Postado em 02/10/2020
Por Maria Angélica Àse*
Você já parou para pensar o quanto é difícil falar sobre si? Passamos grande parte da vida ouvindo histórias, muitas histórias, de lugares, acontecimentos e pessoas importantes. E quando pensamos em nossas próprias histórias dizemos que não são importantes, que são tão comuns. Me permiti o exercício de falar e ouvir minha própria história. Este relato não foi escrito, foi narrado e transcrito.
Sou uma ótima ouvinte e leitora. E, na minha adolescência, uma obra da literatura brasileira me marcou muito: "Um sonho no caroço do abacate", de Moacir Scliar. Na época, quando li, me chamaram atenção as descobertas sexuais e relacionais dos jovens envolvidos na narrativa. Reli esse livro tempos depois, adulta, e voltei a me identificar com os personagens, mas de outra maneira, pela representatividade racial: judeus imigrantes que chegaram ao Brasil e os negros que aqui viviam em uma sociedade brasileira pós-escravidão – de onde vinham, a fruta abacate era muito rara e cara, daí a metáfora para uma vida melhor diferente daquela que viviam. Comecei a pensar: qual era meu sonho no caroço do abacate?
Venho de uma família de periferia, em que os maiores valores ensinados eram o trabalho e a honestidade. Desde cedo fui incentivada a estudar. Minha mãe sempre dizia: “Estude para escolher sua profissão, eu não tive essa escolha”. Ingressei no ensino superior por meio das políticas de cotas. Me formei em educação física, iniciei os trabalhos na área em projeto social na cidade de Bauru, onde trabalhei com crianças e jovens em situação de vulnerabilidade.
Nesse processo, me descobri como mulher preta. Digo que descobri, pois até então esse assunto de questões raciais sempre foi velado na minha família. Passei anos alisando o cabelo, me referenciando enquanto beleza nas apresentadoras brancas e loiras da TV brasileira dos anos 90 e buscava a todo custo embranquecer. Hoje entendo e compreendo esse silenciamento de nossas origens na minha família e compreendo as trajetórias de meu pai e de minha mãe. Suas energias eram gastas para sobreviver em meio a uma sociedade que vivia o pós-ditadura e aos conceitos e valores conservadores com os quais foram educados. Hoje eu os compreendo e isso me faz perdoá-los e me perdoar nos meus processos de aceitação e construção de identidade racial.
Pois bem, minha primeira experiência com jovens em espaços educativos foi grandiosa, desafiadora e dolorosa. No dia a dia, observando os jovens que atendia, não pude deixar de notar como se tratavam: usavam termos pejorativos sobre sua cor de pele, faziam piadas, gozações e apelidos, sendo que, na sua maioria, eles eram negros e pretos, com idades entre 12 e 16 anos, todos em condição de vulnerabilidade social.
Aquilo me incomodou muito e me gerou uma angústia em relação a minha atuação enquanto educadora social. Dei um basta. Abandonei a programação de ações dos meses seguintes e me debrucei em pensar em estratégias para construir espaços de reflexão para essa questão racial. Sentei com todo o grupo e questionei “Por que vocês se tratam assim?”. Alguns responderam com risos nos rostos: “Porque somos assim, pretos!” Essa e outras respostas que naturalizavam o preconceito racial e as falas racistas me deram um nó na garganta. Pensei nos meus processos de auto descoberta, na realidade deles, comecei a ler sobre o conceito de racismo, o racismo no Brasil e suas origens.
Durante esse processo de pesquisas, descobri uma narrativa de mundo muito diferente daquela que fui ensinada, baseada em uma educação eurocêntrica, católica e colonizadora. Descobri autores e autoras negras que trazem a visão de mundo pela perspectiva africana e afro-brasileira, em que as dimensões e relações humanas se organizam em valores muito distintos, baseados em circularidade, ancestralidade, respeito às origens, à natureza, valorização da nossa força, sabedoria e outra dimensão da religiosidade.
Juntei livros, brincadeiras, filmes, temas para conversas etc. e estruturamos um projeto de valorização da cultura negra, resgatando nossa identidade e questionando nossa sociedade atual.
Nesse processo com os jovens, me encontrei, nos encontramos, nos olhamos nos olhos, e nos conectamos em nossas potências. As potências ocuparam os lugares dos medos: medo de não ser aceita com meus cachos, medo de falar sobre negritude nos almoços de família, medo de abordar esses assuntos em meios educativos e o medo de não me encontrar nos espaços urbanos.
O processo de autodescoberta e construção de identidade racial, para mim, é permanente e, em alguns momentos, doloroso. Sempre senti um nó na garganta e hoje resolvi desatá-lo um pouco mais. Ao me ouvir e reler este relato, percebi que todas as histórias importam, todas.
Talvez seja este meu sonho no caroço do abacate: sonho de desatar nós, vozes, histórias, de crianças e jovens que foram e estão sendo veladas, negadas e apagadas. Todos e todas nós temos direito a uma vida melhor.
*Maria Angélica Àse é educadora no Programa Curumim e especialista em jogos de cultura afro-brasileira e africana.
Este relato faz parte de uma série de ações realizadas pelo Sesc Sorocaba dentro do Iorubrá, projeto que potencializa e valoriza as culturas negras. Leia também o manifesto escrito por funcionários da unidade.