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Pensamento coletivo e mão na massa

Postado em 30/03/2021

Texto: Luciana Vicária

Um olhar para as cooperativas de triagem de materiais recicláveis — e uma escuta atenta do que trabalhadoras e trabalhadores do setor contam sobre sua própria experiência — pode trazer novos aprendizados a toda a sociedade.

O Brasil ainda dá seus primeiros passos quando o assunto é reaproveitar seus recicláveis. Se, por um lado, somos o quarto maior produtor de plástico do mundo, por outro deixamos de reciclar cerca de 97% dos 80 milhões de toneladas de resíduos sólidos que produzimos todos os anos, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais. Significa que a maior parte dos plásticos, alumínios, papéis e eletrônicos que descartamos vai parar em aterros sanitários misturada ao lixo orgânico, contaminando o solo, os rios e os oceanos. A menor parte (apenas 3% do que produzimos) é reciclada.

O que poucos sabem é que a destinação correta do lixo movimenta 7 mil cooperativas de reciclagem no Brasil, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. Elas não só poupam os recursos do planeta, como transformam a vida de 332 mil brasileiros que tiram do “lixo” o seu sustento. Fomos conversar com pessoas que estão na ponta dessa cadeia — e descobrimos que a prática da reciclagem faz mais do que transformar garrafa PET em plásticos de reúso: a reciclagem renova o amor ao próximo, resgata a autoestima e reafirma o compromisso humano com o meio ambiente. Com a palavra, as trabalhadoras e os trabalhadores.

Raquel tira selfie em frente aos resíduos prensados, na Cooperativa Vida Nova, em Campo Limpo Paulista. Foto: Arquivo pessoal.

Orgulho e trabalho pesado

No mesmo ano em que nasci, minha mãe fundou uma cooperativa de reciclagem em Campo Limpo Paulista. Faço de tudo na cooperativa, desde puxar os “big bags” (sacolões de recicláveis) para o caminhão até atividades administrativas. Sofro preconceito dos vizinhos, que me olham com uma certa repulsa quando me veem no trabalho pesado. Meu trabalho me ensinou a ter respeito por todo e qualquer indivíduo, independentemente de sua aparência e da forma como ele está vestido. O futuro do planeta e de quem vai ficar por aqui depois que eu for depende do que faço agora. Por isso tenho muito orgulho do meu trabalho.

Raquel Morais, 23 anos, filha de Silvana Morais, fundadora da Cooperativa Vida Nova, em Campo Limpo Paulista, formada em enfermagem e estudante de gestão ambiental.

 

 

Murilo posa ao lado de Marli, presidente da Coopernova. Foto: Arquivo pessoal de Murilo Jeronimo Aguiar

As lições do lixo coletivo

A cooperativa me deu uma profissão e a minha primeira grande oportunidade de emprego. Por sete anos eu cuidei do controle e do relacionamento com as empresas que compravam e forneciam os recicláveis. Decidi me tornar gestor ambiental e entrei na faculdade, paga com o dinheiro da própria cooperativa. Há pouco tempo fui contratado como trainee de uma multinacional da área de eletrônicos. Tratar do lixo coletivo trouxe uma série de lições para mim, especialmente que uma cooperativa recicla não apenas os resíduos, mas também as pessoas.

Murilo Jeronimo Aguiar, 25 anos, morador de Cotia (SP), trabalha atualmente na iWrc Brasil Consultoria em Gestão Empresarial.

O lixo devolve a cidadania

O mais incrível do nosso trabalho é dizer que hoje 46 famílias tiram seu sustento de algo que as pessoas acham que não serve para nada. A cooperativa gera empregos e renda. Sem contar que trabalhamos com o resgate da autoestima de pessoas que muitas vezes estavam totalmente à margem da sociedade, não tinham sequer RG ou conta bancária. Por isso, costumo dizer que nosso trabalho é muito nobre — especialmente quando chamam os recicladores de lixeiros. Lixeiro é quem descarta de qualquer jeito, nós somos a antítese disso tudo. Ando bem preocupada porque a sociedade produz cada vez mais lixo. E não se tem consciência coletiva. A sustentabilidade ainda não é uma preocupação da maioria.

Marly Monteiro Andrade dos Santos, 58 anos, moradora de Cotia (SP), uma das mais antigas cooperadas da Coopernova Cotia Recicla. O trabalho começou com três pessoas e 10 toneladas de lixo por mês. Hoje são 51 cooperados, trabalhando com 230 toneladas por mês.

Marilene (de máscara vermelha) exibe o uniforme novo pela primeira vez ao lado dos demais cooperados da Coopernova, em Cotia. Foto: Arquivo pessoal de Marilene Leolina dos Santos

 

O impacto do próximo

Para quem não esperava muito da vida, como eu, posso dizer que cuidar do lixo coletivo me mostrou o lado bom da vida. Antes eu trabalhava de cozinheira, pegava várias conduções até chegar ao trabalho e não tinha tempo para ver as crianças. Elas me queriam em um emprego perto de casa e, depois de muito insistir, deu certo. Troquei o trabalho na cozinha pelo da reciclagem — e de lá passei a tirar o sustento de toda a minha família. Já comprei duas TVs, pago minhas contas de água e luz e tenho até uma motinho. A cooperativa me mostrou que a vida do próximo e as escolhas que ele faz têm impacto na minha vida. Com o lixo é assim, com o planeta é assim, com a sociedade é assim. Hoje penso coletivamente.

Marilene Leolina dos Santos, 44 anos, natural de Jacobina, na Bahia. Trabalha na Coopernova Recicla Cotia.

Processamento de e-lixo na Coopermiti: 33 cooperados operam em todas as etapas do processo, incluindo coleta seletiva, triagem, destinação e educação ambiental. Foto: Lúcio Érico.

 

Cintia compartilha conhecimentos da experiência da Coopermiti, em São Paulo. Foto: Lúcio Érico

O pensar diferente

Os produtos são feitos para serem repostos em muito pouco tempo. Temos de mudar esse jeito de pensar, especialmente o hábito de descartar em lixo comum todo tipo de resíduo. Lixo eletrônico tem um alto potencial de contaminar o meio ambiente. Sim, é verdade que o nosso trabalho é o de reciclar, mas a gente também recupera o que está em bom estado e doa para instituições. Temos de reciclar, mas também temos de reaproveitar. Talvez o que não está em uso por você possa ser reaproveitado antes de ter como destino o reciclável.

Cintia de Cássia Ferreira Pereira, 48 anos, trabalha na Coopermiti. Ela faz parte do quadro de sócios fundadores desde 2009. É uma cooperativa de 30 associados idealizada por empresários e especializada em eletrônicos (veja texto na página 36).

Do lixão à cooperativa

Comecei a trabalhar no lixão com oito anos. Eu e meus quatro irmãos precisávamos ajudar no sustento da casa e não havia alternativas. Em um dia de chuva muito forte, me lembro de olhar para aquele cenário degradante e desejar um futuro melhor. Foi quando conheci o pessoal da reciclagem e transformei a minha vida por meio do lixo. Sempre pensei em mim, cuidei do meu, mas na cooperativa aprendi a trabalhar coletivamente. Os ganhos se multiplicam se a gente une os esforços. Pouco a pouco fui conseguindo me organizar. Criei meus quatro filhos, terminei minha casa e até comprei um carro com o dinheiro do que as pessoas chamam de ‘lixo’.

Ednalva Inês Correa Souza, 50 anos, ex-catadora, mora em Piracicaba e trabalha na Cooperativa do Reciclador Solidário daquela cidade.

 

Renilda de Souza, catadora cooperada. Frame de vídeo da matéria Mobilização social em Cotia (SP) vira exemplo de cooperativismo. Por Lúcio Érico.

Sou catadora, com muito orgulho

Venho de um pequeno município do interior da Paraíba. Na infância, era comum a gente botar fogo nos nossos resíduos pra evitar juntar bicho. Não havia coleta de tipo algum, nem de orgânicos, nem de recicláveis. Em busca de uma vida melhor, mas sem estudos, fui para São Paulo tentar a sorte. Comecei em um bazar beneficente de bairro e acabei na cooperativa. Lá aprendi a dirigir empilhadeira, caminhão, fiz curso de separação de resíduos eletrônicos na USP e aprendi a separar peça por peça do computador, até motor de geladeira, o que gerou ainda mais valor para os nossos produtos.

A cooperativa me ensinou que a gente evolui na vida com conhecimento. E que se a gente tiver um olhar diferente sobre o mundo e as pessoas, tudo se transforma. Aprendi a valorizar meu trabalho e tenho muito orgulho dele. Adoro esse nome: catadora, gosto quando me chamam assim. Saber que eu estou ajudando o meio ambiente é uma satisfação muito gratificante. Saber que eu posso olhar os resíduos na cooperativa e entender que aquilo pode se transformar em novos produtos, que pode ajudar pessoas, é uma consciência que eu não tinha, mas que hoje eu tenho, e me enche de vontade de continuar e de contar essas coisas para os outros”.

Renilda Diniz de Souza, 62 anos, de Coxixola (PB), trabalha como recicladora na Coopernova Cotia Recicla.

De volta ao ciclo de produção

Aparelhos antigos no museu itinerante da Coopermiti: argumentos em favor de reutilização, consertos e reciclagem. Foto: Coopermiti.

A experiência da Coopermiti, que recicla 38 toneladas de resíduo eletrônico por mês.

A tal obsolescência programada dos equipamentos eletrônicos tem levado a uma troca cada vez mais frequente dos aparelhos. Bastam dezoito meses para que os celulares comecem a dar sinais de que sua vida útil está chegando ao fim, segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. A tendência de troca precoce também é comum em eletrodomésticos e computadores — e até em produtos que pouco tempo atrás eram analógicos, como barbeadores, sanduicheiras, cafeteiras e brinquedos de um modo geral. Quase tudo, hoje em dia, tem entrada USB e precisa de energia para funcionar.


A produção de lixo eletrônico per capita é de cerca de sete quilos por ano no Brasil — e apenas uma pequena parcela (3%) é reaproveitada. Estima-se que menos de 5% do lixo eletrônico seja reciclado, de acordo com pesquisa da Global e-Waste Monitor. Significa um volume enorme de “e-lixo”, medido em milhares de toneladas produzidas todos os dias. É nesse contexto que as cooperativas de reciclagem de eletrônicos, como a Coopermiti, de São Paulo, exercem um papel fundamental ao devolver à indústria os componentes essenciais, evitando assim a contaminação do ambiente e o consumo ainda mais agressivo de recursos naturais, como água e metais.


A Coopermiti recicla por mês cerca de 38 toneladas de componentes eletrônicos. Seus 33 cooperados operam em todas as etapas do processo: coleta seletiva, triagem, destinação e educação ambiental. Eles são treinados para reconhecer e separar as peças plásticas, de alumínio, fiação, metais e as placas. Usam luvas de proteção para evitar a contaminação e mantêm uma rede de parceiros que recebem cada um dos materiais.


Nenhum resíduo que sai da Coopermiti vai para aterro sanitário. Até o que não é reciclado no Brasil, por falta de empresa especializada, tem um destino ambientalmente correto em outro país. Parte das placas de circuito impresso, por exemplo, é exportada para Itália, Alemanha, Bélgica, Japão e Estados Unidos. O diretor da cooperativa, Alex Luiz Pereira, diz que o maior desafio continua sendo convencer as pessoas a descartar corretamente seus aparelhos antigos. “Temos um trabalho árduo que requer mudança de hábito e, sobretudo, educação das pessoas”, resume. Por essa razão, Alex conserva equipamentos mais antigos e em bom estado para compor seu museu itinerante. Os aparelhos são um chamariz para falar sobre a evolução da tecnologia e a importância de reciclar.

“No Brasil, as pessoas ainda descartam por recompensa: só aceitam entregar o aparelho antigo se tiverem desconto em um novo produto, e não por consciência ambiental”, explica. Outro grande desafio, segundo Alex, é vencer os atravessadores, também chamados de morcegões. São trabalhadores informais que vasculham o lixo reciclável atrás de eletrônicos antes que o material chegue às cooperativas. Resultado: retiram as partes valiosas e descartam o restante, contaminando o meio ambiente e deixando de devolver às indústrias grande parte da matéria-prima de seus novos eletrônicos.

Coopermiti - Gestão de Resíduos Sólidos
www.coopermiti.com.br


Rua João Rudge, 366 - Casa Verde - São Paulo-SP - CEP: 02513-020 - Fone 11 3666-0849 - e-mail: contato@coopermiti.com.br

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