Postado em 01/09/2002
Em artigos exclusivos, professores e educadores discutem a relação entre os dois temas no atual cenário social brasileiro
Renato Janine Ribeiro
é professor titular do Departamento de Filosofia da USP
Nunca, na história humana, tanto conhecimento esteve disponível. Nunca o jovem soube tanta coisa quanto sabe hoje. E, no entanto, notamos como é difícil para ele escolher uma carreira. Mas não é verdade que isso se deva a um amadurecimento tardio dos jovens: o que acontece é que jamais se soube tanto tão cedo e, com isso, a liberdade de opções, uma conquista tão importante, traz a dificuldade, a demora em assimilá-las. Penso, porém, que essa inquietante riqueza de escolhas veio para ficar. Mesmo os integrismos morais e os fundamentalismos religiosos, que negam a liberdade do corpo, da mulher, da sexualidade - liberdades essas que, todas elas, têm muito a ver com o que chamamos de dança -, constituem estases de defesa, estações provisórias de repúdio a desejos e direitos que, certamente, terminarão por vencer a parada.
O que fazer pela educação nesse quadro de liberdades ampliadas e de decisões difíceis, por vezes angustiadas? Alguns sugerem ancorar os referentes, querendo salvar as pessoas da diversidade de opções e da voragem das escolhas. Discordo. A única alternativa válida é ampliar, ainda mais, a liberdade. Isso significa, no plano da educação e da cultura, que toda pessoa - da criança ao idoso, pouco importa - deve ter acesso a muito mais do que o conjunto de conhecimentos, geralmente literários, de que dispunha no começo do século 20.
Houve duas revoluções culturais no século em que nascemos, e é preciso que elas prossigam. Uma consistiu em ir bem além do cânone ocidental. Em nosso país, há apenas cem anos, os poucos que estudavam tinham acesso a um saber bastante convencional; o latim, por exemplo, em vez de estimular o raciocínio pelo que há de lógico na sua sintaxe, servia de veículo para uma educação moral e cívica, que tolerava, porém, o preconceito de raça e de gênero. Mas começamos, desde então, a aprender outros conteúdos, e hoje é apenas uma questão de tempo virmos a ter cursos regulares de história que abordem a África e a Ásia, por tanto tempo ignoradas.
Contudo, há outra revolução, que é ir além do literário. O corpo, do desprezo que lhe votou a era judaico-cristã, passou a ser valorizado - e não apenas como um instrumento de bem-estar. Fala-se em saberes que ele tem; o corpo vê-se associado por muitos às dimensões mais profundas da psique; a saúde passa a ser entendida integrando-o com o que era chamado de alma... Nisso tudo, a dança tem um papel fundamental. Ela ativa linguagens. Ela diversifica percepções. Ela amplia o conhecimento.
Mais que isso: a dança tem um forte elemento de jogo, que faz dela quase um fim em si mesma. Ela é extremamente lúdica, e hoje um dos maiores desafios para a educação, se não for o maior de todos, consiste em recuperar o prazer no aprendizado.
As crianças pequenas sabem fazer isso. Elas são extremamente curiosas, ávidas de conhecimento. O saber as alegra. Elas riem quando aprendem uma palavra nova. Perguntam sem parar. Sua velocidade de aprendizado, nos primeiros três anos, não terá paralelo em nenhuma fase ulterior da vida. Mas isso pára logo. Aos seis ou sete anos, quando entram na escola convencional, o divórcio já se instituiu entre prazer e conhecer.
É preciso mudar isso. E para essa estratégia de uma gaia ciência, de um conhecimento alegre, é decisivo que o corpo dance, brinque, ensine. Reconheço que não será fácil implantar isso nas redes escolares, mas está no rumo de nosso tempo, na linha de nossos desejos, fazer do aprendizado algo que não se separe mais nem do prazer, nem do corpo - como sabem as crianças e ensina a dança.
Milton José de Almeida
é pesquisador e coordenador do Laboratório de Estudos Audiovisuais-Olho, Faculdade de Educação, Unicamp.
Assistir a um filme é estar presente a uma narração em aparição luminosa.
Narrados pela luz e pelo tempo, pessoas e lugares, um mundo e uma história que não existiam antes que os víssemos no filme nascem, aparecem e desaparecem durante a projeção.
O poder do cinema como educação cultural, política e visual vem do muito que assistir a uma sessão de cinema tem a ver com uma participação ritual ou mística. O espectador é convidado a participar de uma liturgia da luz e do tempo, de uma cerimônia em que a memória e a história são trazidas em pedaços de filme numa espécie de oferenda visual. A distância física e racional que o separa do que está vendo e ouvindo é reduzida enquanto ele é imerso em imagens que reforçam vínculos irracionais com a sociedade e o tempo vivido.
Não podemos esquecer, também, que o cinema surge na longa história da educação visual feita de representações, criação e uso de imagens e narrações, e é herdeiro e mantenedor da arte da perspectiva renascentista - arte da representação artificial do real.
A perspectiva, teoria e técnica geométrica e matemática, ao ordenar objetos e pessoas no espaço do plano de acordo com distâncias e proporções, ordena também o tempo que impregna pessoas e objetos e o ar - o espaço - que os circunda. Faz com que o tempo passe a ser visível. É uma grade estrutural que fornece uma existência visível para a História, e uma estrutura técnica, estética e política que habita o interior da câmera cinematográfica.
Longe de ser um instrumento neutro, a câmera cinematográfica tende a ser uma máquina política: ao apresentar visualmente as imagens, já as interpreta e participa ativamente de seu conteúdo. Ao vermos um filme, vemos histórias em imagens pré-interpretadas pela gramática visual, política e social da técnica de captação de imagens das câmeras e filmadoras. Essas imagens participam da relação social e simbólica que liga os espectadores às imagens e oferece reconhecimento e sentido aos filmes assistidos. Daí ser possível falar de uma linguagem visual, de uma educação visual e sonora, de uma educação cultural.
Como se prospectam matérias-primas e elas são transformadas, a indústria cinematográfica capta imagens no mundo externo ou as fabrica nos estúdios. Cada fotograma, cada seqüência filmada poderá ser extraída de seu contexto, retirada de sua continuidade temporal e tratada como peça de uma grande imagem, ou produto final, que será o filme. O real filmado é transformado em células temporais, ligadas umas às outras numa seqüência de movimentos constantes: em ritmo, pulsação e fluxo de luz. O tempo será estruturado numa nova narrativa, e cada filme será uma nova interpretação artística e política da História.
Mesmo quando "encena" ou "representa" o passado, todo filme é uma representação no presente e uma forma de conhecimento desse presente. A História do presente que consulta, pergunta ao passado e o devolve em imagens e ideologia.
Emoção e inteligência fundem-se nas imagens em movimento no cinema. E elas, vistas por todos, ressoam diferentemente no interior de cada espectador, deixando-se interpretar pela sua visão histórica, estado emocional, disposições psíquicas, desejo, educação política e visual. Os filmes são consumidos esteticamente por espectadores "nacionais" como uma espécie de mercadoria psicológica em que o "universal", a política do capitalismo e o cultural estão mesclados, fundidos, e são tanto economia quanto política e cultura. São obras complexas, que escapam de simples explicações aparentemente lógicas e claras, uma excitação tanto para o intelecto como para a sensibilidade.
Observação: esses temas são amplamente estudados em meus livros: Cinema: arte da memória, Editora Autores Associados, e Imagens e sons, a nova cultura oral, Editora Cortez.
Edgard de Assis Carvalho
é professor titular de Antropologia da PUC-SP e coordena o Complexus, da Faculdade PG de Ciências Sociais
As sociedades humanas são o produto de uma longa evolução que possibilitou a um pequeno bípede, com um cérebro muito aproximado ao do chimpanzé, criar e acumular saberes, experiências, tradições, mitos, ideologias. Denominou-se cultura esse conjunto de práticas e experiências sociais que apenas nós possuímos. Desde que o mundo passou a ser explicado pela ciência, principalmente a partir do século 17, a fronteira entre humanos e não-humanos nunca foi suficientemente explicada. Selou-se uma divisão entre animalidade e humanidade que repercutiu nas variações que esses conceitos assumiram em tempos posteriores.
Em finais do século 19, a cultura foi definida como uma mera soma de fatos sociais, que abrangia tecnologias, artes, magias, religiões, parentescos. Evolucionista na base, o conceito hierarquizou sociedades denominando-as selvagens, bárbaras, civilizadas. É claro que a civilização pressupunha a existência da escrita, um amplo controle sobre a natureza, um desdém velado ou explícito para com as alteridades, índios, primitivos como passaram a ser chamados a partir de então.
Em início do século 20, diferenças culturais nítidas exigiram uma explicação menos preconceituosa, que retirasse a sombra de inferioridade que pairava sobre sociedades diferentes da nossa. Passou-se, então, a valorizar a idéia de que elas funcionavam, e bem, como as engrenagens azeitadas de uma máquina. Esquecia-se, porém, que elas já se encontravam submetidas a uma exploração intensa de seu ecossistema. Sem piedade, foram destituídas de seu patrimônio cultural e se arranjaram como puderam para sobreviver à extinção, algumas com sucesso, outras não.
No final dos anos de 1940, a distinção entre animalidade e humanidade sofreu um sério revés. E por quê? Porque entre a natureza e a cultura havia um fenômeno que se encontrava presente em todas as sociedades humanas e, simultaneamente, apresentava-se de modo diferente em muitas delas: a proibição do incesto, ou seja, com quem podemos ou não nos unir. Se havia algo de universal na proibição, o contraste entre primitivos e civilizados passou a não fazer sentido. Além do mais, demonstrou-se que esses povos pensavam como nós e, por vezes, de modo muito mais intuitivo e sensível.
Nova mutação ocorreu no final dos anos de 1960. Se o ato de pensar era único e universal, faltava reconhecer que populações regidas por um estilo de vida igualitário planejavam adequadamente sua sobrevivência material, sem ter que trabalhar arduamente em tempo integral. Seu tempo livre era dedicado ao lazer, aos rituais, ao reforço da solidariedade, às práticas comunitárias.
Desde finais dos anos de 1970, a cultura passou a ser vista como algo complexo, simultaneamente universal e particular, contraditório e harmônico, produto das ações e práticas que os humanos empreendem diante dos desafios da vida. Por isso, somos simultaneamente naturais e culturais, uniduais, 100% natureza, 100% cultura. Trazemos em nós regularidades e repetições, desregulações e criatividades. Somos simultaneamente sábios e loucos, sapiens-demens, como reitera Edgar Morin. Assumir esse ponto de vista implica ultrapassar dualidades e assumir o politeísmo de idéias, crenças, valores, estilos, sexualidades. Pensar sem preconceitos ou medos com a razão aberta.
É forçoso e lamentável reconhecer que o século 20 consagrou a figura do especialista fechado em si mesmo, que descarta e desconsidera tudo o que ocorre além dos estreitos limites de sua existência e de seu objeto de pesquisa. Fragmentou-se o saber, o conhecimento, a vida, a arte e a ciência, assim como a natureza e a cultura. A educação do futuro exigirá a religação de todos esses fenômenos como ponto de partida para a construção de uma cidadania planetária irrestrita e sustentável. O século 21 tem pela frente a inédita possibilidade de restaurar o conhecimento pertinente que integre a razão e a paixão, o local e o global, o uno e o múltiplo.
Nelly Novaes Coelho
é professora, escritora e crítica literária
"Jamais como em nosso tempo, o Ensino se encontrou tão diretamente implicado nos formidáveis desafios da cultura, da civilização e da sociedade. [...] A Educação do futuro deverá contribuir para uma reforma planetária das mentalidades."
(Edgar Morin)
Esse é o desafio (lucidamente sintetizado por Morin) a ser enfrentado por todos aqueles, direta ou indiretamente, ligados à Educação e à urgente reformulação dos processos de Ensino: projetar caminhos para a formação de uma nova mentalidade.
Sabe-se à saciedade que vivemos um momento de caos, ou melhor, de transformações estruturais profundas. Momento que é, ao mesmo tempo, apocalíptico (destruidor do antigo) e genesíaco (criador do novo). Uma nova ordem cultural, sem dúvida, está em gestação, mas ainda informe, impossível de ser detectada e organizada em sistema. O que se intui é que o novo Sistema de Ensino precisa ser alimentado de cultura humanística, para se oferecer como "força de resistência" ao visível processo de degradação do humano, que vem se expandindo pelo mundo através dos mágicos multimídias.
Faz-se urgente que a Educação se empenhe em promover um amplo movimento de conscientização cultural/ética que mostre aos novos, aos "mutantes" que estão chegando, a intrínseca grandeza do ser humano e de seu valioso lugar no mundo como construtor da nova ordem que há de vir.
Um dos instrumentos mais eficientes que podem ser utilizados para essa cruzada educativa (que precisa começar pelos professores) é, sem dúvida, a Literatura, entendida como palavra dinamizadora do pensar e como autêntico exercício de vida. E mais, a leitura literária é uma das armas mais eficientes para a formação da consciência crítica, sem a qual nenhum ser humano pode alcançar a plenitude do viver. É urgente estabelecer o diálogo entre Ciência e Humanidades.
Seria essa uma tentativa de criar uma "força de resistência" contra os efeitos nocivos da "geléia geral/global" em que a lei do mercado e a indústria cultural nos atolaram. "Geléia" perversa, na medida em que propõe o parecer e o ter (e não o ser) como o grande ideal a ser atingido: transforma tudo e todos em produtos ou em espetáculos a serem consumidos. Daí a "espetacularização" da vida atual. Dos quatro cantos do mundo, tudo nos chega transformado em performance, com alta qualidade estética e tecnológica (que age sobre as mentes de forma subliminar) que, dessa forma, legitima tudo como "valor": a guerra, a violência, o crime, a obsessão com o corpo, a malhação, o silicone, o sexo banalizado/degradado... A substituição do autêntico pelo artificial é um dos ideais com que os multimídias alimentam o imaginário dos espectadores e suas necessidades de sonho, de ilusões, de esperança... sem as quais não é possível viver.
Só nessa ordem de idéias pode-se entender, por exemplo, a espantosa audiência dos diferentes reality shows em todos os continentes: espetáculos nos quais a perversidade, ao manipular o "lixo humano", conjuga-se com a banalidade ou mediocridade das idéias que lhes servem de fundamento. Como a maioria da humanidade não tem condições de se dar em espetáculo, lhe resta alimentar seu imaginário com o espetáculo do outro, vivendo cada vez mais para fora, aceitando como verdade a inautenticidade das aparências.
É nesse sentido que aponta a urgência de reformas da Educação. Que se intensifiquem as relações do Ensino com a cultura humanística (Literatura, Arte, Filosofia, História...). Uma vez que a lei do mercado e a indústria cultural são irreversíveis (pois anulá-las seria deter o progresso do mundo), cabe-nos incentivar os meios de conscientização de cada eu em relação ao outro, em face do mundo em que todos vivemos. Claro que são medidas que exigem longo prazo, mas como toda caminhada começa pelo primeiro passo...
Laymert Garcia dos Santos
é professor-adjunto do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Hollywood e boa parte da mídia contemporânea (televisão, TV a cabo, jornais, revistas, Internet...) tentam insistentemente nos convencer que cinema é puro entretenimento, sem grandes conseqüências. Mas existem outros pontos de vista que, embora minoritários, nos permitem descobrir que podemos aprender muito até mesmo com a distração.
Nos anos de 1930, quando a multiplicação das imagens ainda não havia invadido todos os espaços públicos e privados, o filósofo alemão Walter Benjamin escreveu num ensaio famoso que o cinema era muito importante porque tinha uma tarefa histórica: mudar a nossa percepção da realidade, fazendo-nos ver, com as máquinas, como elas estavam transformando a vida cotidiana e toda a vida social. Segundo ele, tal mudança em nossa percepção se opera por meio do choque: "Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira, a imagem se move, mas na segunda, não. Esta convida o espectador à contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do filme, isso não é mais possível. Mal o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. Ela não pode ser fixada, nem como um quadro nem como algo real. A associação de idéias do espectador é interrompida imediatamente com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfego, e como as que experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente".
Para o filósofo, a experiência do cinema é, portanto, uma operação de risco que nos ensinaria a ficarmos atentos, como a que o indivíduo corre nas ruas das metrópoles ou que correm os revolucionários na luta social. Em poucas palavras: com um tratamento de choque, o cinema interceptaria os pensamentos habituais do homem moderno, ensinando-o a "ler" a sua realidade. No cinema este faria o aprendizado da vida na nova sociedade.
Setenta anos depois, seria o caso de nos perguntarmos se o cinema ainda pode ser visto como uma terapia de choque atuando nesse sentido. Isto é, se ainda tem um potencial revolucionário capaz de impactar nossa experiência e nos fazer aprender. Como professor de sociologia da tecnologia que utiliza o cinema em suas aulas, só posso dizer que sim. Mas minha terapia de choque é um pouco diferente da de Benjamin: quero chocar os estudantes para arrancá-los de sua exposição passiva à onipresença da mídia, levando-os a descobrir não o que se pode fazer com as imagens, mas o que elas fazem com a gente; quero que tenham uma outra experiência das imagens: não o choque da distração, mas o da concentração, da atenção voltada para a relação entre os homens e as máquinas produtoras de imagens.
Minha questão é: como fazer os jovens de vinte anos perceberem que, ao contrário do que pensam, sua percepção não é natural, mas construída pelo contínuo fluxo de imagens industrializadas? Em meu entender, a melhor maneira é criando um intervalo dentro da cabeça deles, isto é, mostrando-lhes filmes que rompem com o esquema dominante e discutem o papel da tecnologia em nossas vidas. Trata-se, em suma, de deslocar o olhar do espectador, para que ele, em vez de ser mero receptáculo de imagens, experiencie a aventura de pensar com elas e, eventualmente, contra elas.