Postado em 11/12/2020
* Por A Próxima Companhia
Para conseguirmos nos aproximar do tema deste texto, lançaremos mão de uma experiência que pode traduzir, em alguma medida, o que a ação artística gera como possibilidade de reflexão para diferentes temas, e aqui especificamente, Direitos Humanos. A arte trabalha no campo simbólico. A partir da estética podemos alimentar possibilidades de encontros. O encontro entre uma ideia e uma pessoa, talvez este seja um caminho particular da atuação da arte. A metáfora como transporte imaginário de uma ideia, de forma indireta, possibilita a proximidade a um ponto de reflexão sobre um assunto. Pela metáfora, transportamos as questões do mundo real para um outro lugar, da ficção, para causar empatia, distanciamento, diálogo e ampliar a reflexão.
Aqui nesse exercício vamos trazer como proposta alguns curtos episódios que fazem parte de uma série de vídeos, um brevíssimo panorama da experiência que tivemos circulando por vinte cidades do interior paulista com nosso espetáculo de rua Os Tr3s Porcos. Nesse sentido, nosso trabalho de criação a partir da fábula dos Três Porquinhos nos transportou para uma gama de encontros que tivemos com pessoas, paisagens e passagens por um estado que é símbolo do desenvolvimento, mas que traz a marca da falta de direitos.
O teatro é comunicação, estabelecer diálogos no encontro presencial, no instante da encenação, no palco, na praça, na quadra e na rua. Foi daí que puxamos a motivação de traduzir para a cena de rua uma peça que tratasse dos incêndios em comunidades vulneráveis, a perda do lugar onde se mora, dificuldade que tantas famílias passam a todo momento em nossa cidade. A princípio, sem elaboração intelectual, apenas com um incômodo na garganta pela necessidade de falar disso, procurar entender qual a dificuldade de olhar o direito à moradia como um direito básico de toda pessoa, mas que não recebe o mesmo peso de outros direitos, como o da propriedade. Isso não deveria ser algo natural, a igualdade e universalidade de direitos? Há algum crime em se querer ter uma moradia digna, não precária? E aqui iniciamos nossa jornada nesta circulação por municípios com grandes índices de déficit habitacional do Estado de São Paulo.
Ep. 0 - Os Tr3s Porcos - Prólogo:
A rua te abraça e te engole, a rua é um lugar que a princípio é de todos e a arte também se assimila a essa possibilidade de liberdade. A arte apresenta pontos de vista e com isso gera reflexão. Toda a arte é política por expressar um discurso no mundo. Se somos seres políticos e fazedores de arte, então nossos trabalhos serão realizados a partir das ideias que nos constituem politicamente. Para podermos ler uma obra, temos que entender que a arte propõe um diálogo para quem tem contato com ela, seja um grafite na rua, uma escultura em um museu, um quadro na parede, um livro de contos, uma dança tradicional, um filme. Todas as manifestações artísticas têm camadas para conversar com o público, e sua forma irá dizer muito da maneira pela qual as pessoas irão interagir e se permitir serem atravessadas, tanto por aquele trabalho artístico, como pela narrativa simbólica que ele oferece.
O acontecimento da peça nos possibilita visitar sempre nossos pensamentos e refletir inclusive sobre as nossas certezas. É no encontro, na relação presente que o teatro ganha potência de ação e reação, pois o grupo de teatro e o público estão naquele mesmo instante agindo e reagindo. Neste sentido que optamos por ampliar esse canal e troca direta com o público a partir da figura do palhaço: para transgressoramente poder contar mais uma vez uma história bem conhecida. Apesar de toda fábula trazer consigo uma moral, optamos por uma postura ética diversa daquela usualmente sustentada em suas recontagens. Escolhendo um ponto que não era o enaltecimento do trabalho e mérito individual, mas sim o simples direito a poder estarem coletivamente em um espaço ocioso, público e sem uso social da cidade para poderem morar.
Enquanto morar for um privilégio, lutar é um direito. É assim que movimentos de moradia carregam suas energias para poder viver na batalha pela justiça, é pelo entendimento de que a moradia é a porta de acesso para muitos direitos que as pessoas se organizam, para terem melhores e mais dignas condições de moradia, e consequentemente, de acesso à saúde, à educação, ao trabalho. Um comprovante de residência não é banalidade, é instrumento de acesso a direitos básicos garantidos.
Ep. 7 - Os Tr3s Porcos - Piracicaba:
São muitas as iniciativas de coletivos e fazedores que buscam, por meio da arte, trazer a público as questões sociais, os direitos dos cidadãos e cidadãs e os deveres do estado. Nessa perspectiva, fazer um espetáculo de rua traz a intenção de se criar temporariamente um espaço de discussão pública, de fruição, de acesso democrático a um bem cultural, trazer o exercício prático do direito à cidade e ao tempo livre como potência dilação do que o espaço urbano pode ser. A arte, principalmente a que é realizada de forma pública, tem como gesto o próprio direito à cultura, a reflexão sobre diversos outros temas a partir de um tema gerador que é o direito à moradia e o direito à cidade.
A função social da arte está em nutrir possibilidades de futuro, apresentando o tempo presente. Paulo Freire se refere à educação como instrumento de denúncia e anúncio, não por acaso que as duas áreas, ainda que garantidas nas letras das leis como direitos, são historicamente pontos de disputa para a manutenção de estruturas, para limitar a ampliação de horizontes e autonomia.
Para além dos limites da arte como tradução estética dos tempos e imaginários, os coletivos e espaços culturais assimilam em suas atuações outras esferas de ação para suprir necessidades variadas do seu entorno, mas também dos próprios desdobramentos em consequência de sua ação no mundo e nas comunidades e na própria articulação com parceiros e parceiras de outros campos.
Ep. 11 - Os Tr3s Porcos - Presidente Prudente:
É importante que a reflexão esteja calcada em uma ação prática e coletiva, tanto em ações locais como em rede. É necessário que haja resistência, pois os Direitos Humanos, apesar de serem tidos como algo natural e inerente à vida de todas e todos, não são praticados com igualdade e portanto sua garantia é exercida a base de grandes lutas diárias e que ocorrem em diferentes espaços e contextos. Dentre os direitos a serem diariamente assegurados por nossas lutas encontra-se a arte e suas diversas formas de manifestação, como é o caso das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, em São Paulo, ou na Vila Autódromo no Rio de Janeiro, que compartilham em suas falas essas articulações nesta conversa promovida pela série Ideias, do Sesc SP, em outubro de 2020. Ali também tivemos oportunidade de partilhar das nossas experiências artísticas pela participação de um dos três porcos d’A Próxima Companhia e que foi um espaço importante para pensarmos as lutas do campo e da cidade em um momento que os despejos aumentam avassaladoramente, mas que temos que nos inspirar em iniciativas e ações que são exemplos de sobrevivência e luta.
Sesc Ideias - Remoções na cidade e no campo: impactos nas comunidades:
É importante entender a reflexão sobre os Direitos Humanos pela arte, como uma camada contida nas próprias existências e criações que se propõe a estarem em diálogo com a sociedade.
* Por Caio Franzolin, Caio Marinho e Gabriel Küster, em parceria com Eduardo Liron e Renan Vasconcelos, da Grão Filmes. A Próxima Companhia é um núcleo artístico da Cooperativa Paulista de Teatro que, desde 2014, pesquisa questões da memória, territórios e a relação entre intérpretes e público. O grupo mantém uma sede nos Campos Elíseos, centro de São Paulo.
** Todos os episódios da série de vídeos sobre a circulação de Os Tr3s Porcos pelo Estado de São Paulo serão lançados em 2021, acompanhe nas redes sociais do grupo @aproximacompanhia.