Postado em 28/02/2021
PREMIADO AUTOR CUBANO NAVEGA PELO OCEANO DE INFORMAÇÕES
PESQUISADAS NA ELABORAÇÃO DE SUAS OBRAS E PELAS SEMELHANÇAS CULTURAIS ENTRE SEU PAÍS E O BRASIL
Uma declaração de amor a Cuba: esse é o sentimento no qual os leitores mergulham em Água por Todos os Lados, última obra do romancista, jornalista e roteirista de cinema Leonardo Padura. Lançado no final de 2020, o livro é uma espécie de mapa para caminharmos pelos locais das tramas onde vivem os personagens do autor de O Homem Que Amava os Cachorros (2013), Hereges (2015), A Transparência do Tempo (2018) e outras obras editadas no Brasil pela Boitempo. Prêmio Nacional de Literatura de Cuba, em 2012, e Princesa de Astúrias, da Espanha, em 2015, o escritor cubano participou da programação do Sesc Ideias, transmitido pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo. Antes disso, o autor já havia frequentado as páginas da edição nº 248 da Revista E em 2017. No mais recente encontro virtual realizado pelo Sesc São Paulo e pela Boitempo, o autor fala sobre como concebe suas tramas e personagens e sobre as semelhanças entre Cuba e Brasil. Participaram ainda o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, o jornalista e escritor Juca Kfouri e a editora e fundadora da Boitempo, Ivana Jinkings. Confira alguns trechos dessa conversa.
Acredito que Cuba e Brasil têm uma quantidade de elementos em comum. E nessa possível comparação entre Brasil e Cuba, em termos históricos e culturais, está o fato de que a história cubana foi determinada por sua característica de ilha. E o Brasil também é uma ilha dentro do continente latino-americano por uma questão, fundamentalmente, linguística, idiomática e também por questões históricas que foram geridas de maneira diferente no Brasil e no resto da Ibero-América. E isso provocou algo que acho muito interessante: a capacidade de uma criação cultural que, partindo dessa característica de ilhas, sempre precisa de uma comunicação com o universal. E essa comunicação foi o que fez com que, durante o século 20, duas das músicas mais influentes do mundo tenham sido a música brasileira e a música cubana. E o elemento que fundamentalmente nos une é, com certeza, a presença das culturas (no plural) africanas (no plural) porque há sempre uma tendência a ver a África como um bloco único, e a África é um continente multiétnico, multicultural, e os iorubás não iguais aos bantos, como sabemos, ou aos congos, enfim. E a presença negra no Brasil faz com que, ao estar em Salvador, realmente pareça que se está em Cuba.
Agradeço à editora Boitempo por ter feito a edição desta reunião de reflexões, obsessões, observações que fui realizando ao longo de 20 anos. Há textos que reúnem um espaço de 20 anos porque acho que, para mim, foi necessário fazer, em cada um dos momentos em que fui escrevendo os textos, um complemento necessário ao meu trabalho como escritor. Quando alguém escreve um romance, muitas vezes sente que há coisas que não pode dizer no romance porque a própria estrutura, a própria dramaturgia do romance, não permitia determinados elementos, esses elementos que são importantes no mundo que o autor criou. Mas esse mundo tem comunicação com outros e vem de alguma parte. Tudo vem de alguma origem que está em algum ponto… Vejam, por exemplo, minha relação com a cidade de Havana, minha relação cultural com o beisebol, que foi minha paixão e continua sendo. Claro, essa investigação, essas decantações que ficam dos romances que escrevi, sobretudo… Bem, por um lado, há os romances de Mario Conde [o famoso personagem de uma série de obras do autor que é um detetive] e, por outro lado, os romances que têm uma investigação histórica como O Romance da Minha Vida (2002, ano da primeira publicação), Hereges (2013, ano da primeira publicação), O Homem Que Amava os Cachorros (2009, ano da primeira publicação). Há também, por exemplo, em O Homem Que Amava os Cachorros, uma série de informações que me foram pedidas pelos leitores, mas acontece que eu não podia... O romance é um espaço e esse espaço não é infinito, não se pode estendê-lo para incluir todas as informações com que o autor trabalhou naquele tempo.
O ROMANCE É UM ESPAÇO E ESSE ESPAÇO NÃO É INFINITO
Esse romance [O Homem Que Amava os Cachorros] me exigiu dois anos de pura investigação e, depois, três anos de escrita, durante os quais não parei de investigar. E, para não me perder naquele oceano de informações, o que fiz foi ir organizando tudo cronologicamente nos anos em que ia se passando. Cheguei a ter um arquivo de quase 800 páginas de informação que eu ia tentando usar. Isso é, aquilo que eu tirava dos livros e considerava importante. E, claro, havia uma quantidade de elementos riquíssimos que mereciam outros romances, que não vou escrever porque acredito que quando alguém termina um determinado assunto literário deve dizer: “Chega”. E, então, começar a buscar outras possibilidades, e foi isso que fiz. Por exemplo, o personagem Ramón Mercader consistia em uma pesquisa para saber quem poderia ter sido esse homem. Depois de cinco anos lendo e pesquisando, acho que pude ter uma imagem possível de quem era Ramón Mercader, porque com ele nada é seguro: um personagem que foi criado em todos os sentidos. Sobre esse processo, pus a relação de Ramón Mercader com Cuba, que foi um dos elementos que me levaram a escrever esse romance. Porque quando soube que Ramón havia vivido em Havana na mesma época em que eu estudava na universidade, por exemplo, pensei: “Como é possível que esse homem que pertence à História [o romance trata do cenário e desenrolar político que cercam o assassinato de Leon Trotsky por Ramón Mercader] tenha sido alguém que eu poderia ter encontrado?” Essa foi uma das faíscas que me levaram a escrever esse romance. E como pude fazer essa investigação? Acredito que isso poderia ter feito parte do romance, mas era realmente um excesso, e me foi impossível. Por isso, esse livro complementa, eu acho, meus romances Hereges, O Romance da Minha Vida, a criação do personagem de Mario Conde, como foi a concepção desse personagem e toda uma série de elementos que integram a vida do escritor e a vida do escritor cubano.
Por que isso é importante? Como o contexto local de cada um de nós influi em nossa maneira de entender a vida e realizar a criação? Porque, dizia no começo, ainda que um brasileiro e um cubano tenham uma infinidade de laços históricos em comum, ou um cubano e um porto-riquenho, para dar um exemplo próximo aqui do Caribe, acredito que os contextos nacionais fazem de nós as pessoas que somos. E a História recente de Cuba, aquela que eu vivi, lembrem-se, eu nasci no ano de 1955, eu tinha quatro anos quando se produziu em Cuba uma revolução. Podem dizer o que quiserem da Revolução Cubana — podem ter as opiniões mais favoráveis ou desfavoráveis —, a única coisa que não se pode negar é que foi uma revolução. Ou seja, ela mudou esse país. E essa mudança do país eu a vivi com minha própria existência, ao longo de mais de 60 anos. Tenho 65 anos, 61 deles vivendo num processo de revolução.
Assista ao debate com Leonardo Padura pelo Sesc Ideias no canal do YouTube do Sesc São Paulo, com a participação do diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, o jornalista Juca Kfouri e a editora e fundadora da Boitempo, Ivana Jinkings.