Postado em 30/04/2020
A escola de instrumentistas brasileiros é conhecida por virtuoses e pouco se sabe sobre as mulheres, com exceção da pianista Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Junta-se a essa trupe Amélia Brandão Nery, a Tia Amélia, que já se destaca por ter nascido, em 1897, fora do eixo Rio-São Paulo, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, na ensolarada Pernambuco, onde começou a carreira. Conduzida ao mundo da música pelo pai, clarinetista e violonista, maestro da banda de Jaboatão, veio o estudo do piano clássico e sua primeira composição, a valsa Gratidão, aos 12 anos de idade. Considerada sucessora da maestrina Chiquinha Gonzaga, a pianista pernambucana foi, no entanto, discípula de Ernesto Nazareth (1863-1934), que lhe incumbiu a não deixar “o choro morrer”.
Mesmo nascida muitos anos depois de Chiquinha Gonzaga, o contexto histórico vivido por Tia Amélia não abrandou as imposições de uma sociedade machista. Ambas compartilharam, além do talento, os preconceitos por não serem bem vistas, na época, mulheres atuantes no meio musical. Tanto que o casamento, aos 17 anos, afastou-a do desejo profissional. Contudo, jamais abandonou a sonoridade do piano e continuava a tocar em festas e para amigos. Além da dedicação à música, Amélia encontrou no estudo do folclore de Pernambuco outro campo de interesse. Obrigada a se mudar com o marido para uma fazenda, viveu com ele e três filhos até se tornar uma jovem viúva, aos 25 anos.
A violonista sete cordas do grupo Trio que Chora, Rosana Bergamasco, menciona a coragem das duas artistas para enfrentar essas restrições, cada uma a sua maneira: “Penso que, pela coragem e determinação de mulheres como Chiquinha Gonzaga e Tia Amélia, hoje podemos fazer nossas escolhas com mais liberdade. Vejo as novas gerações de mulheres instrumentistas conquistando cada vez mais o espaço que lhes é de direito.”
A fatia histórica de Tia Amélia se encaixa nos pianeiros, assim chamados os instrumentistas profissionais que associavam a música ao contexto urbano das composições populares, presentes em salões entre o fim do século 19 e início do 20. Muitos trabalhavam em lojas de partituras, demonstrando aos clientes ali, na hora, qual a música escrita no papel. Caso surgisse interesse, a partitura seguia para seu novo dono. Os pianeiros revelavam a função social do instrumento, agregador das pessoas em bailes e, mais tarde, sessões de cinema. Tia Amélia teve papel importante nessa linhagem, ao projetar o piano para além do cenário pomposo dos recitais eruditos, fazendo emergir a face de entretenimento. E a popularidade se estendeu, futuramente, ao rádio e à televisão.
Para o musicólogo, jornalista e crítico musical Zuza Homem de Mello, a literatura exclusivamente pianística já foi mais farta que atualmente: “Os pianeiros tocavam nas salas de espera dos cinemas, e a alta burguesia não dispensava um piano na sala de visitas para que as mademoiselles embelezassem o ambiente com a sonoridade de seus saraus e até com exercícios para atingir tais momentos diante dos convivas. Essa fotografia praticamente não existe mais e uma das mais eloquentes representantes de tal época é a pernambucana arretada Tia Amélia, nascida ao final do século 19, que no Rio de Janeiro era chamada de coqueluche dos cariocas”.
A morte do marido fez com que Amélia encontrasse no piano a profissão. Começou a tocar na Rádio Clube de Pernambuco. Sucesso na mira, embarcou para o Rio de Janeiro em 1929. Por lá, esteve nas rádios Mayrink Veiga, Sociedade e Rádio Clube do Brasil. Passou um curto tempo no Recife e, em 1933, excursionou com Silene, sua filha, que confirmou a tradição musical da família e cantava. Rumaram a países da América Latina e aos Estados Unidos, onde Amélia conquistou corações e ouvidos, apresentando-se em rádios locais de Nova York e Nova Orleans. Mas o casamento da filha, em 1939, provocou outra pausa na carreira. Amélia seguiu com Silene para Marília, interior de São Paulo.
Deixou a profissão em suspenso por anos, até encontrar a cantora Carmélia Alves, que, entusiasta de suas composições, a trouxe de volta. Logo era tocada em alto volume nas rádios Nacional, Record, Tupi. Mais tarde foi parar nas telinhas: TV Tupi, Paulista e TV Record de São Paulo. Em 1960 era pianista contratada da TV Tupi do Rio de Janeiro e o choro corria solto, como só ela sabia fazer. O último LP, A Benção, Tia Amélia, foi gravado em 1980, três anos antes da morte da artista.
Amélia era amiga de Vinicius de Moraes (1913-1980). A música Meu Poeta foi dedicada ao escritor, que, por sua vez, batizou a canção Bordões ao Luar. Vinicius também homenageou a compositora em 1953 com a crônica A Bênção, Ti’Amélia, que faz parte do volume Crônicas Musicais (Azougue Editorial, 2008).
As duas composições estão no repertório escolhido pelo pianista e compositor Hercules Gomes, responsável por Tia Amélia – Para Sempre (Selo Sesc, 2019). No álbum, Gomes promove uma visita cheia de harmonia ao repertório da pianista, cuja obra pesquisa desde 2014.
Como resultado, o instrumentista catalogou entre 60 e 70 composições da pianeira que tem estilo próprio, fácil de ser identificado por quem já se apaixonou por seus timbres. “Ela desenvolveu um estilo de acompanhamento com a mão esquerda que é uma evolução de uma técnica usada por Ernesto Nazareth. Baseada em arpejos em moto-contínuo, esse tipo de técnica deixa a música com muito balanço!”, explica Gomes. “Ao mesmo tempo que imita a batucada de um pandeiro, cria linhas muito inteligentes de violão sete cordas.”
O especialista exalta ainda a escola de piano brasileira; porém, diz ser necessário jogar luz no método: “Não temos ainda um método consolidado para piano desse tipo de música, do choro. Por isso, é muito difícil dizer que o estilo dela [Tia Amélia] influencie novas gerações. As novas gerações ainda não a conhecem. Mas se depender do nosso trabalho isso vai mudar, e não vai demorar muito!”
MAIS TALENTOS PARA REVIGORAR SUA PLAYLIST
Rosana Bergamasco, violonista sete cordas, e Marta Ozzetti, flautista, ambas do grupo Trio que Chora, recomendam compositoras e instrumentistas para você ouvir e se deixar embalar.
Chiquinha Gonzaga (1847-1935)
Primeira pianista chorona, autora da primeira marchinha carnavalesca com letra e a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Foi fundamental para a definição da identidade musical do país no início do século 20.
Carolina Cardoso de Menezes (1913-1999)
Tornou-se referência por suas interpretações de choros e sambas ao piano, marcadas por uma linguagem virtuosística e riqueza rítmica, numa época em que a música brasileira estava em plena formação, sobretudo a música instrumental. Foi compositora de diversos ritmos, como choro, samba, samba-canção, coco, baião, marcha-rancho. Assim como Chiquinha e Tia Amélia, foi uma das precursoras da profissionalização das mulheres na música.
Luciana Rabello (1961)
Cavaquinista e compositora, é uma das pioneiras como profissional desse instrumento. Além disso, em parceria com Maurício Carrilho, fundou a Acari Records, primeira gravadora a se dedicar ao choro. Também com Carrilho fundou a Escola Portátil de Música, referência do choro mundo afora. Destaca-se pela importância na formação de músicos do gênero choro, bem como na edição de álbuns e partituras.
Daniela Spielmann (1970)
Saxofonista que atua em grupos de diversos gêneros musicais, com predominância para o choro, é uma solista profícua que está sempre abrindo portas e caminhos para que outras mulheres possam exercer essa profissão com maestria e dignidade.
PIANO ENCORPADO DE HERCULES GOMES REVISITA OBRA DA INSTRUMENTISTA
Saracoteando, Chuvisco, Saudades Suas, Paulistano são algumas das 14 faixas do álbum Tia Amélia – Para Sempre (Selo Sesc, 2019), interpretadas pelo pianista capixaba Hercules Gomes, em visita harmoniosa ao repertório da compositora pernambucana. Tendo em sua base um intenso trabalho de pesquisa, o disco traz ainda um livreto informativo de 20 páginas. Na capa, a ilustração do rosto de Tia Amélia é de autoria de Alexandre Calderero. O álbum é um convite à audição, disponibilizado também em versão digital e em streaming.
Quem aprecia o choro encontra no Instrumental Sesc Brasil outras performances que seguem no ritmo deste gênero musical. Como a do quarteto de música instrumental Fios de Choro e Cronologia do choro pela cronologia das Choronas (foto), gravado no Teatro Anchieta do Sesc Consolação em fevereiro deste ano, marcando os 25 anos de carreira do primeiro grupo de choro feminino do Brasil. Para ver e ouvir, acesse www.instrumentalsescbrasil.org.br.