Postado em 01/11/1997
A imagem, que por vezes se aproxima do caos, não é exclusiva de São Paulo. Afinal, todas as megacidades do mundo sofrem, em menor ou maior escala, de trânsito entupido e poluição. O fato que choca na capital paulista é o descaso assustador assumido, por grande parte da população, no trato com o espaço em que vive.
Durante o percurso, mesmo sem deter muito o olhar, as atrocidades contra o patrimônio público assomam. E os desmazelos são cometidos por duas frentes. De um lado, estão os próprios habitantes e, de outro, a Administração Pública, representada pela seqüência de governos desleixados, independentemente de partido ou convicção.
É óbvio que não se pode exigir de uma cidade das dimensões de São Paulo assepsia total. Uma certa dose de bagunça e desordem é elemento inerente às grandes concentrações urbanas. Mas daí a imaginar que a sujeira foi causada por deliberado desrespeito, ultrapassa os limites do razoável.
O ilustre visitante, ao observar as cenas lastimáveis cometidas contra o espaço público, leva a mão ao queixo para refletir: "Por que será que os cidadãos dessa enorme cidade tratam-na tão mal?" Responder a essa dolorosa indagação remete à característica cultural do brasileiro, que tem seu reflexo em condutas muitas vezes reprováveis e incompreensíveis. É antagônico, mas alguns estragam aquilo que lhe pertence.
Império do Lixo
O ato de jogar papel nas ruas talvez seja o mais aparente sinal do descaso. É comum flagrarem-se momentos explícitos, quando objetos estranhos à cena urbana são atirados de janelas de carros e ônibus, emporcalhando os logradouros.
"Também, onde eu vou jogar o lixo?", retrucou um rapaz que acabara de prensar uma latinha de refrigerante junto ao meio-fio do Terminal Bandeira de Ônibus. A desculpa não deixa de ser verdadeira. As ruas da cidade ressentem a falta de cestas de lixo. Com um pouco de boa vontade, porém, contorna-se o incômodo. "Mesmo quando não há latas de lixos disponíveis, eu guardo os papéis na bolsa e os mais engordurados seguro na mão até achar um cesto", afirma Andrea Bussamra. "Às vezes eu só vou jogá-los fora em casa." O motivo de tanto zelo? "Passo mais tempo na rua do que em casa, por isso quero estar em um ambiente agradável", conclui.
Infelizmente não são todos os seus concidadãos que agem dessa forma e o lixo espalhado nas ruas acarreta problemas graves. Cálculos oficiais indicam que cada pessoa produz, em média, um quilo de lixo por dia. Nesse montante incluem-se restos orgânicos (como comida) e dejetos inorgânicos (plásticos, papéis, vidros etc.). Para escoar as cerca de 14 mil toneladas de lixo diárias, existem três aterros sanitários em funcionamento, duas usinas de compostagem (com capacidade de reaproveitar resíduos orgânicos) e dois incineradores.
O mundo moderno, no entanto, clama por uma solução mais sensata para o problema. No Brasil, o índice ainda elevado de natalidade aliado ao Plano Real elevou a quantidade de lixo produzida (pesquisa do Departamento de Limpeza Urbana de São Paulo registra aumento de 26% na quantidade recolhida em 1995). Em outros países, a alternativa escolhida é a de reciclagem. Mas, por aqui, essa política implica gastos maiores aos cofres públicos, além de potenciais confrontos com empresas especializadas na construção de aterros e recolhimento do lixo dito comum nas ruas.
São Paulo conta com algumas firmas especializadas na coleta seletiva e no reaproveitamento de materiais. Em comparação ao total, a quantidade de lixo, efetivamente, selecionado pela Prefeitura é irrisória: apenas 120 toneladas por mês. Apesar das promessas da Limpurb com relação à incrementação dos programas pertinentes, quem já trabalha, em âmbito privado, com reciclagem, desconfia da esmola. Empecilhos estranhos visando evitar o reaproveitamento refletem um exemplo de malversação por parte do Poder Público em realizar as tarefas mais comezinhas do cotidiano.
No tocante à coleta seletiva, a crítica parte de Vilma Peramezza, síndica do Conjunto Nacional, que emprega um programa de coleta seletiva há cinco anos: "Existem três pontos fundamentais para a coleta seletiva de lixo: a conscientização do usuário, operar a separação e o próprio comércio. Os programas da Prefeitura ficam só com o marketing, ou seja, com a comunicação. Por exemplo? Os Pontos de Entrega Voluntária (PEVs), em que as pessoas depositam os materiais a ser reciclados. Quando os containeres ficam cheios, a Prefeitura raramente retira o lixo de lá. E, quem acaba fazendo isso são os catadores, que o comercializam clandestinamente." (clique aqui para conhecer exemplos positivos de cuidado com bens públicos)
Na outra ponta do processo, encontram-se as empresas especializadas na coleta do lixo especial. Ivan Roberto de Souza é proprietário de uma companhia que faz esse serviço. Após trabalhar 17 anos em uma empresa que recolhe os detritos comuns, Ivan decidiu encampar um projeto seu, aspirando a melhorar o meio ambiente. Na verdade, ele não se fechou a apelos pecuniários. "Não sou altruísta, ainda recolho o lixo de verdade, mas parte do lucro que eu consigo invisto na coleta seletiva. Algumas pessoas me chamam de louco, pois nesse ramo remunera-se por viagem feita. Eu vendo a tonelada de lixo reciclável a R$ 50,00. Embora seja um valor menor do que arrecadaria por viagem aos aterros, posso manter acesa minha consciência ambiental."
Quando ocorre esse concerto desarmonioso entre a Administração Pública e a população, a cidade sofre bastante. Às vezes, tem-se a impressão de que as estruturas urbanas não vão suportar tamanho descuido. Mas a vingança vem na mesma moeda. Não tarda muito e os logradouros feridos rechaçam a ameaça e, assim, buracos brotam das ruas, pontes racham sob os carros e chuvas inundam as casas. É a cidade que revida a agressão.
Depois do lixo atirado no chão, os buracos são o retrato mais aparente da falta de zelo. Todos os anos, milhares deles aparecem nos lugares mais absurdos. Para combater a praga, a Prefeitura fornece um serviço público que recebe as denúncias da população e se prontifica a reparar as frinchas no asfalto. Diariamente, o Disk Buracos atende a 82 chamadas de pessoas desenganadas. Segundo estudos oficiais, os buracos se reproduzem 1500 vezes por dia e os gastos para tampá-los atingiram RS 13,1 milhões até setembro último. Ainda de acordo com a Prefeitura, a média de buracos consertados empata com os que se formam, ou seja, cerca de 43 mil ocorrências mensais. Portanto, ao menos em teoria, os paulistanos estariam livres do flagelo. Será?
Destruir o que é seu
Há inúmeras amostras do desrespeito público e privado concernente aos bens de uso comum. Mas quais as causas que conduzem a essa máxima? Para o arquiteto e urbanista Joaquim Guedes, a gênese da questão reside na pobreza intrínseca a São Paulo. "Há vários níveis de desrespeito. Utilizar a cidade como lixo ou não se importar com a cidade quebrada. Mas muitas dessas coisas estão ligadas à questão de recursos. Por exemplo, quanto mais dinheiro para recolher o lixo, mais a cidade é civilizada." Outra razão para a desordem excessiva de São Paulo é o fato da cidade ser marcada por um fluxo migrante importante. "Os imigrantes são, por definição, aqueles que chegam sem nada à procura de emprego que não encontram com facilidade. Assim, a falta de recurso assalta as pessoas no fragor da batalha da sobrevivência antes que razões e cultura comecem a discipliná-las, e que passem a viver melhor do que na véspera", analisa o arquiteto.
A visão de Joaquim Guedes sobre o caos urbano destoa do senso comum. Para ele, uma metrópole se caracteriza justamente em cima dos fatores reprovados pela maioria. O barulho, o tráfego, a poluição visual formam o conceito próprio do urbanismo. "A cidade é por definição o lugar da desordem criativa, da desordem que reinventa a vida nova. Concentrações urbanas são o lugar do conflito. É ele que promove o desenvolvimento. Tenho mais afinidade com a cidade da parafernália e dos luminosos do que com as cidades ordenadas como as suíças. Estes são locais de morte." A crítica do arquiteto recai sobre o sistema tributário ignaro que assola as contas públicas. "Acho que São Paulo é 'mal paga'. Ela dá muito ao governo federal e recebe pouco em troca. Hoje a cidade está carente e deficitária", conclui.
Somado à pobreza identificada pelo arquiteto e verificada copiosamente pelas ruas, um outro elemento brutal corrobora para entristecer o panorama paulistano: o vandalismo. Esse atentado imoral contra a cidade contribui para dilapidar ainda mais o patrimônio. Avassalador, o vândalo depreda desde a propriedade alheia até os bens que serão utilizados por ele mesmo no dia seguinte.
Dois exemplos denotam com precisão a infâmia do vandalismo. A primeira vítima é a Telesp, que só na região da Grande São Paulo gasta R$ 525 mil a cada mês para consertar os mais de oito mil telefones públicos depredados. Com esse valor, a empresa poderia instalar 150 telefones novos. A concessionária informa que os mais afetados são os orelhões à ficha por causa dos cofres internos.
Causam igual perplexidade os atentados contra o patrimônio histórico da cidade. Os cerca de 400 monumentos ornamentais que permeiam as ruas servem, constantemente, como alvos para depredações. No entanto, o inimigo mais perverso de estátuas e esculturas está nos pichadores. A diretora do Departamento do Patrimônio Histórico, Nina Lomonaco, beira às lágrimas quando relata alguns episódios inimagináveis: "Eles chegam a apostar quem vai conseguir pichar o monumento de Dom Pedro 1º no Parque da Independência." Os prêmios variam de R$ 3 mil, para o primeiro a macular a estátua, e R$ 5 mil, para quem conquistar o galardão máximo: a bandeira nacional estocado na mão do ex-imperador. "E não é que eles conseguem", lamuria a diretora. "Mesmo com toda a proteção, eles distraem a guarda metropolitana e roubam a bandeira."
Nina conta que para a despedida do cônsul austríaco, ela e alguns funcionários tiveram de esfregar com o próprio punho as escadarias que acessam à estátua. "É terrível: destruir um monumento é a mesma coisa que rasgar uma foto de família. As esculturas públicas representam a manifestação artística dos escultores, o fato histórico e a memória dos povos que construíram essa cidade tão cosmopolita."
O monumento mais antigo de São Paulo é, também, um dos mais atingidos pelo descaso. Instalado em 1818, portanto ainda sob os auspícios do Império, o Obelisco da Ladeira da Memória parece que está no lugar errado na hora errada. Totalmente coberto por desenhos indistintos e depreciativos, a escultura, as escadarias e os painéis que formam o conjunto da obra dão de cara com uma das saídas da estação Anhangabaú do metrô. As pessoas que transitam pelo local não percebem sua importância histórica e cultural. "Da última vez que a reformamos, em uma semana roubaram as placas e luminárias", diz Nina, irresignada. A solução? "São necessários três itens básicos: segurança, conscientização do que é o bem público e a possibilidade de fruição daquilo que está à disposição da cidade."
O perigo transparente
Não há dúvida. Grande parte do desrespeito dos habitantes de São Paulo provém da absoluta falta de educação. E se falta consciência íntima acerca da convivência comum, harmônica e respeitosa, as leis que existem para coibir tais atitudes sobrevivem apenas em tese.
Um exemplo: no mês passado foi regulamentada a lei que prevê multa para os proprietários relapsos que inadvertidamente se esquecem de recolher os dejetos despejados pelos cachorrinhos. Em São Paulo, é cena raríssima ver alguém carregando um saco plástico para prevenir possíveis inconvenientes. O contrário ocorre em outros países, onde a consciência do bem-estar coletivo eleva-se acima de atitudes mesquinhas. Nas ruas de Paris, o hábito do saco plástico tornou-se cartão-postal.
A repressão (o valor das multas) funciona apenas se houver o suporte coator. No caso, os fiscais. Em Cingapura, considerada a cidade mais limpa do mundo, há previsão de castigos físicos para quem denigre o patrimônio. Nos Estados Unidos e Europa, quanto maior a quantidade de lixo produzido (mesmo sendo doméstico), maior é a taxa a ser paga. Aqui, o problema persiste. Não existem autoridades para autuar os transgressores e a cultura nacional não enraizou o bom senso.
Embora o panorama vigente não se apresente animador, algumas experiências conseguem contornar com sucesso o problema. Unindo interesses, por meio da política adequada, a cidade consegue respirar. Reunidos em minoria, lugares como o metrô, clubes e instituições conseguem manter um padrão adequado de limpeza e ainda incutem nos usuários alguma consciência crítica.
Desconcerto público-privado
O centro de São Paulo é um exemplo positivo de restruturação urbana. Abandonada e decaída, a região mais antiga da cidade está conseguindo se reerguer através de esforços múltiplos. O movimento mais vigoroso vem por parte da Associação Viva o Centro, que dispersou suas atividades em braços menores, as Ações Locais.
Na avenida São Luiz, comerciantes, transeuntes e moradores avençaram um protocolo mútuo de colaborações. A avenida, então suja e desrespeitada, ganhou ares decentes com o trabalho conjunto. As medidas são simples. Recrudescimento da segurança, racionalidade na coleta de lixo, criação de uma corporativa dos catadores de papel foram as realizações sob a batuta do linha-dura Chico de Paula, diretor da Ação Local há um ano e meio. "Baixamos 70% da criminalidade. Hoje, as pessoas têm coragem de vir aqui comer à noite e os comerciantes estão voltando para cá", conta.
O sucesso administrativo foi conquistado com a cooperação entre o Poder Público e a comunidade em uma sintonia de intenções. "Quando quebra um canteiro, eu chamo a regional e eles vêm consertar. Com os buracos é a mesma coisa." Outro segredo está na fiscalização adequada. Nos postes de luz restaurados ao estilo do começo do século, foram pregados os terríveis pôsteres de publicidade. De Paula não titubeou. Anotou o nome da empresa infratora e moveu uma ação cível e criminal. Se condenados, os responsáveis, além de arcar com os custos da limpeza, poderão cumprir pena e prestar serviços comunitários.
Infelizmente, essa é uma atitude incomum. A solução judicial de procurar os direitos garantidos, por lei aos cidadãos, tem seu valor mitigado pelos paulistanos. Mesmo os especialistas negligenciam a via propícia para se obter satisfação. O advogado professor da Faculdade de Direito da USP, Carlos Borges de Castro, especialista em Direito Público, confessa sua própria lassidão. "Na verdade, a participação popular tem muito a caminhar para que se cumpram os preceitos constitucionais. E, culturalmente, não temos o hábito da participação popular. Eu me incluo nesses inertes. Deveria haver mais pressão sobre o Poder Público, porque ele é o responsável por manter os bens."
A falta de ação impele os cidadãos a substituir as prerrogativas oficiais. Certas medidas, além de ilegais, prejudicam o espaço público. O advogado identifica no represamento das ruas um movimento de fraqueza governamental. "Privatizar as ruas com cancelas é absolutamente inconstitucional." Então, qual o remédio? "A autoridade tem o poder coator de impedir isso. É uma obrigação. Se ela não o faz, a comunidade tem alternativas judiciais para conquistar o direito, mas, por outro lado, a Justiça é morosa. O Estado só é célere para quem tem o poder nas mãos, como no caso do delegado cujo pai é senador; seu carro roubado foi recuperado em 40 minutos."
Sintetizando, o Professor Castro reclama da qualidade do serviço público prestado. "Hoje, o Estado ou é incapaz ou presta um serviço altamente inadequado, indesejável. Acredito, enfim, que o setor público está atendendo muito mal."
As palavras do especialista exprimem duas conclusões primárias. A primeira diz respeito à inércia da população em exercer os direitos pertinentes e consagrados. A outra demonstra a ineficiência do Poder Público em solucionar e gerenciar assuntos básicos da vida cotidiana. Dessas vertentes, decorre a terceira, igualmente prejudicial, refletida no desprezo pela cidade. No fundo, é muito pouco arraigado o sentimento que coloca o patrimônio público como o segundo lar ou um espaço de convivência comum.
Ameaça Invisível
Indiretamente, o lixo miúdo, aquele espalhado pelo chão, tem um companheiro de vilanias que, embora faça menos estardalhaço, deteriora muito a qualidade de vida. Esse lixo se apresenta, em certa medida, como o invisível monóxido de carbono, exalado dos escapamentos e com alta carga nociva. Ele escorre pelas instalações clandestinas, poluindo os mananciais que abastecem de água a cidade de São Paulo e região. O gerente da Sabesp, engenheiro Amauri Polachi, traça um panorama pessimista para o problema. "Como o espaço urbano não é projetado, há muitos loteamentos clandestinos nas áreas de mananciais. É preciso deixar claro que essas áreas precisam de proteção. Deve haver uma contenção desse crescimento desbragado. Se não forem feitos alguns ajustes, há risco dessas regiões ficarem inviáveis enquanto mananciais." Caso isso ocorra, o vaticínio será preocupante. Olhos semicerrados, o gerente profere a frase atemorizadora: "Não haveria água para três milhões e meio de habitantes que a região metropolitana abriga."
Diante da terrível ameaça representada pelo descaso público e privado, os paulistanos chegaram a uma encruzilhada. A comunidade precisa tomar consciência de que a cidade é lugar comum e como tal necessita ser respeitada. Há, ainda, um outro aspecto. Autoridades e população precisam entender que é interesse comum e múltiplo o bem-estar geral. O jogo de interesses políticos obsta de maneira torpe o andamento normal da máquina urbana. A responsabilidade sobre a Ponte dos Remédios, o transporte coletivo e a poluição desesperadora assolam a população que, por seu lado, também não ajuda. O bálsamo independe de fórmulas delirantes ou de somas pecuniárias volumosas. Ele está no respeito e na colaboração de cada um.