Postado em 30/04/2020
Nos anos 1980, muitos pais e mães tiveram que apartar conflitos por causa de um joystick. “Meia hora para um e meia hora para o outro em frente ao videogame. E não se fala mais nisso.” A recreação da garotada vinha em forma de perseguições, naves espaciais, corridas e outras aventuras que iam somando pontos e descontando “vidas” do personagem central. De lá para cá, os games ganharam outros contornos. “Atualmente, ao menos uma parcela desses jogos tenta expressar algo além do desafio de chegar ao final, ou a competição por ele proposta. Muitos se propõem a passar algo mais, visto que apresentam cenários, histórias e narrativas das mais diversas, tentam atingir o público, chocar, emocionar, alegrar e fazer pensar”, afirma o psicanalista Thomas Kehl, que estuda o tema jogos e espaço lúdico no cotidiano adulto. Há, no entanto, uma herança dos videogames que ressoa sobre diversas ferramentas digitais contemporâneas. Basta observar a competição por “curtidas” e seguidores nas redes sociais. Ou a lógica de aplicativos do smartphone ao premiar com descontos e vantagens os clientes que responderem enquetes ou que adivinharem charadas. Na prática, muitas dessas plataformas estão usando a linguagem dos games para orientar a forma como consumimos e nos relacionamos. “Sendo tratados como coisa de criança por anos a fio, os jogos tomaram conta dos hoje indispensáveis smartphones sem que a sociedade prestasse atenção. Superando desconfianças, passaram a ser onipresentes em celulares. Mais importante, sua influência atinge os principais aplicativos de celulares, aqueles que hoje os indivíduos usam para trabalhar, comunicar, aprender, movimentar, deslocar, exercitar…”, observa o jornalista especializado em tecnologia e arte João Varella, autor de Videogame, a Evolução da Arte (Lote 42). Nem vilões, nem heróis: o que de fato são e representam os games na contemporaneidade e qual influência exercem sobre a sociedade?
JOÃO VARELLA
A América teve problemas em entender o que é videogame. A ganância de um conglomerado de mídia causou uma debacle no começo dos anos 1980. Essa mídia seria resgatada em 1985 pela japonesa Nintendo, que trouxe para este lado do globo o NES. Para não espantar pais e mercado, jurava de pé junto que o aparelho que ela vendia, capaz de gerar experiências interativas com o televisor, era um brinquedo.
Sendo tratados como coisa de criança por anos a fio, os jogos tomaram conta dos hoje indispensáveis smartphones sem que a sociedade prestasse atenção. Superando desconfianças, os jogos passaram a ser onipresentes em celulares. Mais importante, sua influência atinge os principais aplicativos de celulares, aqueles que hoje os indivíduos usam para trabalhar, comunicar, aprender, movimentar, deslocar, exercitar… A lista de verbos é tão extensa que me atrevo a usar vocábulo mais ousado: viver.
Quando foram digitalizados, os jogos colocaram uma interface para o homem jogar consigo e mensurar seu próprio desempenho. A pontuação que as redes sociais dão em forma de curtidas, compartilhamentos, comentários é um tipo de feedback importado dos videogames. É o centro de sua estratégia de sedução. O espírito do russo Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936) oferece um delicioso biscoito para cada usuário buscando o fim do scroll infinito do feed do Instagram.
Antes dos videogames, os jogos já davam um retorno aos participantes. Quando um gol é marcado, muda a contagem do placar; uma bola de sinuca encaçapada some da mesa, assim como as peças comidas em um tabuleiro de xadrez ou damas. Porém, os videogames temperaram vaidade no resultado do jogo.
O escore máximo de uma cabine do fliperama Space Invaders, lançado pela japonesa Taito em 1978, ficava exposto na tela, diante dos olhos de quem viesse a experimentar a máquina depois. Ou seja, a pontuação de quem mais havia derrotado alienígenas voadores ficava gravada na tela até que a máquina fosse desligada (o que costumava acontecer no final do dia). Esse conceito evoluiria para mostrar mais placares e até os autores das façanhas. Em jogos como Asteroids (1979) e Cadillacs and Dinosaurs (1993), era permitido aos jogadores que colocassem três letras para identificar quem havia realizado o feito.
Por mais exógeno que seja, a pontuação foi exportada aos consoles. A transição das máquinas de ficha para os aparelhos caseiros lembra o que aconteceu com as primeiras produções depois de Gutemberg: para não espantar o público acostumado a ler livros manuscritos, os impressores usavam fontes que simulavam ter sido feitas manualmente.
Formulações como “vidas” (o número de chances que o jogador tinha antes de perder a partida) faziam sentido no fliperama, que era operado por moedas engolidas quando o jogador era derrotado. Para os consoles, onde os jogos são comprados por um preço que independe do desempenho do usuário, é estranho.
A pontuação foi gradativamente sendo abandonada nos jogos, que encontraram outras formas de manter a atenção e estimular os participantes. A exibição de cenas que fazem a narrativa avançar (as chamadas, no jargão, cutscenes) foi um dos novos benefícios por superar certos obstáculos. O jogo de zumbis Resident Evil 4 só exibe para o jogador uma fala do pirata de baixa estatura Ramon Salazar depois de sobrepujar uma quantidade de inimigos e resolver alguns enigmas, por exemplo.
A velha lógica de pontuação virtual dos games volta com força total nas redes sociais. Há um placar para a quantidade de seguidores, número exibido geralmente na tela principal dos perfis, explicitando assim o autor do feito. Agora a admiração das pessoas é mensurável, matemática. A cantora Ivete Sangalo é seguida por 16,6 milhões no Twitter, sendo assim, portanto, mais famosa que o colega Humberto Gessinger, que tem cerca de 162 mil seguidores.
Essa base influencia diretamente no contador mais importante das redes sociais, as reações aos posts. Digamos que uma selfie de um usuário com mil seguidores obtenha dez curtidas. Se tivesse mais seguidores, provavelmente obteria um resultado maior – afinal, mais pessoas seriam expostas ao conteúdo. Se tivesse tirado a foto de outro jeito (talvez de outro ângulo ou com um boné) faria mais pontos? O feedback direciona o comportamento nas redes.
As plataformas estão imersas em uma lógica comercial. Quanto mais tempo o usuário de Facebook fica dentro das diversas redes da empresa, mais anúncios vai ver, mais a empresa vai faturar. Uma forma de mensurar se o conteúdo postado é bom ou não, se merece ser mais disseminado nas redes para, no final das contas, gerar mais dinheiro, é pela quantidade de interações.
Há uma brecha importante nessa lógica. As reações podem não ser em sinal de aprovação ao conteúdo. As pessoas respondem quando são mais provocadas, quando se deparam com casos extremos. Chegamos a partir dessas questões de ordem mecânica, de regras e limites, a um ambiente intoxicado pelo que se costumou chamar de fake news. Há quem aproveite que todos são consumidores e criadores de conteúdo, com potencial para ser até classificado como meio de comunicação de massa (a depender da quantidade de seguidores).
Os criadores de notícias falsas conseguem espalhar seu conteúdo com isso. Mesmo que uma pessoa reaja para apontar que os fatos estão deturpados, já conta como uma reação. Essa brecha faz parte da cultura dos videogames há muito tempo. Os jogadores chamam de cheese quando encontram um desbalanço que proporciona uma facilidade para a obtenção do objetivo.
Mas as plataformas das redes sociais costumam demorar para consertar esses problemas. E o cheese foi detectado pelo marketing eleitoral, criando uma geração de políticos que abusou dessa lógica para vencer eleições. Como sintetiza o documentário Privacidade hackeada (cujo título original parece mais feliz, The Great Hack), a empresa Cambridge Analytica explorou um terreno até então desregulamentado da propaganda política. A operação dessa companhia é antes amoral do que ilegal.
A questão eleitoral é apenas uma de inúmeras. Empresas de diversos segmentos também se aproveitam de gretas no sistema. Se tivéssemos prestado um pouco mais de atenção no pensamento por trás dos games, teríamos prevenido esses movimentos? Se tivéssemos jogado mais Super Mario Bros. teríamos extinguido a pobreza extrema do planeta? Doom ajuda na distribuição de renda? Claro que não. Longe de mim querer apontar uma panaceia tola por meio de videogames. É só um alerta para prestarmos mais atenção nessa relevante expressividade humana.
THOMAS KEHL
Em 2020, quem não sabe o que é um videogame? Quando se olha para uma criança, jovem ou adulto em frente a um, o que se vê? Aos olhos de desatentos e/ou desinteressados, os jogos de videogame expressam não mais que um entretenimento infantil, tantas vezes na mão de adultos, e é recorrente ouvir que é um passatempo sem valor, um vício infantil.
No entanto, para quem parar e prestar atenção, será possível perceber que ao menos uma parcela desses jogos tenta expressar algo além do desafio de chegar ao final, ou a competição por eles proposta. Muitos se propõem a passar algo mais, visto que apresentam cenários, histórias e narrativas das mais diversas, tentam atingir o público, chocar, emocionar, alegrar e fazer pensar, tal como tantos outros meios de comunicação social, embora diferentes dos que estamos acostumados, como a TV, revistas, rádio e cinema, por convidar o jogador a “viver” essas histórias, esses personagens.
E claro, como toda obra é datada, ela fala de seu tempo, tal como Hercule Poirot, de Agatha Christie, ou Brás Cubas, de Machado de Assis, falam de seus. Passam até involuntariamente nas entrelinhas as mudanças na sociedade, necessidades, dúvidas e anseios.
Para começar a pensar no tema, olhemos para o que podemos ter ao alcance, pegando alguns exemplos das relações da sociedade com as narrativas de alguns jogos. Entrando então na tangente da expectativa de um grande lançamento para 2020, temos Final Fantasy VII Remake, mas, no caso, a discussão é de seu predecessor, o Final Fantasy VII, lançado em 1997, que toma como narrativa inicial uma cidade imersa em desigualdades sociais e poluição, com a discrepância de uma classe que vive em guetos na forma de bairros inteiros embaixo da estrutura de uma cidade que se mostra majestosa aos mais ricos.
Nesse cenário, um grupo ecoterrorista luta pelo fim da exploração irrefreada de um recurso desse planeta (no caso, desvinculado de nossos recursos naturais, sendo este um componente mágico do planeta), e é nesse contexto que o jogador começa a história. Começo por ele, pois justamente no fim dos anos 1980 e nos anos 1990 o ambientalismo foi uma discussão cada vez mais preocupante para o mundo, tendo como exemplo a Rio-92 e culminando no protocolo de Quioto, realizado no mesmo ano do lançamento do jogo.
O jogo, então, é uma faceta de uma preocupação que começa a tomar as pessoas, sendo dita de modo indireto e muito lúdico. Afinal, é difícil dizer que alguém tenha fechado o jogo e se filiado a um grupo ecológico, mas talvez muitos o tenham comprado e jogado por se sentirem representados no discurso, o que levanta uma curiosidade sobre como a discussão no jogo a ser lançado pode ter mudado, já que se passaram mais de 20 anos (e estamos em um outro momento da discussão ambiental).
Seguindo os exemplos, entremos em uma categoria que rende milhões não só à indústria dos jogos, mas também à do cinema, que é o tema da guerra. Refletindo uma virada de milênio tomada por guerras, como a do Iraque, Afeganistão, entre outras, e acompanhando uma tendência do cinema (O Resgate do Soldado Ryan e Falcão Negro em Perigo), existe uma vasta gama de jogos que apresentam a guerra de modo enaltecido e despersonalizado, como Call of Duty ou Battlefield, que colocam o jogador nos olhos de um soldado com um objetivo simples de eliminar o máximo de soldados inimigos possível.
No entanto, na última década, acompanhando o desgaste do discurso bélico, as narrativas foram mudando, tentando expressar o sofrimento dos soldados e em alguns jogos expressam o sofrimento de quem nem está lutando a guerra, mas que sofre em decorrência dela. É o caso de This War of Mine, que coloca o jogador controlando cidadãos em meio a uma guerra civil e que precisam sobreviver até o cessar-fogo. Ou Salaam, que ainda será lançado e que fala da trajetória de refugiados fugindo de uma guerra civil.
Iniciativas que tentam conscientizar os jogadores das dores que acompanham a guerra, como esclarecido pelos próprios desenvolvedores. E com uma menção importante: ambos os jogos têm iniciativas sociais em que parte do dinheiro gasto no jogo é destinado a causas que apoiam pessoas atingidas pela guerra.
Um outro ponto que vem sendo discutido e apontado em diversas mídias e que tem uma transição vital nos jogos é o papel do feminino, pois este acompanhou em paralelo a transição da figura feminina na hegemonia dos filmes de ação hollywoodianos. Se nos anos 1990 o papel majoritário da mulher era de uma donzela em perigo, com um possível desenlace amoroso para o herói, como em tantos filmes à la Indiana Jones, nos jogos temos talvez como maior exemplo o da princesa Peach, na franquia do Mario, em meados dos anos 2000, que iniciou um espaço do protagonismo delas.
Porém, esse protagonismo veio com um custo alto em troca, pois não interessava ao público qualquer mulher, mas sim uma intensa sexualização dessa figura, como no exemplo da Lara Croft, da franquia Tomb Raider, como apontado pela professora Aline Conceição Job da Silva, no canal Cult de Cultura no YouTube. No entanto, a questão da mulher, como sabemos, não parou aí. Assim, acompanhando as discussões pelo mundo e a cada vez maior presença do protagonismo e força das mulheres nos mais diversos setores, a tendência nos jogos nos últimos anos fala justamente de repensar esse espaço da mulher.
Garantindo-lhes um protagonismo humanizado, descentralizando a questão da sensualidade, garantindo papéis fortes, mas com um viés de serem muitas vezes usadas como catalisadores para demonstrar conflitos emocionais e de uma sensibilidade que os produtores dificilmente conseguem passar nos personagens masculinos. E um boa amostra disso podemos ver no jogo Life is Strange e nos jogos recentes de Tomb Raider.
No site Garotas Geeks, um coletivo de mulheres que discutem questões da cultura contemporânea, a autora Laura Ribeiro faz uma análise da protagonista do Remember Me, em que ela é descrita como “uma mulher forte e com personalidade distante dos estereótipos chatos que costumam construir para personagens femininas em jogos”. Essa é uma pequena amostra de jogos que acompanham as mudanças do mundo, falam dele da mesma maneira que são feitos dele, amadurecem com ele, não só para ganhar um mercado, mas por possuírem potencial em tocar cada vez mais pessoas.
Em meu trabalho no consultório, não é de um ou dois pacientes que ouço o desconforto em falar do prazer em jogar ou de algo que viu em um jogo e que interessou, temendo ser visto como algo infantilizado, uma síndrome de Peter Pan ou uma marca de vício.
E isso abre dois pontos a serem considerados. Um deles é o brincar, que é inerente ao humano. A competição e o devaneio fazem parte do universo humano, da criança ao idoso. Brincar e jogar são tão presentes e tão velados ao mundo infantil, mas não são exclusivos dele.
Nós gostamos de rir, competir, brincar e jogar e a culpabilização do videogame é um tema que precisa ser aprofundado. É justamente esse jogar que vai com os anos tomando novos contornos, pois em apenas uma fração que pegamos agora é possível ver que existe um universo que vai muito além da criança, mostrando marcas do mundo, levantando discussões e até formando opiniões.