora vertendo o líquido pelo corpo, ora sorvendo-o. “Ele era um mestre em sua arte. Estar em sua presença já foi uma inspiração. Sua excelente compreensão de movimento era rara. Aprendi com ele que até um dedo do pé pode contar uma história”, rememora Schmerberg.
Apreço também presente entre importantes nomes da dança no país, como Henrique Rodovalho, coreógrafo e diretor artístico da Quasar Cia. de Dança. “Ismael Ivo conquistou o Brasil e o mundo com a sua pessoa e, sobretudo, com a sua arte. Conhecíamos e reverenciávamos a trajetória e trabalhos de cada um”, afirma Rodovalho.
PORTAS ABERTAS
Em 2017, o coreógrafo alterou de vez o seu percurso europeu, ao declinar o convite para assumir a Göteborg Opera, na Suécia. O destino o fez retornar ao Brasil para dirigir o Balé da Cidade de São Paulo – novamente, era o primeiro negro a ocupar tal cargo. Promoveu um impactante processo de democratização do acesso à dança, abrindo as portas do Theatro Municipal e integrando projetos sociais ao cotidiano da companhia. “Nossos alunos tiveram não só a oportunidade de assistir a espetáculos diversos, mas também de realizar apresentações artísticas no foyer”, conta Monica Tarragó, bailarina e diretora do Ballet Paraisópolis, do qual Ismael Ivo foi padrinho e conselheiro.
Como diretor do Balé da Cidade, olhou de perto como era composto o seu corpo de baile. O exercício o intrigou: quis mais diversidade. “No Brasil temos um histórico da dança cênica como uma herança europeia, e o quadro de bailarinos sempre é, em maioria ou totalidade, branca. O bailarino negro não era visto”, analisa a bailarina Grécia Catarina, uma das primeiras integrantes negras selecionadas para a companhia sob a gestão de Ivo.
O FUTURO SE MOVE
Para o coreógrafo, o momento que o Brasil vivia era de revisão, tanto no âmbito cultural quanto político. E ele queria estar perto, fazendo parte do que enxergava como um período de transformação social. Um dos amigos com os quais compartilhou planos foi o ator, diretor e dramaturgo Ivam Cabral, diretor executivo da SP Escola de Teatro. Até dias antes do falecimento do artista, ambos dividiam ideias sobre a SP Escola de Dança. “Seu projeto sonhado ao longo da vida inteira”, informa Cabral.
Ele se dedicava, também, ao conselho curador da Fundação Padre Anchieta, e atuava como assessor artístico da TV Cultura. “Ismael havia elencado o modelo pedagógico e sistemático do projeto da SP Escola de Teatro como referência para conduzir a SP Escola de Dança”, revela Cabral. A instituição será implantada em 2022, e se chamará SP Escola de Dança Ismael Ivo. Uma das formas pelas quais o bailarino seguirá dançando, infinitamente, pelas ruas da cidade que foi seu ponto de partida.
PRINCIPAIS PRODUÇÕES COM O COREÓGRAFO DISPONÍVEIS NA INTERNET
EcoMúsica Harpia (2018)
Com as cataratas do Iguaçu como pano de fundo, o pianista e compositor Fábio Caramuru interage com o bailarino Ismael Ivo ao longo do videoclipe. https://www.youtube.com/watch?v=wXAk8Up8Bj8
I had too much coffee (2002)
Videoperformance solo realizada pelo diretor Ralf Schmerberg. Na obra, Ivo dança sobre centenas de xícaras de café, em alusão à economia colonial brasileira no século 19. Filmado em Berlim. https://www.instagram.com/p/CN-65q8HaGd/
Portrait (2006)
Com direção de Lutz Gregor, vídeo mostra trechos de coreografias de Ismael Ivo em diferentes épocas. Trata-se do trailer de um filme sobre o artista, nunca concluído. https://www.youtube.com/watch?v=jYUBgTqMRqY
Tones on the Stones: Ismael Ivo in “Atlas” (2011)
Especial, dividido em duas partes, traz o registro de performance solo realizada na Itália. Exibe, ainda, uma entrevista com o coreógrafo, falada em italiano.
Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=PZNW05ynlO4
Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=dOVKcYh_6SU
O Rito de Ismael Ivo (2003)
Curta-metragem dirigido por Ari Cândido Fernandes. Reúne momentos coreográficos e reflexões do artista sobre a vida, religião e sua trajetória na dança. https://www.youtube.com/watch?v=PtO641ojr90
Figuras da Dança (2012)
Documentário, realizado pela São Paulo Companhia de Dança, conta a história do bailarino a partir de depoimentos diversos. https://www.youtube.com/watch?v=Huk8ulV9Ag4
A Biblioteca de Babel (2019)
Espetáculo, concebido por Ismael Ivo e Marcel Kaskeline, apresentado no Theatro Municipal pelo Balé da Cidade de São Paulo. https://www.youtube.com/watch?v=qimtUHWyB5w
PROGRAMAÇÕES DE DANÇA COM ISMAEL IVO NO SESCTV
"Vivemos na velocidade da comunicação por meio da internet. A dança contemporânea não só exercita uma linguagem estética, mas permite indagar quais tipos de vozes operam e quais transformações ocorrem no mundo”, disse um dos mais importantes bailarinos e coreógrafos do mundo em Depoimento publicado na Revista E, nº 172, de setembro de 2011. Uma década depois, a fala de Ismael Ivo descreve o presente: momento em que a dança se reinventa no ambiente virtual. O mesmo ambiente, inclusive, que permite ao público assistir a algumas obras do legado desse grande artista.
Confira uma programação especial em homenagem ao coreógrafo e bailarino Ismael Ivo exibida pelo SescTV:
Erêndira (2014)
O programa exibe coreografia da Biblioteca do Corpo, dirigida por Ismael Ivo, e inspirada na obra A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e da Sua Avó Desalmada, do colombiano Gabriel García Márquez, gravada no Sesc Pinheiros.
Logos Diálogos - Parte 3 (2014)
O programa apresenta espetáculos que dialogam com as Suítes V e VI de Johan Sebastian Bach, executadas pelo violoncelista Dimos Goudaroulis, com coreografia de Ismael Ivo.
Mapplethorpe (2005)
Espetáculo composto em tributo ao polêmico fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe (1946-1989).
Babilônia II Terzo Paradiso (2011)
Apresenta o espetáculo Babilônia: Il Terzo Paradiso, concebido e dirigido pelo bailarino e coreógrafo Ismael Ivo, com 25 bailarinos de diferentes nacionalidades. 12 anos.
Disponível gratuitamente – e sem necessidade de cadastro – na internet e em operadoras de TV por assinatura, em várias regiões do país, o SescTV pode ser assistido por meio de diversos suportes de mídia, incluindo a plataforma streaming on demand. Confira: www.sesctv.org.br.