Postado em 29/09/2020
O COMPOSITOR MARCELLO TUPYNAMBÁ PRODUZIU EM SINTONIA
COM O MODERNISMO BRASILEIRO E VALORIZOU A IDENTIDADE POPULAR
Parceiro do crítico e escritor Mário de Andrade e do jornalista e poeta Guilherme de Almeida, prestigiado pelo romancista Menotti Del Picchia e pelo maestro Heitor Villa-Lobos, o compositor Marcello Tupynambá foi capturado pelo espírito revolucionário da Semana de Arte Moderna de 1922 e pela busca da identidade nacional na cultura. O resultado foi uma obra consistente, com 343 composições para canto e piano ou piano solo, além de operetas, bailados, corais e quartetos de corda.
Nascido em 1889, na cidade de Tietê (SP), recebeu da família o nome de Fernando Álvares Lobo e a paixão pela música. E de onde saiu a denominação Marcello Tupynambá? Pode-se dizer que foi uma questão de engenharia. Estudante na Escola Politécnica de São Paulo, onde se formou em 1916, Fernando recebeu a sugestão de usar um pseudônimo para as incursões pela sonoridade, e assim fazer a separação de corpos da carreira como engenheiro. A relação com o ritmo e as melodias vinha de longa data.
O instrumento da infância foi o piano, passando mais tarde pelos estudos de teoria musical e violino. Foi regente da banda oficial da cidade mineira de Pouso Alegre e excursionou pelo estado. A engenharia serviu de alicerce quando a atuação como músico não era suficiente para manter as contas em dia. Embora se apresentasse ao piano em cafés e cinemas de São Paulo, em 1917, a grana curta precipitou a mudança para Barretos e o trabalho como engenheiro. No interior, formou sua família e permaneceu até 1922.
Nessa época, a música não estava no centro de seus interesses, mas se mantinha ao redor. Incentivado pela esposa, Irene Menezes, e pelo músico João Campassi, compôs de forma tímida. Uma melodia aqui, outra ali. Retomou o pseudônimo dos tempos de estudante devido a um problema de visão. Assim, o plano foi retornar à capital e às composições. Sua trajetória musical transcorreu em harmonia com o tempo presente e a modernidade em voga: “Compôs em sincronia com as novas realidades, decorrentes da modernização da sociedade”, confirma Marcelo Tupinambá Leandro, pesquisador musical.
O nome não é coincidência. Também do ramo, o bisneto de Tupynambá afirma que a obra do bisavô, escrita entre as décadas de 1910 e 1950, buscou modernizar o repertório existente e que “sua obra deve ser considerada pertencente ao espírito revolucionário da Semana de Arte Moderna de 1922”.
Tupynambá equilibrou-se entre a engenharia e a música de forma produtiva. De sua autoria, de 1916, estão Cavaleiros do Luar e São Paulo Futuro. O carnaval de 1918 é marcado pela sua canção O Matuto, no estilo cateretê, com base em violas, gravada por Mário Pinheiro. A composição tocou fundo Mário de Andrade, que na Revista Ariel (1924) lamentou a pouca importância dada a ela: “É possível que um dia os compositores nacionais [...] queiram surpreender a melodia mais bela e original de seu próprio povo. As músicas de Marcello Tupynambá serão nesse dia observadas com admiração e amadas com mais constância. [...] Ele será lembrado como um dos que melhor e primeiramente souberam surpreender os balbucios da consciência nacional nascente”. Muitos críticos se debruçaram sobre a interpretação de seus versos e acordes, dos mais clássicos aos contemporâneos: Oswald de Andrade, Oneyda Alvarenga, José Miguel Wisnik, Zuza Homem de Mello, José Ramos Tinhorão, Manuel Bandeira, Elizabeth Travassos, Cravo Albin.
Uma faceta popular de sua carreira foi expressa no teatro musicado, relevante canal de divulgação de seu trabalho, indo dos espetáculos para as partituras e gravações de discos. O forte movimento das rádios brasileiras o acolheu, não só como realizador, mas na função de diretor artístico das rádios Bandeirantes, Record, Tupi e Gazeta de São Paulo. E, na onda do cinema ainda engatinhando por aqui, participou da trilha de cinco filmes, entre eles Nos Sertões do Avanhandava (Antônio Pamplona, 1924), Quase no Céu (Oduvaldo Viana, 1949) e Ângela (Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, 1951). Tupinambá Leandro justifica tal convergência na atuação do compositor, o qual mediou “aspectos da cultura popular brasileira à seleção de músicas tocadas, naquele início do século 20”. A canção, gênero representativo da música brasileira, passa pela consistente trajetória de Tupynambá até sua morte em 1953.
MUSICÓLOGA LISTA ARTISTAS DA RODA HISTÓRICA DE 1920
A musicóloga e professora titular do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo Flávia Camargo Toni destaca alguns expoentes da música brasileira no início do século 20. Um bom “termômetro” para avaliar os compositores que, a exemplo de Marcello Tupynambá, eram populares e publicavam suas músicas na década de 1920 se dá de forma indireta, mas bastante segura. O autor da enquete é um compositor francês, Darius Milhaud, que entre 1917 e 1918 morou na cidade do Rio de Janeiro e, interessado pela música popular, selecionou obras de alguns músicos para integrarem o rondó (composição que contém um número variado de versos e cujo estribilho é constante) Le Boeuf sur le Toit. Naturalmente, nem todos os que eram conhecidos há 100 anos permaneceram famosos, pois o gosto muda e os critérios de escolha nem sempre são claros. Mas, segundo a especialista, os autores a seguir sem dúvida continuam conhecidos do público de várias idades.
Ernesto Nazareth (1863-1934)
A primeira música do carioca foi composta aos 14 anos, a polca Você Bem Sabe. De 1916 data a publicação do tango Tupynambá, em referência direta ao compositor paulista.
Chiquinha Gonzaga (1847-1935)
Pioneira, reúne várias primeiras vezes em sua carreira: primeira mulher a compor uma marchinha de carnaval, Ó Abre Alas, 1899, primeira pianista chorona e primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil.
Catulo da Paixão Cearense (1866-1946)
Identificado como “o poeta do sertão”, nasceu em São Luís (Maranhão) e arrebatou com seu violão as festas promovidas pela elite carioca. Além de compositor, foi poeta, teatrólogo e professor.
Eduardo Souto (1882-1942)
Presença nos saraus do início do século 20, é dessa época o tango O Despertar da Montanha, uma de suas grandes composições e clássico do piano brasileiro. Seu samba Tatu Subiu no Pau (1923) mirou-se no estilo musical de Tupynambá.
ÁLBUM EM HOMENAGEM AO COMPOSITOR RESGATA SUCESSOS DE SUA CARREIRA
O disco São Paulo Futuro – A Música de Marcello Tupynambá (Selo Sesc, 2020) traz uma seleção de 11 releituras interpretadas por nomes expressivos da música contemporânea: Fabiana Cozza, Toninho Ferragutti, André Mehmari, Roberto Corrêa, Henrique Cazes, Toninho Carrasqueira, Theo de Barros, Cacilda Mehmari, Dudu Alves, Nailor Proveta, Karina Ninni, Valdo Gonzaga e Hércules Gomes.
Para quem gosta de ouvir um disco do início ao fim, a música que abre a imersão é Canção Marinha (de Tupynambá e Mário de Andrade) na voz de Fabiana Cozza, que, em 1969, foi gravada por Inezita Barroso. Na sequência, a faixa título ficou no ritmo do pianista André Mehmari. E, para quem ainda não ouviu, Mehmari nos conduz: “Os compassos quebrados, as brincadeiras com relações métricas não convencionais são a representação e tradução musical da experiência fragmentada da vida numa grande e agitada metrópole”.
Ouça gratuitamente em: https://sesc.digital/colecao/50930/sao-paulo-futuro-a-musica-de-marcello-tupynamba