Postado em 05/12/2020
*Por Carol Ferreira
"Quem ensina aprende ao ensinar. E quem aprende ensina ao aprender”, eternizou Paulo Freire. E foi sob essa máxima que iniciamos o projeto Troca de Saberes, com participantes do Trabalho Social com Idosos (TSI), no Sesc Guarulhos.
Pegos de surpresa com o fechamento da unidade por ocasião da pandemia do novo coronavírus, os idosos e as idosas que frequentam regularmente as atividades no Sesc Guarulhos relataram se sentir sozinhos e apreensivos com o distanciamento social e a quarentena. A primeira atividade online proposta foi o Ponto de Encontro Virtual, atividade que era realizada presencialmente. No início, os encontros aconteceram por meio de um grupo formado pelo aplicativo WhatsApp.
O grupo, empolgado com a interação, começou a demandar mais conteúdos e atividades. Por conta disso, foram propostos encontros entre os idosos para troca de saberes e experiências. O grande foco era esse compartilhamento por meio da tradição oral tendo a maturidade valorizada.
Como preparação, o grupo recebeu um tutorial para aprender a fazer chamadas de vídeo via o aplicativo WhatsApp, por ser popular e simples, além de uma ferramenta que poderiam utilizar com frequência.
“Para mim é uma vivência especial, até mágica. Mágica nesse momento porque nós estamos tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximos, trocando nossos conhecimentos e nossas experiências. Onde as diferenças culturais, regionais e sociais se completam e nos enriquecem também. Nós ficamos sabendo de coisas diferentes”, conta Neusa Batista, 72 anos, a primeira a aderir à Troca.
Neusa praticava Lian Gong (ginástica oriental criada pelo médico ortopedista Zhuang Yuan Ming, como uma forma de permitir aos seus pacientes que continuassem a fisioterapia por conta própria), mas estava parada há cinco anos. A proposta da Troca de Saberes a fez retomar para, agora, ser a “professora”. Além da inversão de papéis, outra novidade foi a busca de informações com ajuda do Google e do YouTube. “Acessei o YouTube, peguei o Lian Gong com o mestre que eu mais queria assistir, que é o Jaime Kuk”.
As aulas são ministradas em duas turmas: às terças e quintas e às quartas e sextas, sempre pela manhã. Neusa é uma professora aplicada: grava vídeos, envia apostilas e cobra treinamento fora do horário dos encontros. Para ela, também foi um desafio aprender a ensinar. “A gente não só troca, a gente soma! Porque essas trocas nos enriquecem. Nos tornam mais sabidas, tolerantes, criativas e sensíveis.”
Eliana Mello, 65 anos, faz coro com Neusa: “É um aprendizado a mais, porque estou aprendendo e estou ensinando ao mesmo tempo. A prática de ensinar mudou para mim, no aspecto de incentivo. (...) Eu fiquei com mais vontade de aprender coisas para poder ensinar. Ainda mais nesse tempo em que estamos: quarentena, distanciamento... nós não podemos nos encontrar com as pessoas, mas temos o recurso online”.
Eliana, que também foi escolhida Miss Simpatia Melhor Idade em Guarulhos por cinco vezes consecutivas, ensina artesanato com pérolas. “Para mim está sendo muito bom, porque a gente não vê a hora que chega aquela tarde para poder ensinar. É muito gostoso!”. Os encontros que ela conduz acontecem às segundas à tarde.
Maria Emília, 66 anos, é uma aluna dedicada em ambas as atividades. “Eu precisava fazer alguma atividade física e resolvi fazer o Lian Gong, oferecido pela Neusa, e o artesanato de pérolas, oferecido pela Eliana. Infelizmente, essa necessidade de isolamento pelo qual estamos passando motivou as pessoas a ações como essas, pela internet. Foi bom para quem precisava fazer alguma atividade e foi bom para quem tinha algo, algum conhecimento, para passar para outras pessoas, formando um universo de pessoas que se ajudam mutuamente”.
Ela destaca que muita coisa mudou depois de começar a participar da Troca de Saberes. “Deixei de ser uma pessoa totalmente inativa – pois, infelizmente, essa pandemia está nos obrigando a ficar sem movimento, sem sair, sem fazer alguma atividade – e ainda passei a praticar uma atividade que é curativa. O Lian Gong é uma das primeiras práticas orientais que soma arte corporal e medicina, e tudo isso é muito bem explicado pela Neusa. Por outro lado, a Eliana também nos ensinou o artesanato com pérolas, que além de ser uma arte, enquanto nós estamos aprendendo, nós ficamos proseando, conversando umas com as outras e, ainda, podemos presentear outras pessoas com aquilo que a gente aprende a fazer”.
Maria Emília comemora o fato de ter formado um grupo de amigas, sendo que algumas ela ainda não teve a oportunidade de conhecer pessoalmente. Sua empolgação em participar dessa e de outras atividades oferecidas remotamente nesse período foi tão grande que motivou a irmã e o cunhado, moradores de São Paulo, a também fazerem parte do grupo.
Izabel Moreira, 68 anos, lembra que algumas trocas foram feitas nas conversas por meio do grupo de WhatsApp, compartilhando receitas, dicas caseiras e ela, inclusive, compartilhou com os colegas uma composteira feita em seu apartamento. “Como eu passei a cuidar mais de perto das minhas plantas, tive vontade de fazer compostagem e não sabia nada. Meu irmão, que fez um curso técnico de Meio Ambiente, me ensinou a fazer e me deu algumas instruções de como fazia, e eu contei isso no nosso grupo de encontros do Sesc e compartilhei”. O assunto rendeu tanto que foi tema de um Ponto de Encontro, que contou com a participação dos educadores do Centro de Educação Ambiental (CEA) do Sesc Guarulhos, Moacyr Turuzawa e Renata Crivoi. “Eu sou uma pessoa muito ansiosa e precisava ter uma rotina e aí fui participando de várias coisas que o Sesc nos proporcionou”, conta.
Emocionada, diz que o Sesc a acolheu e ajudou a preencher o seu tempo e a criar uma nova rotina “nessa correria, e loucura, que foi – e ainda é – a pandemia”.
Atividade "Bordando histórias com Jacira Roque", ocorrida no Sesc Guarulhos em 2019 (Foto: Alexandre Leopoldino)
Para Rosamaria Rodrigues Garcia, fisioterapeuta, especialista em Gerontologia pela SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia), mestre e doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), atividades que promovem a interação, como a Troca de Saberes, são extremamente benéficas à população idosa. De acordo com ela, empoderam, melhoram a autoestima, a autoimagem e o senso de autoeficácia.
“Esses idosos também se sentem valorizados, no sentido de transmitir o conhecimento que eles adquirem ao longo da vida para outras pessoas, e isso é extremamente relevante para a pessoa idosa, principalmente para aquelas pessoas que já não exercem mais nenhuma atividade remunerada. Então, muitas vezes, o fato de ela parar de trabalhar e não exercer mais nenhuma atividade remunerada, acaba tirando esse papel importante que o ser humano tem, que é do trabalho, de ter uma função”, considera.
A especialista destaca que a Organização Mundial da Saúde e o Instituto Longevidade Brasil preconizam que, para envelhecer de forma ativa, a pessoa precisa ter oportunidades em quatro pilares: saúde, participação social, segurança ou a proteção, e aprendizagem ao longo da vida. A Troca de Saberes pode ser inserida nesse último. "Claro que agora, durante a pandemia, isso se torna mais benéfico, principalmente em virtude da interação social, dessa conversa, dessa troca, mesmo que seja de forma remota (...), mas, mesmo quando a pandemia acabar e as atividades voltarem ao normal, é vantajoso manter esse tipo de atividade, porque você valoriza a aprendizagem ao longo da vida. É a oportunidade que o idoso tem de ensinar aquilo que ele sabe e de aprender algo novo, algum conhecimento. Isso pode, por exemplo, se converter em uma nova prática, uma nova atividade que ele pode fazer ao longo da vida dele”, completa.
Antes de falar sobre o protagonismo da pessoa idosa, Rosamaria acredita que é fundamental entender a velhice como mais uma fase da vida. "O envelhecimento tem que ser entendido como um processo fisiológico, que vai acontecendo ao longo de toda a nossa vida: até mesmo as crianças envelhecem. A gente vai envelhecendo a cada dia, é um processo natural do ser humano. A velhice é uma etapa da vida, assim como existe a infância, a adolescência, a juventude, a idade adulta...”, explica. Para ela, ditar o que o idoso pode ou não fazer é um preconceito que deve ser desconstruído: a pessoa idosa tem condições de fazer qualquer coisa que ela quiser! Partindo desse pressuposto, o protagonismo é tão importante quanto para a criança, o jovem, o adulto... “O idoso vive na sociedade querendo, sim, participar, querendo, sim, ter voz, ter vez”, acrescenta.
Atividade Guarulhos Postal - uma volta por um ponto turístico da cidade, com fotografia e produção de cartões postais, ocorrida no Sesc Guarulhos (Foto: Thamires Motta)
"O idoso não volta nunca a ser criança, não existe isso! A gente tem um curso de vida e não um ciclo, você não vira criança ao ficar velho! Acho que uma das maneiras de valorizar a maturidade é considerar a idade que essa pessoa tem e a experiência que ela vai adquirindo ao longo dos anos”, informa Rosamaria. Entender e dar importância à essa bagagem é o primeiro ponto que a sociedade deve entender para valorizar a maturidade.
O segundo ponto apresentado pela especialista é desconstruir o preconceito de que a pessoa idosa não pode mais trabalhar. Mesmo que hoje exista um movimento nesse sentido, ela classifica como uma mudança lenta, sobretudo porque muitas vagas oferecidas são “subempregos”, como office boy, expositor de imóveis, por exemplo, e com salários ínfimos. “O idoso tem um conhecimento gigantesco, que pode ser aproveitado. Na verdade, se contrata uma pessoa mais nova que, às vezes, nem tem tanto preparo, tanto conhecimento assim, por conta desse preconceito da idade”, lembra.
Rosamaria diz que devemos considerar, inclusive, outras formas de trabalho, como a oportunidade de cooperação gerada através do projeto Troca de Saberes. “O idoso tem direito de continuar trabalhando, ele tem direito de abrir negócio, ele tem direito de tentar uma nova carreira, fazer uma nova faculdade, aprender novos idiomas, ser inserido do ponto de vista digital”, aponta.
Para ela, instituições e iniciativas voltadas ao bem-estar da pessoa idosa, equipamentos públicos, a mídia e a sociedade têm que promover campanhas para desmistificar os estereótipos que existem contra os idosos.
Além disso, é muito importante ouvi-los, sobre seus anseios e necessidades. “Eu acho interessante quando esse idoso, por exemplo, participa das decisões, escolhe as atividades, porque aí você tem um processo que é feito e que é pensado a partir do idoso e não para o idoso. Quando você pensa a partir do idoso, você considera o que ele quer, o que é interessante para ele e não aquilo que você acha que é bom para ele, não o que a sociedade acha que é bom para ele, então, acho que esse protagonismo pode começar - deve começar - na tomada de decisão”, orienta.
Rosamaria lembra também a questão do gênero e destaca a importância de se pensar atividades para os homens idosos, com ações que façam parte do universo masculino. “Homens acabam, muitas vezes, tendo mais dificuldade para reagir diante de doenças crônicas, de procurarem apoio, de se cuidarem. Muitas vezes, depois que se tornam viúvos, acabam tendo um prejuízo no estado nutricional, no estado emocional, e tudo isso está relacionado à questão social também. A interação social diminui, então, é importante que se preveja oportunidades direcionadas para esse público, pensando nessas características. Eu acho que isso também é importante de ser considerado”, finaliza.
Confecção de bonecas de pano (Foto: Alexandre Leopoldino)
As atividades remotas oferecidas pelo Sesc Guarulhos continuam. Em dezembro, o Ponto de Encontro Virtual será realizado no dia 15, a partir das 15h. O encontro será um Sarau Virtual, para celebrar e encerrar as atividades de 2020.
Interessados em participar desta e outras ações, podem entrar no grupo do WhatsApp através deste link.
*Carol Ferreira é jornalista, especialista em Marketing. Atua como Animadora Cultural no Sesc São Paulo, na unidade de Guarulhos, sendo responsável pelas linguagens de Direitos Humanos, Diversidade, Idosos e Infâncias e Juventudes.