Postado em 01/06/2020
Há 185 anos, a cidade de Salvador foi cenário da Revolta dos Malês. Um capítulo da história do país que marcou o dia 25 de janeiro de 1835 e tem caráter emblemático por ter sido organizado por negros africanos escravizados de origem muçulmana. É daí que surge o termo “malês”. Ele vem do aportuguesamento do vocábulo iorubá imale, que significa “muçulmano”.
Aliás, o dia do levante não foi escolhido ao acaso. Correspondia ao fim do Ramadã (mês sagrado muçulmano) e das celebrações à Nossa Senhora da Guia, evento que distrairia os católicos envolvidos nesses festejos, na ocasião. Analisados por historiadores dedicados ao tema, os objetivos dos malês não eram hegemônicos. Havia a luta pelo fim da escravidão dos africanos, mas não existe consenso sobre o questionamento pelo fim do sistema escravista como cerne das relações de trabalho no Brasil. Uma das grandes particularidades do movimento era o fato de os rebelados dominarem a língua árabe, e por isso eram conhecidos como “escravizados letrados”, na definição da professora adjunta do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Priscilla Leal Mello.
Segundo a professora, a rebelião malê tem no exercício da escrita em língua árabe um de seus aspectos mais notáveis, sobretudo entre as etnias haussá e nagô. Esse adendo vem da confirmação de que outras etnias também aderiram ao movimento. “Em se tratando de nossa história, racista e racializada, esse aspecto do escravizado letrado permite uma revisão importante do lugar do africano na sociedade brasileira”, explica.
Trazendo a régua do tempo para o Brasil Império, a pesquisadora, que em seu doutorado teve como tema o Islã Negro no Brasil do Século 19: Leitura, Encantamento e Revolução, questiona quem, naquela época, dominava o ato da escrita. Sua resposta é certeira: “Era um império de iletrados. Mas, opondo-se a esse aspecto, temos os malês, que traziam essa experiência de escrita e leitura, porque a região de onde eram traficados, a Costa da Mina, na África Ocidental, era uma região rica em trocas comerciais e próxima de importantes cidades produtoras de conhecimento, como Djené e Timbuctu”. Na diversidade dos indicadores que apontam os envolvidos no levante, entre escravos, libertos, islâmicos e seguidores de outras religiões, somavam-se 600 pessoas.
O plano foi colocado à prova na madrugada de 25 de janeiro de 1835. Um dia antes, a polícia havia invadido a casa de Manuel Calafate, um dos locais de encontros e reuniões dos malês. A partir daí, o intuito era avisar os demais, que trabalhavam nas casas de cônsules e comerciantes estrangeiros. Ao enfrentar os policiais, os escravos se dirigiram ao quartel da cidade. Encabeçavam o movimento os que trabalhavam com pequenas vendas e artesanatos. O pouco que faturavam garantia a compra da sua alforria e algumas armas, usadas para proteção na rebelião.
A movimentação na cidade era intensa no período, com escravos que viajavam do Recôncavo Baiano – região dos engenhos de açúcar –, para Salvador, a fim de se reunir aos futuros rebelados. Entre os atos deflagradores da madrugada de luta estavam os maus-tratos e castigos sofridos por figuras representativas, como Alufá Pacífico Licutan e pelo líder Ahuma.
A revolta se espalhou pela cidade e foi duramente reprimida pela Guarda Nacional. Entre os malês morreram aproximadamente 70; na Guarda Nacional, dez soldados. No saldo final, muitos foram presos e outros tantos deportados para a África. Para a população que permaneceu em Salvador, mesmo os não integrantes do levante ficaram submetidos à repressão.
De acordo com o livro Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835, de João José Reis (Companhia das Letras, 2003), a revolta acabou com muitos presos e execuções: “A pena de morte foi imposta inicialmente a 16 acusados, mas posteriormente 12 deles conseguiram sua comutação. Quatro foram no final executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora, no dia 14 de maio de 1835. E assim se findava um dos episódios mais empolgantes da resistência escrava no Brasil”. Autor do pioneiro estudo, publicado pela primeira vez em 1986, Reis contabiliza que, no período, a população de Salvador era composta por 65.500 habitantes, com 40% de escravos, e 78% dos moradores eram negros.
Apesar da importância, a rebelião é pouco conhecida. Ao enveredar por caminhos que ajudem a analisar os motivos, Priscilla privilegia um que considera oportuno: o do ensino da História. Citando o pioneirismo do livro publicado por João José Reis, a pesquisadora afirma que, embora indispensável, é uma obra sobre a Bahia. E é bom lembrar que a capital do então Vice-Reino do Brasil, em 1763, transferiu-se de Salvador para o Rio de Janeiro.
Com isso, houve também uma mudança no eixo do poder econômico, político e do conhecimento para a perspectiva do Sudeste. “Não há pouco conhecimento sobre a rebelião. O que ocorre é uma hierarquização do conhecimento a ser ensinado. Rever isso implica mudar a produção de conhecimento para um outro ensino de História. É como propor uma reescrita da História para o ensino”, explica.
Um dos diretores da minissérie Revolta dos Malês (leia Para maratonar), Belisario Franca relata o interesse que sempre teve em tratar a questão dos malês, por ser uma história conhecida do mundo acadêmico, “mas pouco contada para público em geral, especialmente nas suas versões e possibilidades de interpretações no audiovisual”.
No drama ficcional, a narração se dá tendo uma mulher como protagonista. Na História real é sabido o papel de Luíza Mahin, mãe do poeta e abolicionista Luiz Gama (1830-1882), e de sua casa como um dos pontos de convergência de rebeliões do século 19. Não há registros de que Luíza tenha sofrido repressão durante a Revolta dos Malês, mas seu envolvimento em outros levantes causou a sua deportação. “A história da escravidão no Brasil é repleta de grandes mulheres que acabaram se tornando invisíveis. A personagem da série é uma maneira de representá-las”, complementa Belisario.
Outros exemplos de resistência em diferentes períodos históricos
Quilombo dos Palmares
Alagoas, 1597-1704
O sítio da Serra da Barriga, em União dos Palmares, abrigou Zumbi dos Palmares e cerca de 30 mil moradores. O local recebeu escravizados em busca de liberdade durante o período colonial
Revolta de Carrancas
Minas Gerais, 1833
O levante teve o maior número de escravizados condenados à pena de morte durante o Império (16 no total). Centrou-se nas fazendas da família Junqueira e reuniu os escravizados durante disputas políticas entre restauradores (caramurus) e liberais moderados. Lutando contra a aplicação de castigos e em busca da liberdade, teve como líder Ventura Mina.
Revolta de Manoel Congo
Paty do Alferes, Rio de Janeiro,1838
Mais de duas centenas de escravizados fugiram das fazendas da região e enfrentaram as forças da Guarda Nacional e tropas do Exército, sem sucesso. Submetidos a violento açoite, voltaram às fazendas onde eram explorados, já o seu líder, Manuel Congo, foi condenado à forca em dezembro de 1839.
Série exclusiva pode ser vista gratuitamente on demand
Disponível em cinco capítulos, a série de ficção Revolta dos Malês, dirigida por Belisario Franca e Jeferson De, pode ser vista na plataforma de streaming on demand do SescTV.
Na dramaturgia, a intersecção entre cinema e teatro se conta na história de Guilhermina (Shirley Cruz), uma mãe que luta para libertar a filha da escravidão. O argumento é inspirado no motim liderado por africanos escravizados de origem muçulmana, em 1835. “Foi um momento de encontro com atrizes e atores afrodescendentes talentosos. Elaboramos uma construção artística que nos levou a um aprofundamento fundamental para nosso ofício. Éramos um grupo empenhado não somente em contar, mas em conhecer nossa própria história”, relembra o cineasta e militante da causa negra no cinema brasileiro, Jeferson De. Assista em www.sesctv.org.br.