Postado em 28/02/2021
Perdi o lamento do mal com o passar dos anos. Ganhei a simpatia dos peixes. Robert Desnos
1
Um hotel pode ser o navio fantasma.
Uma árvore, xamânica.
O que dizer de corpos estranhos? Estão aí, sempre.
E dos milagres da síntese?
Não, não é viajar no sentido de deslocar-se de um lugar a outro ou de estar em uma cidade, um lago, enseada, montanha – porém do estado alucinatório que sobrevém e a mais íntima sensação de não estar aqui e de haver ido além.
2
Eu não morri em uma queda de avião
não me arrebentei na estrada
não me afoguei ao atravessar o rio Paranapanema cheio a nado
e aquele barco no canal de Ilhabela não virou nem foi levado pela correnteza
– acho tudo tão estranho, como foi possível…?
Sobram uns poemas, uns relatos de alucinações sólidas, mapeadas.
O natural é o verdadeiro sobrenatural.
3
O poema que eu deixei de escrever em 1965:
As ruas são de ácido e os túneis estão em chamas
O pé é lisérgico
A mão é um mantra
As Índias Ocidentais ficam logo aí, basta dobrar a esquina
– nós somos as Índias Ocidentais
4
E eu também já escrevi assim:
sábado do continente imerso
domingo da cidade que respira
segunda-feira da poesia que me toca
terça do mundo que recomeça
quarta para ler um poema com ênfase
quinta do sono azul
sexta da sabedoria
sábado: todas as cores
da rapidez
da vertigem
5
as coisas que não entendo
e que ultrapassam minha frágil compreensão:
som do silêncio (é claro...)
solidez diáfana (sim...)
NADA além da parede que se desfaz
mais a noite fria de maio
e o tempo que avança como se fosse algo
com vida própria
6
já foi dito que entre os xintoístas
são cultuados três milhões e
duzentos mil deuses
talvez ainda sejam poucos
tão rarefeitos
nesta noite de maio
enquanto Claudio Willer escreve para mostrar que não tem nada a ver com isso
assim parado, entre eras que se estranham
A beleza convulsiva terá de ser erótico-velada, explodente-fixa, mágico-circunstancial, ou não será beleza André Breton
Belo como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecção de uma máquina de costura e um guarda-chuva Lautréamont
belo como as cores de um maremoto em um entardecer luminoso
belo como as vozes que saem das cavernas nas encostas das montanhas
belo como uma inesperada descoberta arqueológica após dias seguidos
percorrendo aquelas cavernas
belo como uma série de frases interrompidas, entrecortadas
por risos ou por soluços
belo como o susto que se leva ao entrar em uma silenciosa sala
de exposições de suas obras
belo como todos os registros de encontros da lucidez e da loucura
belo como os cataclismos relatados nas mitologias mais arcaicas
belo como um erro de ortoépia
belo como todos os encontros da singularidade e da pluralidade,
da unidade e do infinito
belo como nossas tardes e fins de tarde passados a ler poemas e contar histórias
belo como as mutações das cores no dorso de um lagarto gigante
belo como os antigos mapas de navegação e todos os relatos
daqueles antigos navegantes
belo como uma coleção de caleidoscópios e todas as imagens
geradas por esses caleidoscópios
belo como os matizes da memória
belo como as palavras sempre, aqui, agora – e todas as outras
Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e à Geração Beat. Entre publicações recentes estão: Dias Ácidos, Noites Lisérgicas (Córrego, 2019); A Verdadeira História do Século 20 (Córrego, 2016); Os Rebeldes: Geração Beat e Anarquismo Místico, ensaio (L&PM, 2014); Manifestos, 1964-2010 (Azougue, 2013); Um Obscuro Encanto: Gnose, Gnosticismo e Poesia (Civilização Brasileira, 2010); e Estranhas Experiências (Lamparina, 2004). Já traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Saiba mais em: http://claudiowiller.wordpress.com/about.