Postado em 01/09/2002
O forte conteúdo pedagógico do xadrez, jogo de origem milenar praticado no mundo inteiro
Diz a lenda que na Índia do século 5 um rei lamentava a perda de seu único filho em uma batalha. Para que a alegria voltasse ao reino, um fiel súdito, chamado Sessa, criou um jogo que simulava uma guerra. Além de obter uma distração para aqueles dias difíceis, o rei conseguiu, por meio das regras e estratégias do novo jogo, entender como seu filho havia morrido. Sessa conquistou, então, a mais profunda e irrestrita gratidão de seu monarca. Como recompensa, pediu apenas que o tabuleiro do jogo fosse preenchido com grãos de trigo: na primeira casa, um grão; na segunda, dois; na terceira, quatro, e assim sucessivamente em progressão geométrica. O que parecia irrisório tornou-se uma quantia absurda. Em unidades, o número de grãos chegaria a dezoito com mais dezoito zeros. Nem que a Índia produzisse trigo exclusivamente para o inventor durante quinhentos anos seria possível efetuar o pagamento.
Mesmo não passando de lenda, essa história ilustra com beleza e contundência a criação de um dos mais antigos jogos da humanidade: o xadrez. A História se encarrega dos fatos verídicos em torno do jogo e conta que ele saiu da Índia para a Mesopotâmia. De lá, seguiu para China, Mongólia, Japão e Península Ibérica (levado pelos mouros). Da Espanha, então, conquistou a Europa e seguiu até as Américas.
No Brasil, o primeiro enxadrista de que se tem notícia foi um pianista da corte da princesa Isabel, no Rio de Janeiro, chamado Arthur Napoleão, autor de um célebre título sobre o tema, o Caissana Brasileira, de 1898. Ele costumava organizar minitorneios em sua casa, dos quais participavam figuras como o escritor Machado de Assis. Em São Paulo, o jogo ganhou adeptos pelas mãos do alemão Franz Lichtenberger, que criou, em 1902, o Clube de Xadrez São Paulo.
Herman Claudius van Riemsdijk, atual presidente do clube e mestre internacional de xadrez, não poupa elogios para algo que o fascina desde os nove anos, quando ainda vivia na Holanda, país onde o xadrez faz parte da cultura popular e é matéria obrigatória nas escolas. Porém, não se trata de meras palavras apaixonadas - os argumentos são fortes e convincentes. "É o grande jogo da evolução social do homem", começa. "Suas peças mudaram de forma de acordo com os valores da época ou do país. As torres já foram elefantes na Índia; o bispo, que representa a autoridade e a influência, já foi bobo da corte na França numa época em que tal figura era muito ouvida pelos reis; na Espanha, o jogo já associou movimentos às condutas morais dos homens." Além disso, Herman conta que, embora tenha muito de matemático, o xadrez leva o praticante a conhecer um universo de pensamento e concepção da realidade, o que revela, a seu ver, um conteúdo "extremamente filosófico".
O Reino Mágico do Xadrez
Atualmente, o xadrez continua a ganhar força e seus jogadores podem ser encontrados, em número considerável, por todo o país. A Zona Leste de São Paulo concentra boa parte dos adeptos. A unidade do Sesc São Paulo na região, o Sesc Itaquera, já incluiu a modalidade em sua programação permanente, além de transformar o tema num grande evento, o Reino Mágico do Xadrez, em sua segunda edição. "A história começou com algumas pessoas que gostavam de jogar xadrez aqui no Sesc", conta Nivaldo Troiano, técnico da unidade e programador do evento. "Além de quem mora por aqui e freqüenta o Sesc, sempre vieram muitas crianças das escolas da região, trazidas por iniciativa dos Núcleos de Ação Educativa (NAE), criados pela Secretaria Municipal de Educação."
Ao perceber a carência de espaços para os enxadristas mirins, o Sesc criou um conjunto de atividades especiais que vai muito além de oferecer local e tabuleiros às crianças. O Reino Mágico do Xadrez é um evento completo. O Clube de Xadrez São Paulo expõe seus documentos históricos, livros e fotos; professores enxadristas organizam oficinas de capacitação de outros professores; há apresentação de peças infantis sobre a criação do jogo; além de campeonatos comemorativos, como o Torneio Aberto do Dia dos Professores, das Crianças e dos Pais, no qual pais e filhos se confraternizam nas partidas. "Pensamos num projeto até o final do ano", explica o técnico. "Equipamos a unidade com tabuleiros e relógios, colocamos livros sobre o assunto na sala de leitura, montamos um xadrez gigante na praça, fizemos contato com NAEs oferecendo o espaço para a realização de torneios e trouxemos campeões sul-americanos, além de estendermos as atividades para a terceira idade. Ou seja, é um grande projeto que será encerrado com um seminário sobre o xadrez na educação e que tem como objetivo a criação do Clube de Xadrez do Sesc Itaquera."
Mas por que tanta procura por parte das escolas? E por que especificamente o xadrez? A professora Ana Silva, coordenadora do projeto da prefeitura paulistana Xadrez Movimento Educativo, que existe há dez anos, explica: "De todos os jogos de tabuleiro, o xadrez é o que mais se adequou à educação. Por exemplo, é possível começar o trabalho com xadrez não somente ensinando a jogá-lo, mas ensinando sua história, abordando a criação de outros jogos, mostrando como eles são didáticos". A professora analisa que, por si só, o jogo tem caráter pedagógico. E o xadrez mais ainda, já que exige, para o aperfeiçoamento do interessado, disciplina, concentração e muito estudo. "É preciso estudar se você quiser evoluir. Você pode até passar a vida inteira jogando xadrez sem estudá-lo, mas será difícil aperfeiçoar suas técnicas. É possível estudar a tática de outros jogadores para chegar à sua. Além disso, no xadrez, é necessário fazer anotações das partidas. Esses registros são feitos em forma de sistema algébrico, o mesmo usado em coordenadas geográficas. É como dizem: o xadrez é muito jogo para ser uma ciência, mas tem muita ciência para ser apenas um jogo", afirma.
Não há idade para aprender
Francisco Henriques Alvarez, responsável pelas oficinas de capacitação de professores, acrescenta explicando que o xadrez pode quebrar a rotina das salas de aula, despertando o interesse do aluno para o descobrimento e estreitando sua relação com o professor. "Alguns me perguntam por que o xadrez, se o dominó, por exemplo, também é um jogo divertido", conta Francisco. "No dominó, se você tiver sorte e começar com seis senas na mão, a partida está praticamente ganha. No xadrez não, os adversários começam com as mesmas peças e o que determina o vencedor é a sofisticação das estratégias e a rapidez do pensamento."
Herman Claudius retoma explicando que o xadrez é indicado como matéria de apoio. "A qualidade pedagógica do xadrez está na sua capacidade de estruturação da linha de pensamento", analisa. "Não significa que uma criança será mais inteligente porque joga xadrez. O jogo tem a aura de ser muito difícil e isso não é verdade, ele é simples. É lógico que para jogar é preciso aprender regras básicas, mas é como na matemática: depois de aprender as quatro operações básicas, abre-se um horizonte muito grande. A matemática da escola serve para você aprender a raciocinar matematicamente. Ela o estrutura, ordena o processo de pensamento. O xadrez também faz isso, só que de forma lúdica. E nesse aspecto, o potencial do xadrez como matéria educativa é muito grande", defende.
No Reino Mágico do Xadrez, do Sesc Itaquera, não são apenas as crianças e os jovens os contemplados com uma dose extra de conhecimento. A terceira idade foi incluída entre o público-alvo do projeto com muito êxito. O professor Waldomiro Machado, responsável por essa oficina, explica que mesmo com um pouco de dificuldade, os mais velhos se deram muito bem com o jogo. "É um exercício saudável para a memória, além de ser uma boa ferramenta de sociabilização para eles", afirma.
Xadrez em Interlagos - Estímulo à integração O Sesc Interlagos também organizou uma programação especial com o tema xadrez. Nos dias 29 e 30 de agosto, a unidade realizou o Festival de Xadrez, numa parceria com o Núcleo de Ação Educativa (NAE) 5, da prefeitura de São Paulo. O torneio principal aconteceu no ginásio de esportes e foi dirigido aos alunos da rede municipal de ensino. Além dele, foram realizadas atividades paralelas, abertas ao público de todas as idades, como torneios-relâmpagos, clínicas de iniciação esportiva, jogos recreativos, xadrez gigante e simultâneas (partidas nas quais um jogador, geralmente um mestre campeão, joga ao mesmo tempo com vários adversários). Com o evento, o Sesc Interlagos pretende divulgar o xadrez ao seu público, dando o estímulo inicial para a criação de um grupo permanente de jogadores, veteranos ou iniciantes, utilizando o jogo como mecanismo de integração entre pessoas de diferentes faixas etárias. Para quem se interessou, mas perdeu as datas de agosto, nos dias 14 e 15 de setembro a unidade dará continuidade ao projeto com um ciclo de palestras e vivências sobre o xadrez, com inscrições gratuitas, individual ou em grupo. Consulte a programação no Em Cartaz. |