Postado em 01/09/2002
Denise Martha
"A gente não pode gravar as pessoas à vontade, deixando elas falarem e fazerem o que normalmente falam e fazem, mesmo que seja uma coisa muito diferente da que estamos esperando ouvir?", perguntou Rudney, meu aluno de vídeo, assim que concluí uma explanação sobre documentário, a partir do princípio jornalístico do o quê?, quando?, como?, quem?, onde? e por quê?, num exercício de entrevista.
Rudney é um adolescente de catorze anos, morador da periferia da Zona Sul de São Paulo. Seu repertório audiovisual está sujeito aos simulacros televisivos da realidade, como noticiários da tevê e BBBs, por isso fiquei satisfeita com a pergunta que, na verdade, é uma resposta às fórmulas esgarçadas da mídia de como imprimir realidade. É justamente sob esse aspecto que o momento atual do documentário brasileiro pode ser analisado.
Desde documentários musicais como Viva São João, de Andrucha Waddington e Jorge Alfredo, aos temas que verticalizam questões humanas, como Janelas da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho, passando pela revisão política de Barra 68-Sem Perder a Ternura, de Vladimir Carvalho, o gênero tem demonstrado que está formando um público disposto à nova leitura fílmica. Leitura que se vale de poucas tomadas, dispensa vozes em off e admite longas seqüências, ou seja, filmes BOs (baixo orçamento), agregadores de conteúdo, surpresa e economia de produção.
"Este é um documentário que estamos fazendo sobre a passagem do milênio. Queremos saber a sua opinião sobre o que mudará e o que não mudará", pergunta José Rafael, interlocutor e cameraman da equipe de Eduardo Coutinho, para um morador do Morro da Babilônia, durante a filmagem de Babilônia 2000, em pleno 31 de dezembro.
A filmografia de documentários brasileiros dos últimos cinco anos (Terra do Mar, de Eduardo Caron e Mirella Martinelli; Os Carvoeiros, de Nigel Noble; Um Certo Dorival Caymmi, de Aluisio Didier; Cine Mambembe, o Cinema Descobre o Brasil, de Laís Bodansky e Luiz Bolognesi; Tudo é Brasil, de Rogério Sganzerla; No Rio das Amazonas, de Ricardo Dias; 2000 Nordestes, de Vicente Amorim e David França Mendes; O Sonho de Rose - 10 Anos Depois, de Tetê Moraes; Senta a Pua, de Erik de Castro, entre outros títulos) está oxigenando a massa mental do espectador comum, que ainda tinha a memória nitrogenada pela estética dos cinejornais do Departamento de Imprensa e Propaganda. Estética com a qual o Cinema Novo dos anos de 1960 foi implacável.
Quem poderá contribuir para essa oxigenação?
Um exemplo dos anos de 1970 nos faz lembrar do feliz casamento entre cinema e tevê. Naquela época, o departamento de publicidade da Shell, junto com uma grande emissora de tevê, apostou numa programação mensal de documentários, proposta que deu origem ao Globo Repórter. Filmes dirigidos por Geraldo Sarno, Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr., Jotair Assad, Eduardo Escorel, Osvaldo Caldeira, Luis Carlos Maciel, João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, Sylvio Back, Roberto Santos, Denoy de Oliveira, León Hirszman e Hermano Penna despontavam com sessenta pontos no Ibope.
Lamentavelmente, hoje são poucos os diretores de marketing que procuram os escritórios do Minc, espalhados pelo país, para obter algum preparo em lidar com mecanismos de leis de incentivo e saberem aonde colocar seus investimentos. Por outro lado, são muitos os pálidos produtores na corrida pelos recursos públicos, oferecidos mediante prazos de editais, aqueles que não discriminam hierarquias de realizadores e deixam todo mundo no mesmo saco.
O boom de documentários só não é maior porque estão todos à mercê da quimera de sete cabeças: Captação, Produção, Distribuição, Promoção, Exibição, Difusão, inclusive via tevê, e a Contestação da Motion Pictures Association, detentora de 98% do mercado cinematográfico com filmes norte-americanos, sobre as taxações reivindicadas pela Agência Nacional de Cinema, a Ancine (estabelecida em 6 de setembro de 2001, via Medida Provisória, com a finalidade de fomentar, regular e fiscalizar a nossa indústria de cinema).
Oxalá seja ela o santo com que cada projeto possa contar nas encruzilhadas, para se ver livre do esquecimento e dos atos de heroísmo isolados, para que baixe de uma vez por todas a organização da via de continuidade e que esse despacho se torne uma perspectiva para os realizadores, inclusive os futuros, como o jovem Rudney.
Saravá!
Denise Martha é assistente de programação no Cinesesc e videoeducadora