Postado em 28/02/2021
De que forma os jogos digitais podem ser uma ferramenta para a educação formal e não formal? E como esse cenário aparentemente restrito ao lazer pode ser combinado a áreas de conhecimento, como história e literatura, ou outros campos de interesse? Desenvolvedores, educadores e pesquisadores em todo o mundo investigam de que maneira os games podem ser mediadores na aprendizagem e não mais “vilões” capazes de alienar crianças, adolescentes e adultos de questões do mundo presencial. No atual contexto do isolamento social, a coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a educadora Lucia Leão, reflete sobre jeitos de trazer o jogo para o contexto do aprendizado. Desse modo, “permitir encontrar no jogo as bases para novas aventuras, encontros e diálogos nos processos de ensino e aprendizagem e, com isso, redescobrir caminhos e vertentes na educação”, explica. Para o pesquisador e desenvolvedor de jogos digitais Jaderson Souza, CEO da Game e Arte, iniciativa que atua há mais de dez anos nas comunidades de São Paulo em atividades socioeducativas a partir de games, educadores podem e devem fomentar o pensamento crítico por meio de atividades com essas ferramentas virtuais. “Este processo pode ser realizado por meio da mediação com games”, complementa. Neste Em Pauta, Lucia Leão e Jaderson Souza debatem diferentes aspectos do universo dos games em diálogo com o aprendizado.
Lucia Leão
Os games e a educação são temas que se entrelaçam constantemente nas experiências do cotidiano. Quer seja nas atividades em sala de aula, quer seja como escolha afetiva para os momentos de lazer, os games, como vertentes de produção de conhecimento e espaços de convivência, percorrem o dia a dia e aparecem como elementos fundantes de uma cultura que é cyber e ao mesmo tempo resgata mitos ancestrais. Como pensar essas relações de maneira frutífera, conseguindo escapar dos preconceitos que prevalecem nos discursos dualistas?
Em tempos de pandemia, a atividade docente se viu ainda mais desafiada a criar situações significativas para o aprendizado. No contexto de isolamento social, com as aulas ocorrendo através da mediação de tecnologias de informação e comunicação, os educadores relatam dificuldades para conseguir manter a atenção dos alunos em meio a miríades de estímulos. Como competir com jogos e redes sociais? Nossa proposta é deixar de lado a abordagem opositiva e trazer o jogo para o contexto do aprendizado, buscando elementos que possibilitem transformações na educação, agenciem diálogos estimulantes e criem situações de encantamento.
Para isso, iremos traçar relações entre valores educativos e o jogo, considerando três instâncias: (1) jogo como experiência estética; (2) jogo como ação; (3) jogo como narrativa e experiência arquetípica. Vamos iniciar direcionando nossa reflexão para as potências sensoriais e estéticas que os jogos acionam. Quando falamos em videogames, o conceito de experiência estética se faz presente não só na exuberância de gráficos, cores, animações e sonoridades, mas, também, nas possibilidades dos atos interativos que desvelam novas perspectivas a cada gesto.
Viajante por entre mundos, com as mais variadas capacidades de locomoção e presença, o jogador é, ao mesmo tempo, ator e espectador, testemunha e agente por entre os mais fantasiosos e exuberantes ambientes. A experiência estética faz vibrar corpos: o corpo do jogador, o corpo do avatar e todos os corpos com os quais o avatar interage. Depois de algum tempo na experiência do jogo, corpos acoplados de jogador e avatar emergem, trazendo a vivência sensorial para um nível ainda mais intenso e vibrátil.
No entendimento da educação como um conjunto de ações que ocorrem em vários âmbitos da vida dos alunos, propomos iniciar uma conversa sobre games e experiência estética com a classe, buscando incentivar um olhar analítico por meio de provocações como: (1) elementos sensoriais (construção de ambientes) visuais, sonoros, animações; e (2) elementos interativos, construção de diálogos e performances. Vale lembrar que a ideia é promover uma reflexão sobre as diversas dimensões dos games escolhidos e estimular a percepção de como esses elementos se interconectam.
O jogo como ação — segunda instância de estudo — implica uma compreensão ampla do jogo em relação ao cotidiano das pessoas, hábitos e rituais que entrecruzam a experiência do jogar. Para adentrar nessa dimensão, convidamos os alunos a relatar como se relacionam com os jogos. A que horas costumam jogar, com quem jogam, como costumam lidar com as dificuldades e os avanços nos jogos, se acompanham redes sociais e de fãs etc. Aqui, o professor precisa abandonar preconceitos e ouvir como as relações que o aluno tem com o jogo estão inseridas no tempo, nos dias e semanas e como elas se combinam com outras ações vividas no cotidiano.
Vale abrir espaço para relatos e testemunhos que conectem a ação de jogar e as necessidades que permeiam o dia a dia. Depois dessa abertura, é possível começar a associar outros hábitos que se espera que o aluno adquira ou implemente, sugerindo que ele reserve tempo também para diálogos em grupo, leituras, reflexões pessoais e escrita, assistir a palestras, entre outros.
O processo de organização do tempo e do espaço, um problema fundamental em qualquer processo educativo, com a pandemia, se torna ainda mais necessário e relevante.
Valorizar o tempo, organizar demandas e construir espaços na agenda para projetos a curto, médio e longo prazo são habilidades que exigem treino, hábitos diários e escolhas conscientes. Em alguns grupos, é possível utilizar aplicativos ou mesmo recursos de monitoramento presentes nos smartphones no processo de formação de consciência sobre o tempo dedicado a atividades como Instagram ou jogos. É bastante comum os alunos se surpreenderem com a quantidade de horas que dispendem e, com isso, compreenderem suas escolhas e assumir responsabilidade sobre elas.
Por fim, na terceira dimensão, nossa proposta valoriza as narrativas míticas e vivências afetivas que os games oxigenam. Em jogos de grande sucesso mundial, somos convidados a viver experiências arquetípicas e nos reencontramos com figuras como heróis, monstros e labirintos. Ao jogar, assumimos papéis protagonistas e nos deparamos com conflitos e riscos que exigem tempo para serem superados.
No espaço transitório dos jogos, vivenciamos experiências e desafios cognitivos que se relacionam com diferentes modos de pensamento, estratégias e experiências em equipe. Além disso, nos jogos, é possível acoplar de forma orgânica as forças dos afetos que povoam nossa capacidade de imaginação com os movimentos que acionam o raciocínio lógico. Ou seja, é nessa dupla identidade que articula afeto e estratégia que precisamos entender o jogador, sua presença ativa e sua concentração no ato de jogar.
Para entender os impactos dos videogames no comportamento cerebral, pesquisas em neurociências lançam hipóteses que incluem não só os estímulos de natureza motora (do tipo ação e reação), mas também os imaginativos, que incluem a capacidade de produzir imagens e narrativas e de ser afetado por elas. Nesse sentido, as pesquisas incluem a dimensão cultural e subjetiva, trazendo para a análise relatos sobre a experiência de jogar. Esses estudos geraram resultados que apontam para novas direções na associação entre jogo e educação.
Uma das descobertas reside no fato de que determinados personagens, ao serem vividos repetidamente por um jogador, acabam por gerar memórias que afetam as habilidades motoras e estratégicas dele. Ou seja, os acoplamentos entre avatar e jogador passam a constituir uma estrutura estratégica e afetiva de ação no mundo do jogo. Em paralelo a essa constatação, podemos incluir estudos científicos que demonstram como os afetos, as emoções, a memória e as histórias de vida podem atuar contribuindo na intensificação do aprendizado, trazendo envolvimento para o aprendiz e dando significado para o ato de aprender. Em suma, o jogador, ao construir uma relação imaginária com os personagens, vivencia de modo ativo a criação de espaços de memória e aprendizado.
Por fim, argumentamos que aprender com os jogos é se permitir encontrar no jogo as bases para novas aventuras, encontros e diálogos nos processos de ensino e aprendizagem e, com isso, redescobrir caminhos e vertentes na educação.
Jaderson Souza
De alguns anos para cá, os jogos digitais vêm ocupando cada vez mais espaço na sociedade. Além do entretenimento, os games recebem, há décadas, o olhar de diversos pesquisadores, do Brasil e do mundo, sob a perspectiva de que é possível produzir conhecimentos pelo meio digital. Em pesquisa realizada em 2011, pelo programa em Tecnologias da Inteligência e Design Digital na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), buscamos compreender o fenômeno por meio de algumas vias de acesso. Atualmente, damos continuidade a esses estudos por meio do programa Diversitas, Núcleo de Diversidades, Conflitos e Intolerâncias, da Universidade de São Paulo (USP).
Em primeiro lugar, é possível uma análise dos jogos digitais que mostre que, dentro deles, elementos da cultura não somente se fazem presentes, bem como são promovidos.
Isso significa que um game pode funcionar como um agente de produção e promoção cultural, enlaçando seus usuários em um diálogo com a tradição oral, tal como o faz o livro por mais de 500 anos.
Enquanto você joga, é possível acessar, de antemão, alguns desses elementos. As mecânicas dos games, as quais se encarregam de conduzir as ações em ambiente virtual (como andar, correr, pular etc.), conduzem uma das partes importantes da experiência e que diferencia o jogo digital de outras mídias: a interação.
Já as narrativas carregam outra parte fundamental quando falamos de jogos e educação: as histórias. Como narrativas embutidas, elas trazem temas e enredos produzidos por roteiristas e que aparecem no formato de texto, dublagem, elementos visuais etc. Como narrativas emergentes, essas histórias podem ser criadas pelos próprios jogadores e jogadoras, ao passo que navegam pelo ambiente virtual.
Neste ponto, cabe ressaltar a impossibilidade de responsabilizar o videogame, como objeto, de conduzir todo o processo de educação. Menos ainda, a imposição de compreensões “corretas” ou “incorretas” quanto à experiência com os jogos. Não me refiro aos objetos educacionais, aqueles que acompanham apostilas técnicas, e que muitas vezes se assemelham aos videogames.
Além de a compreensão passar por características subjetivas e repertório cultural, o filósofo Ernildo Stein (2011) nos coloca que dispositivos como os games podem possuir estruturas intencionais ou não intencionais, ou seja: o expresso na jogabilidade pode ou não identificar-se com a intenção dos designers.
Como educadores, é possível (e necessário) fomentar o pensamento crítico por meio de atividades com jogos digitais, buscando chamar a atenção para elementos de interesse educacional. Esse processo pode ser realizado por meio da mediação com games. Por exemplo, o processo acontece nas vivências que realizamos junto ao Sesc e outros espaços de educação não formal desde 2009. Como educadores sociais, buscamos promover temáticas variadas, levando os jogos digitais para programações como Tecnologias e Artes, Esportivo, TSI (Trabalho Social com Idosos), entre outras.
Na prática, além de disponibilizar uma curadoria de jogos para a ocasião, a principal estrutura para a realização, como atividade educativa, é a mediação. Realizada por especialistas de áreas como Educação Física, Comunicação das Artes do Corpo, Jogos Digitais etc., cabe à mediação acompanhar, conversar e promover questionamentos de maneira ativa nas atividades. Alinhada com a experiência nos jogos, a mediação busca fomentar a construção de saberes a partir do pensamento e análise crítica do próprio ato de jogar, aproveitando-se, desse modo, do sentido promovido por tais experiências.
Há outra situação interessante que gostaríamos de apresentar. Trata-se de quando, na produção de um game, seus realizadores, de antemão, o tomam como um objeto cultural e, por meio dele, colocam questões aos seus usuários. Exemplos desse tipo descortinam verdadeiras dinastias culturais, de curta ou longa duração, que se tornam ícones da cultura digital, quando não objetos cult.
Há muitas obras construídas nessa perspectiva e que, inclusive, são produzidas no Brasil. Eis alguns exemplos: Huni Kuin, jogo produzido por Guilherme Meneses em parceria com indígenas da etnia Huni Kuin (AC). Queen of Seas 2, de Kombits Game Studio, que traz elementos da mitologia iorubá. A Nova Califórnia, criado por mim e Tainá Felix, pelo Game e Arte, que apresenta uma adaptação do conto homônimo da literatura brasileira, do escritor Lima Barreto. Florescer, da PugCorn, que traz a história de Bia, uma adolescente transgênero, e que fora construído em parceria com a casa de acolhida para mulheres travestis e transexuais Florescer, em São Paulo.
Todas essas obras, algumas inclusive disponíveis por tempo limitado na curadoria Lugar de Jogo, na plataforma Sesc Digital, trazem o exemplo do videogame pensado como fenômeno capaz de difundir diversas culturas e promover educação. Além das obras e todas as possibilidades de mediação, é importante frisar que grande parte desses trabalhos é realizado por (e com) pessoas das comunidades. Dessa forma, esses jogos não são somente sobre as pessoas, mas são produzidos com elas. Ora, se compreendermos a educação a partir de sua vocação social, faz muito sentido que a produção digital, em vez de ser produzida por grandes corporações e sofrer processos de apropriação cultural, também seja desenvolvida pelas próprias comunidades.
Todas essas possibilidades podem ser acessadas por meio da educação formal e não formal. Na escola e nas universidades (educação formal), o jogo digital pode ser utilizado como material pedagógico, seja ele construído para tal finalidade (serious game), ou não. Ao pensarmos na educação como um processo contínuo, o aprendizado também pode estar presente em casa.
No domínio privado, é possível acessar os videogames por meio de diversas plataformas, como computadores, celulares e consoles. Diante da enorme oferta de títulos disponíveis, especialmente no âmbito do entretenimento, é possível buscar por obras e desenvolvedores que tragam assuntos de interesse. Ao ser compreendido como uma mídia capaz de promover cultura, entendemos o jogo como um fenômeno político. Dessa forma, o jogo digital também ganha uma importância fundamental nos equipamentos culturais da cidade e, não podemos esquecer, em todos os espaços públicos.
Com o advento das redes sociais, discussões passam a ter um papel ainda mais relevante na formação cultural. Enquanto os videogames permitem a realização de experiências virtuais e significativas, o espaço público permite realizarmos análises, desenvolver argumentos, relacionar bibliografias, levantar pontes, construir conhecimentos. Como educadores e educadoras em tempo integral, cabe a nós prezar e garantir espaços seguros e éticos para a produção de saberes, tendo como principal fundamento a emancipação contínua do ser filosófico que habita cada um de nós.