Postado em 24/03/2021
As palavras que me habitavam eram palavras sem-teto, abandonadas à própria sorte na rodovia, largadas à beira do altar, esquecidas na porta da escola. Eram palavras enxotadas de casa, palavras que receberam um pedido educado para se retirar. Eu era um conglomerado de palavras rejeitadas que se arrastava pelo apartamento. As palavras chegavam a apostar pra ver quem recebia mais atenção e, por fim, todas perdiam. Mas um dia – um belo dia? Tem jeito? Vem sendo possível ser belo? – no meio disso tudo, tropecei em algo estranho que estava no meio do caminho entre meu quarto e o banheiro. Era pra ter sido um deslocamento tranquilo pra fazer um xixi, mas levei um tombo depois de bater em uma coisa volumosa e translúcida, um estorvo. Tropecei em meu desejo de controlar a mim e aos outros e voltei pra cama puta da vida, com um roxo na canela e um dedão doendo. Adormeci diferente, tendo aprendido a lição de que certos desejos viram estorvos no meio do caminho entre o “de onde viemos” e o “onde pretendíamos chegar” e ferram com tudo. Dormi umas dez horas ininterruptas, de dedo latejando e tudo. “Acordei e não recomendo”, pensei, abrindo os olhos como que numa ressaca dessas de gosto de cabo de guarda-chuva no fundo da garganta. Havia bebido informações inflamáveis e dispensáveis por meses, sem petisco, sem engov®, além de aguentar murmúrios de palavras rejeitadas que não calavam a boca um só segundo: já pensou em tolerar palavras lamuriando no seu cangote vinte e quatro horas por dia durante meses? Pois tente imaginar.
Já encolhida de pijama num canto quente da varanda, cabelo desgrenhado, bafo de saudade, gastei uns dez minutos checando e-mails. Dizem que são mensagens de texto de tamanho variável, conteúdo flexível com possibilidades para anexos, mas são ferramentas digitais pra você estar sempre no meio, em um meio ambiente, sem estar de verdade – estando pela metade, pelo meio. É meio volúvel, meio prático, meio patético, meio poético. É como parar no meio do que você está fazendo pra dizer “não estou aí, mas haja como se eu estivesse e, se precisar de mim, procure outro! Atenciosamente...”. Deixei pra lá a checagem, achei meio inútil. Rolei o feed da janela e tudo (ou nada) de novo: maritaca berrando no fio de alta tensão do poste em frente ao prédio, céu azul bordado de nuvens ágeis que jamais tiveram a intenção de assemelhar-se com bichos, ou formas, ou gente – nuvens, cuja pretensão máxima deve ter sido o movimento sutil e a dissolução gradativa, tipo eu quando levantei da cama naquela manhã. Dei like com os olhos na vizinha que regava suas samambaias indecisas – não sabiam se queriam sol ou água pra continuar vivendo – e ela me devolveu uma expressão-emoji-cara-de-espanto. Como é ridícula a vida em rede. Como é necessária. Como é que uma topada em um desejo no meio da noite bagunça – ou organiza – a gente assim?
A partir daí, pensamentos vieram em cadeia e tudo que eu pensava levava a outro pensamento, à outra ideia e a outro vislumbre. Uma coisa que liga a outra coisa, que abre precedente para uma terceira. Lembrei-me de como fazer de uma batata doce uma trepadeira, pensei em quando trepava na mangueira do quintal de minha avó e não conseguia descer, tive a ideia de descer a Rua Augusta gritando “Equador!”, imitando Waly Salomão, da próxima vez que for a São Paulo e vislumbrei meu tio Paulo de cabelos ruivos chegando em casa e dizendo à esposa que quer se tatuar. A cabeça da gente é um banco de dados compartilháveis e corrompíveis, né? Medrei na possibilidade de ter aqueles pensamentos escancarando meus sentimentos e dando aos outros informações imprescindíveis ao controle do meu eu. Aquele tropeço no meio da noite, aquele tropeço no meu desejo de controle havia tirado parafusos do lugar? Talvez. Mas uma amiga disse algo em uma rede social sobre o algoritmo da vida e entendi que para além do meu impulso de dominar a mim e ao mundo está o incontrolável fluxo da existência. O algoritmo da vida não espera que eu compartilhe fotos, pois já me viu de todos os ângulos possíveis e sabe que nem tudo é Fernando de Noronha, Tanqueray® com pimenta rosa e recebidos dentro do meu coração Big Data: ele seleciona o que virá e o que se mostrará antes mesmo que eu acorde ou até mesmo enquanto durmo. Ele roda, ignora ou enaltece as cenas do mundo, com ou sem mim, e não importa se sou peixes com lua em áries e ascendente em leão, se meditei ou assisti TV, se militei por um país melhor ou me enfiei debaixo das cobertas e chorei, pois muito antes da formação da minha consciência sobre qualquer fenômeno, minha existência é um carrossel impulsionado pelo universo. Ser e estar é um problema a ser resolvido e não adianta desejar controlar... é impossível fugir do algoritmo.
Debaixo da ponte cimentaram pedras
Pra não ver pardo dormir
Cuspiram na fronte de muitos coitados
Fui deixando de existir.
Por baixo na terra, meu corpo isolado
Sem direito à despedida
Vaguei pelas ruas, escrava dormente
Fui partindo dessa vida.
Na boca do povo fui dita sem alma
Não sei bem como reverto
Molhando a mordaça de lágrima fria
Fui caindo pelos becos.
Cantando. Teimando. Abraçando o temporal.
Mambembe. Cigana. Vou com ou sem carnaval.
Gritando. Forjando. Abraçando meu caminho.
Poeta. Tirana. Vou nascendo em outro ninho.
Sabe-se lá quanto tempo levei pra me acalmar e entender que o sentimento de impotência vinha pra ficar – tomar chá da tarde comigo, espalhar roupas pela sala, pendurar calcinhas molhadas em meu box e dormir com meu travesseiro. Impotência: esse resíduo indesejado com o qual estamos lidando porque não estamos sozinhos na galáxia. O outro é que me faz sentir poderosa ou o “cocô do cavalo do bandido”. É bizarro, mas poder-se-ia reverter em potência a impotência se algum dia, por algum milagre, amanhecêssemos tendo a clareza consensual de que existir talvez seja mais simbólico que concreto e que o que conhecemos está mais próximo do que pensamos saber do que de um saber de fato. Impérios são construídos da inércia de uns e inaugurados pela ignorância de outros. Templos se erguem em torno da intolerância e açougueiros vendem a receita pra escapar do matadouro. Sabe-se lá quanto tempo levei pra engolir aquele aperreio da gota e aceitar que se o coletivo está imerso em vazio e miséria não há razão individual que nos blinde do caos e nos salve do abismo. E como nos enraiva a irresponsabilidade de uns poucos! E como os poucos se convertem em multidões em um piscar de olhos. Diante dessas constatações, o medo me entrou pelas mucosas, atacou as resistências, roubou o ar e minguou cada centímetro de tecido. O medo da desumanidade do outro – e da minha – pode ser mais letal que qualquer vírus. Mas pulemos das minhas divagações teórico filosóficas para o que aconteceu: Eu quis matar, mas morri um pouco dias atrás...
Me mirou. Passaram por mim três Sãos Jorges montados em dragões coloridos de crinas furta-cor e laços de fitas de cetim vermelho. Tropeçaram em mim quatrocentos e trinta e três católicos apressados com crianças no colo ou esposas viradas no cramunhão com o celular na mão. Cutucaram-me setenta e sete adolescentes de máscara no queixo com cestinhas forradas de batatinhas encharcadas de sódio e traços de proteína animal. Nem me mexi. Seguiu me mirando sem arredar um só palmo, como se estivesse onde Deus a plantou e eu:
- “Senhora, por favor, olha o adesivo.”. Sorriu ruborizada, porém, indolente. Passou os dedos brancos agitados com unhas arredondadas de gel por entre as mechas loiras de um cabelo médio, donde saltavam umas outras mechas prateadas pelos anos. Unhas de gel com florezinhas minúsculas em dedos que faziam tilintar aliança de ouro, anéis com pérola solitária e brilhantes. Nem aí pro que eu disse, mas mirando minha cara como a quem mira a um alvo, silenciosamente imóvel...
- “No chão, Senhora, o adesivo!”. Nada, nem arqueou a sobrancelha micropigmentada cinza-desbotei-mesmo-e-daí. Parecia encantada com o aro dos meus óculos, ou quem sabe incomodada com minha tatuagem no ombro. Mil latas de leite condensado caíram à sua direita, dois mil pacotes de papel higiênico caíram à sua esquerda, mas a bonita não foi atingida. Reuni todas as energias e pela última vez...
- “Senhora, a distância...a distância! Precisamos tomar cuid...”. Riu, já meio debochada, abanando com a mão e sugerindo que manter a distância na fila do caixa do supermercado era uma bestagem, ideia de jerico. A verve nordestina que me salta pela boca nos momentos de tensão me transportou ao inferno em fração de segundo. Diplomaticamente e com o sangue fervendo, ironizei:
- “Olha só, e se de repente estivesse escrito nesse adesivo ‘chegue perto e eu enfio a mão na tua cara’, a senhora iria ignorar?".
- Gente, que grosseria! Você vai me agredir por causa de invenção de política? Eu que sou uma senhora de idade...
- Eu vou-me embora porque senão só saio algemada, minha senhora.
Larguei carrinho, fila, compras e parti, pisando duro como diria minha tia Lela. Senti a alma descolando do corpo e pensei em bater na senhora com o borrifador de álcool, mas me lembrei que o individualismo só faz crescer com os solavancos e as pancadas. Quanto mais você bate no individualista, mais ele acha que ser individualista é a saída pra tudo. Não se elimina esse tipo de ideia nem em esterilização de autoclave. A noção de que a parte é mais importante que o todo mata o humano aos poucos. É uma peste.
Karina Limsi é psicóloga formada pela UFMS/CPAR e mestranda em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem pela UNESP/Bauru. Cantora, compositora, escritora e produtora cultural, tendo idealizado e desenvolvido projetos nas áreas de Música e Literatura. Publicou seu livro de estreia "Contos dos que plantam árvores" (2015) pela Editora Patuá e participou das antologias “Ilhados” (2019) pela EB produções e “O vazio não está nem quando é silêncio: Vozes femininas na literatura” (2020) pela Editora Mireveja, além de ter sido contemplada em prêmios literários e festvais de MPB. Escreve para ver a música chegar, canta pra voltar a escrever, não necessariamente nessa ordem. Vive do jogo palavra-som.
Que sensações - palavras têm habitado em ti nestes tempos de isolamento social?
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