Postado em 21/05/2021
Por Reinaldo Nascimento*
Quando pensamos numa casa, queremos sempre a imagem daquela casa acolhedora, aconchegante, com um quintal, flores, espaço, uma varanda, uma piscina, um cachorro, um gato e tantas outras coisas que nos lembram o sentir-se bem. O sentir-se no local onde eu posso, junto com a minha família, falar sobre todas as experiencias vividas no dia.
Mas, é claro, que nem todas as casas são assim. Muitas casas estão muito longe dessas imagens e desejos e, mesmo assim, não deixam de ser a casa onde milhões de crianças vivem. Muitos lares, infelizmente, não oferecem para as crianças a segurança mínima necessária para o seu desenvolvimento. Por outro lado, encontro famílias que não têm este aconchego e acolhimento físico, mas que oferecem um acolhimento e aconchego humano que supre todas estas necessidades.
Ainda quando educador de um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), pude visitar famílias que viviam com seus filhos à beira de um córrego poluído pelo esgoto, habitados por ratos e baratas e, mesmo assim, as crianças me recebiam com muita alegria, orgulho e sempre me mostravam seus brinquedos, seus espaços para o brincar, que, às vezes, era a cama que dividia com o irmão ou debaixo da mesa que se transformava numa casinha.
Foto: Arquivo pessoal
A realidade no Brasil, como em tantos outros países em que estive me mostrou que o brincar sempre está presente na vida das crianças. Eu via que era o brincar que ajudava as crianças a lidarem com tantas situações difíceis como não poder ir à escola, porque ainda não há escola no abrigo para os refugiados. Era no brincar que as crianças podiam expressar as suas angústias, tristezas, mas também a alegria de poder estar com a sua família.
O olhar para a criança e a importância do brincar está em constante transformação e discussão. O brincar sempre será importante na vida de uma criança. A criança que não brinca, normalmente, não está se sentindo bem. A criança pode até brincar de não querer brincar, mas o brincar na vida dela é uma expressão daquilo que ela vive no seu dia a dia, no seu interior.
Mesmo em locais violentos e de vulnerabilidade social extrema, onde milhões de crianças vivem, o brincar é, para muitas, a possibilidade de lidar com tudo isto. É, também, no brincar que muitas crianças podem ter a sensação de controle de seus impulsos, o que lhes permitem lidar com situações difíceis e ao mesmo tempo se permitir novas experiências.
O brincar é, sem dúvida, tão importante para as crianças como se alimentar e dormir. É preciso acolher as suas brincadeiras, entendê-las, apoiá-las, oferecer espaço e se alegrar com as suas descobertas.
Eu tive a imensa honra de participar de uma importante pesquisa sobre o brincar em tempos de Pandemia, ao lado de pessoas incríveis e que resultou no curta Brincar em Casa, Território do Brincar. E, durante a pesquisa, eu sempre me perguntava o motivo de tantas crianças brincarem de casinha numa época de pandemia, na qual elas já tinham que ficar em suas casas. Elas construíam casinhas, casarões, casas nas árvores, na lareira, debaixo da mesa e em tantos outros lugares.
Para muitas famílias, a pandemia ofereceu uma nova maneira de se olhar para as casas. E as crianças também passaram por isto. Elas não podiam mais ir à escola e a escola agora estava na casa delas, assim como as brincadeiras e atividades que eram feitas nas ruas, nos parques, precisaram ser adaptadas e serem realizadas dentro de casa. Muitas crianças passaram mais tempo com seus familiares. Para muitas, este tempo foi duro, desafiador, doloroso. Para outras, foi uma oportunidade de conhecer melhor os seus pais e mães e o que eles faziam lá fora, já que o trabalho começou a ser feito em casa. Lembro-me de crianças dizendo que brincavam de trabalhar com os pais de escritório e os pais brincando com elas de irem à escola ou de fazerem um piquenique na quarta-feira no meio da sala com direito a um pano para forrar o chão.
Foto: Arquivo pessoal
A Pedagogia de Emergência, durante as intervenções, tem como objetivo oferecer espaços seguros para que as crianças possam se expressar da maneira segura. Para isto, oferecemos um ritmo diário com muitas atividades que lhes permitam dissolver suas tensões e preocupações. Também sabemos da importância das relações seguras. A importância de poder confiar uns nos outros. As crianças não são obrigadas a falar, mas se precisarem, haverá alguém para escutá-la com empatia. Atividades que proporcionam a sensação de sucesso também são muito importantes. A realização de projetos, a construção e reconstrução dos espaços e dos materiais lhes permitem vivenciar novamente a certeza de que podem fazer parte deste processo.
É impressionante como muitas crianças querem brincar de casinha, de construir casinhas, de convidar todos para conhecerem suas casas. Elas desenham as suas casas destruídas e, com o passar dos dias, desenham as casas onde viviam e, logo em seguida, as casas que gostariam de ter. Uma casa mais linda que a outra. Percebi que em muitos casos, eram as crianças que queriam pintar as barracas onde viviam, deixá-las mais coloridas!
A pandemia nos permitiu vivenciar a importância do brincar, do contato com as outras pessoas. Em certo momento, nós entendemos a importância da educação remota, mas vimos que as crianças querem e precisam das outras crianças e isto de forma presencial.
Brincar de casinha é um patrimônio mundial da Infância e deveria ser sempre celebrado!
*Reinaldo Nascimento é terapeuta social, educador físico, psicopedagogo, pedagogo de emergência e pedagogo do trauma. Cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil. Membro e coordenador pedagógico das intervenções do time internacional. Esteve no Quênia, nas Filipinas, Líbano, Faixa de Gaza, Iraque, Nepal, França, Equador, México, EUA e Moçambique. No Brasil, esteve em Janaúba e em Brumadinho (Minas Gerais), em Boa Vista e Pacaraima (Roraima), onde trabalhou com professores refugiados da Venezuela. Reinaldo também trabalha na formação de educadores no Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru, Uruguay, Alemanha, Espanha e Portugal.