Postado em 31/07/2020
por Alexandre Araujo Bispo*
Os protestos recentes contra a violência institucional a pessoas negras nos EUA se espalharam com rapidez pelo planeta, despertando um sentimento de solidariedade transnacional inédito no qual muitos brancos reconhecem, finalmente, seus privilégios.
O racismo antinegro tem um componente visual – a pele preta – que, em sociedades racistas como o Brasil e os EUA, é socialmente manipulado como um índice negativo. Nos dois países, ainda que com diferenças, cinema, televisão, imprensa, publicidade, escola e instituições culturais são responsáveis por promover, normatizar e difundir representações negativas construídas sobre pessoas negras. Fazer frente a essa hegemonia implica também dar forma visual à luta para empreender a batalha contra a opressão instituída. Foi isso que fez o Partido dos Panteras Negras entre os anos 1967 e 1982 nos EUA: criaram um repertório visual revolucionário, como parte integrante da luta pelo direito pleno de existir.
Fotografias de Stephen Shames na exposição Todo poder ao povo! Emory Douglas e os Panteras Negras | Foto: Matheus José Maria
Entre março e julho de 2017, no Sesc Pinheiros, bairro nobre paulistano, o público interessado em uma das mais importantes lutas raciais e de classe do século XX, pôde ver pela primeira vez no Brasil a mostra Todo poder ao povo! Emory Douglas e os Panteras Negras, concebida pelo coletivo colombiano La Silueta. A exposição composta com itens da coleção de materiais efêmeros de grande circulação dos irmãos Alden e Mary Kimbrough, exibiu jornais, panfletos, cartazes, cartões de felicitações e bótons produzidos durante os anos de atuação do partido. Além desses papéis, uma série de fotografias do fotógrafo branco Stephen Shames, simpatizante da luta dos Panteras, complementava a exposição permitindo ver ambientes, manifestações no espaço público e momentos de sociabilidade das membras e membros do partido. Como contrapartida, Shames autorizava o uso de suas imagens e ensinava o ofício a jovens negros. Veja aqui a reprodução digital da brochura da mostra e aqui o material educativo.
Na entrada do edifício, a representação ilustrada de um menino negro com a boca aberta anunciando a venda do jornal The Black Panther fora monumentalizada. Vender o jornal era considerado pelos ativistas um ato político, portanto o menino negro – que segue sendo o alvo preferencial da violência policial nos dois países – é mostrado como um agente histórico capaz de mudar a realidade social. No Brasil, a imagem símbolo do jornal A voz da raça, que circulou entre 1933 e 1937, também explorou, em traços mais sintéticos, uma figura humana de cuja boca aberta saíam o nome do jornal e a bandeira brasileira.
Entrada da unidade do Sesc Pinheiros à época da exposição, em 2017 | Foto: Alexandre Nunis
Realizada em um contexto de instabilidade política, a exposição assinala mudanças de sensibilidade no pensamento de algumas instituições culturais brasileiras. A mostra e a programação a ela integrada ofereceram uma arena para o debate racial admitindo todas as características da estética política de Emory Douglas, Ministro da Cultura do partido dos Panteras Negras. Sob sua coordenação, o uso de desenhos, ilustrações, caricaturas, colagens e fotomontagens, a combinação calculada de legendas e imagens e a composição cromática tinham a função de difundir a ideologia revolucionária do grupo.
No repertório visual em circulação no jornal do partido, em pacotes de supermercado, em bótons e outros suportes, animais como a pantera, associada ao poder negro popular, o porco representação da polícia branca racista – mas também do império americano decadente –, ou o rato, denúncia das péssimas condições de vida de famílias negras, circularam em tiragens de quase 200 mil exemplares. Para enfrentar o porco e o rato, representações de mães negras armadas protegendo a si e aos filhos foi uma constante. A arma nas imagens expressa a inconformidade com a situação de viver alijado de direitos à educação, saúde, trabalho, moradia, transporte e alimentação.
Exemplares do periódico The Black Panther na exposição, em 2017 | Foto: Matheus José Maria
Esses problemas seguem insolúveis tanto nos EUA quanto no Brasil de 2020, agora agravados pela pandemia de Covid-19 que não reduziu a violência policial contra o segmento negro nos dois países. Nesse sentido, o Programa dos dez pontos, formulado por Bob Seale e Huey P. Newton, criadores do partido, nos deixa uma lição e um alerta: “Queremos o fim imediato da brutalidade policial e do assassinato da população negra”. É o mesmo pedido dos atuais protestos contra as mortes de George Floyd, Marielle Franco, Agatha Félix, Bryan Ferreira, Felipe Santos, Ezequiel Guardiano, João Pedro, Miguel Otávio e tantos outros. A lista de nomes é tão extensa que poderia, facilmente, gerar um conjunto orgânico de monumentos públicos em memória às vítimas da brutalidade estrutural.
Meio século depois de sua fundação, os repertórios visuais do Partido dos Panteras Negras continuam a reencarnar em novas lutas. Haja vista a multiplicidade de usos e aplicações do gesto-imagem do braço erguido com o punho cerrado do movimento Black Power. Empunhando esse gesto-imagem estão lutas por democracia com diferentes enfoques: direito à terra e ao território, lutas feministas, LGBTQI+, lutas pela educação pública, saúde pública etc. Entre as aplicações mais recentes, merecem destaque a campanha no Instagram Revisão Inflacionária Já, que reúne servidores municipais em São Paulo; a logomarca dos Entregadores Antifascistas, claro posicionamento em favor de direitos trabalhistas; ou a frente Esporte pela Democracia, que, reunindo uma série de esportistas brancos, se posiciona contra o racismo e o autoritarismo.
Punho cerrado, black power, posturas corporais de afrontamento do sistema capitalista, representações animais para pressionar por mudança social eram, para os Panteras Negras, parte de um amplo projeto de educação política libertadora. Emory Douglas soube usar essas e outras imagens como armas na batalha pela comunicação antirracista.
*Alexandre Araujo Bispo é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. É curador, crítico e educador independente. Foi curador educativo da exposição Todo poder ao povo! Emory Douglas e os Panteras Negras (2017), no Sesc Pinheiros.