Postado em 01/12/2020
Como voltar a passear pela cidade se não podemos sair de casa? E se for possível, virtualmente, realizar uma volta pelo centro da cidade de São Paulo e ainda descobrir neste trajeto novas histórias de lugares já tão conhecidos?
Impulsionados por estas reflexões, os coletivos Pisa e Pepito realizaram, à convite do Sesc Carmo, a criação de animações que transportam ao universo digital o prazer da descoberta das diversas camadas históricas de ruas importantes que marcaram o início da formação da cidade de São Paulo. O resultado foi a série Camadas da Cidade, que integrou também a programação do Sesc na Jornada da Patrimônio 2020 no início de dezembro.
Convidamos o Renato Cymbalista, do coletivo Pisa, para nos contar um pouco mais sobre o processo de criação desta série e narrar como foi esta aventura virtual pela história da metrópole paulistana.
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* Por Renato Cymbalista
A experiência com os percursos na cidade vem de alguns anos, em que o Pisa apresenta as ruas e espaços públicos como objeto de vitalidade inesgotável, resultado da incidência permanente de seus atores sociais públicos, privados, institucionais, corporativos. A possibilidade de estar na cidade, de percorrer o território, é central no nosso trabalho, e nos vimos repentinamente impedidos disso. A pandemia surpreendeu o Coletivo Pisa em voo de cruzeiro.
Estávamos em campo com diversas pesquisas, preparando percursos pela cidade, tendo o Sesc São Paulo como principal parceiro por meio de seu programa de Turismo Social presente em várias unidades. Um dos projetos tinha como proposta a elaboração de uma série de percursos em ruas específicas no entorno da unidade do Sesc Carmo, e esta ideia, então, foi adaptada para a realização de vídeos no formato de animação que colocassem em evidência as diferentes camadas de historicidade destes locais – o relevo, a hidrografia original, a ocupação indígena antes dos portugueses, as transformações mais aceleradas após a ocupação europeia e as diferentes ondas de ocupação e edificação até os tempos atuais.
Para este novo desafio buscamos a parceria com profissionais de um outro coletivo, o Pepito, que agregaram novas competências ao trabalho – ilustração, animação, narração, roteiro. Um bom vídeo (assim como um bom percurso na cidade) precisa de uma boa narrativa e de bons personagens, mas também do exercício radical do poder de síntese. Nos nossos projetos estávamos acostumados a dispor de no mínimo noventa minutos com os grupos, chegando a até um dia inteiro em programas mais complexos. Neste novo mundo online, esse tipo de temporalidade de convivência é um privilégio inimaginável, cada segundo precisa ser planejado e aproveitado.
Na Rua 25 de março mostramos um rio Tamanduateí que insiste em não desaparecer do mapa. A rua que liga a parte alta à parte baixa do centro sempre teve um papel importante e estruturante do espaço. Mostra a chegada dos imigrantes sirio-libaneses, como mascates, a consolidação do grupo e os sucessivos reinvestimentos na 25.
Na Avenida Liberdade o foco foi o contraponto entre um território de histórias e memórias diversas e a iniciativa pública de qualificação do espaço como bairro oriental. O vídeo traz a memória dos equipamentos de repressão e controle do espaço, que se instalaram naquele lugar: a forca, o pelourinho, a casa da pólvora. A repressão e a resistência marcam a memória negra no local, que sobrevive há décadas na cultura e nas narrativas populares, em contraponto à ação do Estado que trouxe o apagamento seletivo desta história. Um exemplo disso é o projeto de turistificação da avenida e do bairro, a partir da década de 1970, baseado em sua identidade oriental.
Na animação sobre a Rua do Carmo, destacam-se a presença da religiosidade, que estruturou o espaço da cidade por séculos, e as transformações na cidade ao longo do tempo estampadas nos nomes das ruas, onde se revela quem ganhou ou perdeu nas batalhas simbólicas.
A Rua da Glória já teve muitos nomes, mas deriva-se como um pedacinho do primeiro caminho da cidade para o litoral, o caminho do Peabiru. Ela já foi estrada, pelourinho, endereço de pessoas famosas e instituições sociais importantes como a Santa Casa e até deu abrigou uma gafieira.
A história da Rua do Glicério começa pelo entorno do Lavapés, no século 17, um espaço deixado de lado na cidade. Usado como lugar de quarentena, serviu de refúgio a escravizados fugidos. Ao longo dos séculos, a especulação sobre os terrenos da região enriqueceu um punhado de proprietários com os alugueis de pessoas que chegavam a São Paulo de outras partes do país e do mundo.
A série de animação Camadas da Cidade mostra que os diferentes passados estão presentes na contemporaneidade de alguma forma, e que podemos narrar a cidade tendo como horizonte a convivência dos grupos e identidades, e não a sua substituição, trazendo a cidade como o espaço de diálogo dessas diferenças e tensões.
O Pisa não esconde, ao contrário, explora as tensões do passado e do presente. Não apresentamos a cidade como objeto belo, bem acabado ou apaziguado, ao contrário, exploramos as disputas e desigualdades. Desta forma, em sintonia com os conceitos que permeiam toda a programação do Sesc em São Paulo e se ampliam por meio de suas atividades em turismo social, esta série propõe uma reflexão sobre os desafios da contemporaneidade, anunciando perspectivas de alargamento de um horizonte futuro de direitos, democracia, diversidade e convivência.
*Renato Cymbalista, do coletivo Pisa, é professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
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