Postado em 01/09/2002
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Para novas estruturas, novos paradigmas
MIGUEL REALENo dia 13 de junho de 2002, o professor Miguel Reale apresentou palestra no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo a respeito do novo Código Civil brasileiro, que passará a vigorar em 2003.
O novo Código Civil foi instituído pela lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e deve entrar em vigor um ano depois. Todos sabem que mudar de código não é substituir uma simples lei e muito menos trocar de roupa. Significa o advento de novos paradigmas diretores da pesquisa e da ciência, qualquer que ela seja, e neste caso da ciência do direito.
Por qual motivo se cuidou de fazer um código? Não resta dúvida que o Código Civil de 1916, obra fundamentalmente de Clóvis Bevilacqua, representou uma grande conquista na história da ciência jurídica universal. Mas, como tudo o que se elabora no plano histórico, perdeu a razão de ser devido ao advento de novas estruturas sociais, econômicas e tecnológicas, bem como em virtude da chegada de leis que vieram situar os problemas sob ângulos diversos. É tendência dos códigos a permanência, razão pela qual não se coloca neles tudo o que diz respeito ao mundo jurídico, mas somente as questões de maior consistência e durabilidade, que na realidade representam as diretrizes da conduta social em uma projeção histórica com certa distância.
O Código Civil atual, ainda em vigência por alguns meses, obedeceu a duas vias fundamentais. Em primeiro lugar, Clóvis Bevilacqua seguiu a tradição portuguesa representada pela grande obra dos glosadores e completada pelos mestres civilistas portugueses e brasileiros, entre os quais é necessário realçar a figura ímpar de Augusto Teixeira de Freitas. Ele, no entanto, não seguiu a diretriz de Teixeira de Freitas no que diz respeito à aglutinação do direito civil e do comercial, numa visão integrante do direito privado. Mas preservou a tradição desse jurista na divisão do direito em duas partes, uma geral e uma especial. Nesse ponto, Teixeira de Freitas, como todos sabem, antecipou-se na evolução histórico-filosófica da jurisprudência, pois mesmo antes do Código Civil alemão ele elaborou o famoso esboço da reforma do Código Civil, dando-lhe uma parte geral destinada a fixar as matrizes a serem seguidas pelas partes especiais, que no código atual são apenas quatro: "Direito da família", "Direito das coisas", "Direito das obrigações" e "Direito das sucessões".
No longínquo ano de 1969, fui incumbido de rever o Código Civil, mas, à medida que os estudos iam progredindo, a comissão então nomeada verificou que era impossível manter o código, tão distante estava dos problemas fundamentais de nosso tempo. Daí prevaleceu a elaboração sobre a revisão. Digo prevaleceu porque muito do código anterior foi conservado, e nem podia ser de outra forma, pois ele teve uma duração de mais de 80 anos e ao longo desse período recebeu um acervo admirável de contribuições jurídicas, legislativas e jurisprudenciais que enriqueceram a obra inicial.
No direito prevalece o princípio da continuidade, e Agostinho Alvim, um dos elaboradores do novo código, participante da comissão, diz que direito civil não se inventa, mas é o resultado da própria experiência social em função dos valores emergentes.
O que distingue essencialmente o novo código daquele que vai substituir são três valores fundamentais: o da eticidade, o da socialidade e o da operabilidade. A eticidade quer dizer uma diretriz moral e moralizante que vem completar a visão jurídica. Clóvis Bevilacqua deixou-se guiar pelos ensinamentos germânicos da chamada escola dos pandectistas, acrescida à tradição luso-brasileira a que já fiz referência. Ora, o ideal dos pandectistas era resolver o direito dentro do direito, ou seja, dar ao direito respostas surgidas sob o ângulo da juridicidade. Uma das coisas que esse código reconhece é que o direito não basta a si mesmo, pois ele precisa, para atender as necessidades sociais, ter em conta os valores da ética. Rege-o um valor de eticidade fundamental, conforme se pode ver em alguns dos dispositivos que vou citar, que reputo como mandamentos-chave da nova codificação.
Por influência dos pandectistas, o código estabelece uma sinonímia entre o jurídico e o lícito. Lícito é o que é jurídico, jurídico é o que é lícito. Essa sinonímia foi estraçalhada, digamos assim, pelo maior jurista de nosso século, Hans Kelsen, o qual mostrou que era necessário ampliar o conceito de norma jurídica. Norma jurídica não é a norma sobre o lícito. Kelsen dizia, com ironia: se o lícito fosse sinônimo do jurídico, não haveria lugar para o direito penal. O ilícito também faz parte do direito, tanto assim que é considerado pelos juízes e pelos advogados, culminando numa decisão, numa sentença, numa sanção.
O princípio ético é quase que ausente do Código Civil atual, bastando, por exemplo, fazer referência ao conceito de boa-fé. Os que estudaram direito ou têm conhecimento dele, ainda que lateral, sabem que a boa-fé praticamente só é lembrada no código atual no capítulo relativo à posse, de boa-fé ou de má-fé. Nos dois mil e tantos artigos restantes não aparece mais. Ao contrário do código atual, a boa-fé vem desempenhar um papel fundamental, por assim dizer, básico, na nova codificação, como veremos a respeito dos artigos-chave, pois sem eles não se compreende seu espírito.
Em primeiro lugar, lembro o artigo 113: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Eis aí duas condicionantes fundamentais o direito só vale e deve ser aplicado em razão da boa-fé e dos usos e costumes do lugar em que a questão deva ser considerada.
Nessa visão ética do direito há uma nova compreensão do que se chama o direito próprio, o individual. Para muitos o individual é absoluto, pois só encontra limite na lei. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer a não ser em função de determinações legais. Pois bem, o código deixou de se contentar com essa limitação formal da lei e inova o conceito de ato ilícito. Não basta saber o que é lícito, é indispensável também saber o que é ilícito. O artigo 187 determina: "Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". Notem que é uma alteração de 180 graus. Ter um direito não significa poder fazer o que se quer, mas exercer o direito em função desses três valores que se integram numa unidade cogente: o fim econômico, o fim social, a boa-fé e os bons costumes. É, portanto, uma tomada de posição bem clara, que corresponde, aliás, à diretriz da Constituição de 1988, cujo artigo 1º, de caráter eminentemente preambular, estabelece entre os fundamentos do Estado democrático de direito a dignidade da pessoa humana. Ora, a dignidade da pessoa humana não é senão o embasamento da ética.
A ética durante algum tempo, por influência sobretudo do grande pensador alemão Emmanuel Kant, foi concebida formalmente como aquilo que se faz em razão do dever, ou seja, a ética interpretada deontologicamente. Mas, com o advento da civilização e da filosofia contemporânea, os estudiosos perceberam que essa validade formal não corresponde ao nosso tempo, e a ética passou a ser concebida como uma ética material de valores, para empregar a terminologia de um dos maiores filósofos éticos do nosso tempo, que é Max Scheler. A ética tem por obrigação levar em conta os valores fundamentais que dirigem a conduta humana em sociedade, razão pela qual nessa estrutura, ao tratar dos contratos e das obrigações, o código novo declara: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como na sua execução, os princípios de probidade e de boa-fé". Não tivemos nenhuma vacilação em repetir tantas vezes quantas necessárias os princípios da eticidade e da boa-fé, dos quais resultam outros como aquele que os italianos chamam la correttezza, a correção, de tal maneira que uma pessoa não poderia propor uma ação para desfazer um ato próprio do qual tirou antes proveito.
O direito atual está embebido de um sentido profundo de eticidade. É a razão pela qual dá tratamento especial aos contratos de adesão, que são de tamanha importância no mundo contemporâneo, bastando dizer que nós a todo instante aceitamos realizações econômicas e/ou sociais baseadas em contratos que não lemos sequer, porque são oferecidos já prontos ao consumidor. Nesses chamados contratos de adesão, as cláusulas mais perigosas são impressas em uma letrinha tão miúda que não aconselha sua própria leitura. De tal maneira que na realidade só sabemos o que aceitamos quando em casa tranqüilamente temos tempo bastante para ler e não no tumulto da vida cotidiana. Quando houver, diz o novo código, no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente, o mesmo princípio que vigora no Código do Consumidor. Na dúvida, resolve-se a favor do consumidor. Mas isso diz respeito apenas a um aspecto, a um ângulo da atividade humana. O Código Civil, ao contrário, se estende a toda e qualquer espécie de atividade, qualquer que seja o objetivo que se tenha em vista, não apenas o consumo mas a prestação de um serviço, por exemplo, através de contrato de adesão.
Portanto, houve um valor diferente na colocação dos problemas, o que iria repercutir profundamente num capítulo que tem sido preservado pelos tratadistas. Eu me refiro à teoria da posse. Os que são formados em direito ou têm noções jurídicas sabem que, quando se chega ao capítulo da posse, lembram-se os ensinamentos de Rudolph von Hiering ou de Friedrich Karl von Savigny. Pois bem, o código traz uma categoria nova para a compreensão da posse, que é a da socialidade. Passa a considerar o valor do trabalho no ato de possuir. Nós temos compreensão desse fenômeno, porque o Brasil é um país que ainda tem terras para serem ocupadas e fecundadas pelo trabalho humano. O trabalho completa a mera posse. Ela não é mais vista como a simples detenção factual da coisa, mas pode ser também uma detenção axiológica valorativa em razão do trabalho, levando em consideração, por exemplo, a posse das áreas imensas a serem ainda utilizadas. Aquele que ocupa durante cinco anos com boa-fé um terreno, um imóvel rural até 10 hectares e civilmente 250 metros quadrados, e não encontra oposição, adquire o domínio e a propriedade em razão do trabalho julgado pelo juiz de valor bastante para justificar a tomada de posse. Isso apenas para exemplificar a questão.
Esse princípio da socialidade e da eticidade é tão grande que me lembrei de uma questão que tive como advogado, logo no início da minha carreira. Tratava-se de uma ação de reivindicação de propriedade, proposta contra uma área imensa do interior do estado onde tinha surgido uma cidade. Ao pé da letra, o autor teria direito de recuperar toda aquela área, onde havia valores a serem levados em consideração. Diante da draconiana legislação então vigente, ele teve ganho de causa e obrigou praticamente os possuidores, ainda que de boa-fé, mas com títulos passados que se revelaram falsos, a fazer composições, quando não a perder aquilo que tinham. Diante dessa lembrança, incluí pessoalmente o parágrafo 4º do artigo 1228, que alguns consideram inconstitucional mas que reputo uma expressão máxima de uma compreensão social da Constituição. Digo no parágrafo: "O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela tiverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante". E vem o parágrafo 5º a completar o sentido ético-social do preceito: "No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário". De maneira que o proprietário recebe a justa indenização que for arbitrada. Pago o preço, valerá a sentença como título para a transcrição do imóvel em nome dos possuidores. Estamos aqui dando um passo altamente elogiável e perigoso, à luz dos egoístas do mundo jurídico. Estou oferecendo ao juiz a competência para expropriar, por serviço social ou por função social.
Bastam esses exemplos para ver o sentido fundamental dado ao código por esses dois princípios.
Resta analisar o chamado princípio da operabilidade. Ele diz respeito a todas aquelas medidas de que lançamos mão para que o direito seja uma realidade imediata, pois justiça tardia é justiça nenhuma. O direito tem pressa de ser justo. Desde que se pense em medidas que dão operabilidade a esse objetivo, estamos realizando uma nova categoria jurídica. Existe uma distinção no direito entre prescrição e decadência. Todo direito tem certa duração, e há necessidade de cautela para que não ocorra sua perda. Há alguns direitos que por determinadas razões prescrevem, e há outras ocasiões em que se fala em caducidade, pois o próprio direito em si mesmo é que perece. Ora, os tratadistas brasileiros e estrangeiros têm gasto obras infinitas para estabelecer critérios distintivos entre prescrição e decadência. Posso asseverar aos senhores tranqüilamente que a questão continua em aberto, porque nenhuma teoria até agora convenceu pacificamente a todos. Mas como é necessário operar no mundo jurídico, nós (quando digo nós, são os membros da comissão) tivemos em vista um princípio tático, uma estratégica jurídica que consistiu no seguinte: na parte geral do código, que traça os grandes rumos a serem seguidos pela legislação, são registrados, como números fechados, os casos de prescrição. Não há mais dúvida: ou figura no artigo relativo à prescrição e é prescrição, ou então se trata de caducidade. A caducidade, quando é estabelecida, é como um complemento natural da norma.
Um exemplo para esclarecer. Pensemos num contrato de empreitada de construção de edifício. O construtor responde pela solidez e garante a higidez de seu trabalho. A garantia, portanto, é dada por certo tempo, que é o prazo de cinco anos. Passado esse período, está mais do que comprovado ou pelo menos se pressupõe que os cuidados tomados pelo construtor foram suficientes para dar atenção à obra. Pois bem, esse prazo de cinco anos não é de prescrição, é de caducidade. Então a caducidade está apegada à norma que rege a atividade em jogo, para mostrar como a operabilidade é muito importante. A maior relevância da operabilidade, porém, foi na adoção das chamadas cláusulas abertas. O código atual, inspirado na diretriz juridicista dos pandectistas, pretende dar normas jurídicas cerradas, ou seja, responder pelo direito e no direito à questão que esteja em pauta.
Pois bem, nós preferimos dar grande relevo às chamadas cláusulas abertas, ou seja, normas gerais que deixam algo a critério do juiz para realizar uma justiça concreta, conforme jurisprudência fundamental. Chamo a isso direito como experiência, outros falam em direitos concretos, como Karl Engisch, Karl Larenz e tantos outros juristas fundamentais, e da Itália o grande Emilio Betti. Então, as cláusulas abertas vão dar uma enorme responsabilidade ao advogado para situar o problema em face da regra jurídica, com a devida cautela e boa-fé. O juiz, por sua vez, aumenta sua responsabilidade, até o ponto de, em determinada hipótese, haver um parágrafo único do artigo 575, relativo ao contrato de aluguel. Trata-se da questão da duração de um contrato de locação. Vencida a locação, deve haver a devolução da coisa ao locador, porém, pode acontecer que não se dê essa devolução, e então o locador é obrigado a propor ação para reaver a coisa que continua indevidamente em poder do locatário. O código atual, no seu individualismo severo, estabelece que nessa hipótese o locador fixa o preço da locação a seu alvedrio, a seu arbítrio. O novo código não aceita o arbítrio e o alvedrio em hipótese alguma. Razão pela qual, nessa circunstância que estou lembrando, o artigo 575, parágrafo único, declara: "Se o aluguel arbitrado [pelo locador] for manifestamente excessivo, poderá o juiz reduzi-lo, mas tendo sempre em conta o seu caráter de penalidade". Trata-se de aplicar uma pena, mas com base num valor justo e não arbitrário, conforme desejos de um locador que queira enriquecer à custa alheia. É sempre o princípio da liberdade, da eticidade, da socialidade e da operabilidade.
Quero explicar aos senhores qual foi minha tarefa frente à comissão. Não foi a obra de Sólon ou Licurgo ao elaborar a Constituição para Atenas e Esparta. Foi o trabalho de uma comissão de grandes juristas que supervisionei, escolhidos por mim conforme afinidades espiritual e intelectual, por saber que tínhamos todos a mesma compreensão fundamental do direito, sem o que não seria possível estabelecer um ordenamento global, que foi dividido em partes. O ministro José Carlos Moreira Alves, a grande figura do Supremo Tribunal Federal, teve a incumbência da parte geral, mantida por Clóvis Bevilacqua e que remonta, como disse, ao gênio de Teixeira de Freitas, mesmo antes do Código Civil alemão de 1900.
Pois bem, nessa tarefa de rever e elaborar a lei houve uma divisão de trabalhos. O professor Torquato Castro, do Recife, recebeu a incumbência de tratar das sucessões. O eminente jurista gaúcho Clóvis do Couto e Silva, também falecido, ficou com o direito de família. Erbert Chamoun, com o direito das coisas. Agostinho Alvim, com o direito das obrigações. E Sílvio Marcondes, com uma parte que surge como novidade no código, o direito de empresa, que ele teimava em chamar de "atividades negociais", expressão que, no entanto, foi substituída por "direito de empresa" ainda na primeira fase dos trabalhos na Câmara dos Deputados.
Nessa partilha de assuntos, é claro que cada qual trouxe sua contribuição pessoal, e era necessário juntar, sistematizar e dar uma unidade lingüística a tudo isso. Essa foi a tarefa fundamental do supervisor: estabelecer uma unidade lógico-axiológica do sistema, de tal maneira que as partes não se contradissessem reciprocamente. Foi isso que realizei durante o ano de 1970. Houve uma reunião posterior em que todos os membros tomaram conhecimento da unificação feita por mim, que envolveu supressão e acréscimo de artigos e a contribuição pessoal minha onde quer que julgasse indispensável. Foi um trabalho altamente penoso, pois a representação que à primeira vista parece fácil é altamente difícil, a de compor partes isoladas numa unidade sistemática e valorativamente unitária.
Pois bem, dado esse depoimento de natureza pessoal, quero dizer aos conselheiros que há uma novidade que interessa fundamentalmente aos empresários, que é o direito de empresa. Falando na Federação do Comércio, não poderia deixar de dizer alguma coisa a respeito disso. Em que sentido se usa a palavra "empresa"? Não é um substantivo correspondente a sociedade, é empresa no senti do de toda e qualquer atividade que tenha em vista a produção e a circulação da riqueza, que tenha por fim produzir algo e ao mesmo tempo assegurar os serviços e a circulação.
O direito de empresa envolve várias obrigações fundamentais, com grande atualidade. Bastará dizer que ao tratar da contabilidade, enquanto a questão hoje é posta quase que em termos de tabelionato, com um formalismo absoluto, o novo código estabelece a liberdade de atualização de toda a estrutura por meio da eletrônica. Haverá, portanto, uma libertação do formalismo vigente para a escrituração de uma empresa, podendo ser utilizada a tecnologia que está hoje a nosso dispor, para nossa vantagem e segurança.
No direito de empresa foi feita uma revisão das sociedades fundamentais, com especial atenção inicialmente à sociedade anônima e à sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Ocorre, porém, que no plano comercial houve pressa em alterar a lei de sociedade por ações. Nós, autores do primeiro anteprojeto que as abrangia, reconhecemos a necessidade de extirpá-las do código, dada a presença de um valor novo, que é o mercado de capitais. A lei de sociedade por ações não é como o Código Civil, pois age também em função do mercado de capitais, exigindo uma série de instruções e normas aditivas, através de decretos e resoluções executivas. Então o código perdeu a parte relativa às sociedades anônimas, mas conservou o direito por cotas de responsabilidade limitada.
Sílvio Marcondes, e eu após sua morte, tivemos presente a importância da sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Se os senhores atentarem bem, verificarão o caráter de universalidade da sociedade por cotas ou da sociedade limitada, porque é um instrumento de ação para a micro, a média e a grande empresa. Quando se estabelece, por exemplo, uma rede ampla, geralmente a sociedade mestra, a que tem a vinculação de todas as ações, é uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Então a sociedade limitada tem essa característica, serve ao pequeno e ao grande empresário. Daí a necessidade de dar-lhe uma nova estrutura. Se lembrarmos que a lei de sociedade por cotas de responsabilidade limitada é da década de 30, verificaremos como se tornou absolutamente vazia de conteúdo em razão do tempo e da tecnologia supervenientes. Daí o cuidado com que a matéria foi estudada, oferecendo duas opções, que são estabelecidas logo no primeiro artigo. Ou se opta pela existência de uma diretoria e pela aplicação da lei simples em geral, ou então, ao contrário, quando a sociedade por cotas tem grandes valores, opta-se por aplicar nas lacunas a lei de sociedades anônimas. De maneira que ela é complementar daquela que chamamos sociedade simples, que é mera sociedade para fins econômicos, empresariais ou não-empresariais.
O código prevê um tipo de sociedade genérica chamada sociedade simples, como a dos empresários e a minha, por exemplo, como advogado, uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada para trabalho não-empresarial, sem a estrutura de uma empresa. Isso poderia ser chamado também de direito das sociedades, mas preferimos usar a expressão direito de empresa porque ela, por sinédoque, dá o sentido do todo em razão de uma parte.
Esse foi o espírito do Código Civil. Vou dar-me por satisfeito com a exposição realizada até agora, porque o que me interessava era mostrar a nova compreensão da vida e do cosmos, digamos assim, falando já como filósofo, refletindo no campo do direito como compreensão da conduta humana na sua eticidade e economicidade.
Debate
MIGUEL REALE Eu nunca usaria a expressão "publitização", que é ambígua, e não a trocaria pela palavra clara "socialidade". O que revisamos é uma obra de socialidade. Não se trata de individualismo contra socialismo. Não pensem que porque houve a queda do Muro de Berlim tenha desaparecido do cenário humano a questão social. É a socialidade como princípio que interfere no código, e não a publitização. Ao contrário, damos forte expansão a atividades negociais. O grande mérito de Hans Kelsen foi mostrar que a norma jurídica não deve estar permanentemente ligada à noção de lei, quase que numa sinonímia norma jurídica/norma legal. Kelsen, que era purista do direito e acreditava só na norma, e com o qual não estou de acordo, no entanto teve o mérito de abrir o campo do normativo, demonstrando que há quatro categorias fundamentais de normas: a legal; a jurisprudencial, que é elaborada através das decisões dos juízes e dos tribunais; a costumeira, que tinha sido esquecida pelo Código Civil os usos e costumes preenchem em grande parte a atividade comercial; e finalmente as chamadas normas negociais, que são o produto da livre iniciativa. Entre os fundamentos do direito, diz com acerto a Constituição, está a liberdade de iniciativa. Ela é a fonte dos chamados negócios jurídicos, as normas negociais.
OLIVEIROS S. FERREIRA Tendo em vista o disposto sobre a boa-fé e o traduzido nos parágrafos 4º e 5º do artigo 1228, não se amplia a latitude da jurisprudência especialmente quando se diz que a sentença deve levar em conta os usos e costumes , permitindo o aumento do poder monocrático e discricionário do juiz? Esse aumento da latitude jurisprudencial não leva à introdução da common law no direito brasileiro?
MIGUEL REALE Não digo que seja a introdução dos princípios da common law
no direito brasileiro, mas significa que estamos levando em consideração a importância
dos usos e costumes na vida do direito, o que tinha sido esquecido por uma concepção
excessivamente acentuada da lei como norma por excelência. A lei é inegavelmente a
princesa das normas, mas ela é completada, mesmo porque no direito atual (e falo aqui
como filósofo do direito) dá-se uma importância básica à interpretação. Ela às
vezes é considerada como algo de subalterno para analisar o conteúdo da norma. Não é
essa a orientação firmada por Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, que dizem:
interpretar é uma forma por excelência de conhecer, razão pela qual tenho chegado mesmo
a dizer: a norma jurídica é a sua interpretação.
Dou o exemplo da minha advocacia, num caso, aliás, bastante interessante como fixação
do valor da interpretação. Um grande magazine, que depois desapareceu, localizado na Rua
Marconi, em São Paulo, resolveu construir divisões internas com paredes de
meios-tijolos. O proprietário, que estava ambicionando aumentar o valor daquele aluguel,
propôs ação de cassação da locação por violação da cláusula que previa a
divisão interna do imóvel. Procurado por esse magazine, fiz uma defesa que foi aceita
pelo juiz e pelo tribunal: é preciso levar em conta a construção atual. Na antiga, os
tetos apoiavam-se sobre as paredes. Com a estrutura de cimento armado, as paredes se
movimentam livremente. O que se chamava de tabique é hoje feito no tijolo, que preenche
os vazios e não sustenta nada, não tem função estrutural. Essa maneira de interpretar
a construção moderna, diferente da antiga, me levou a dar ao preceito do Código Civil
um sentido novo, e essa grande empresa venceu a causa contra o ambicioso locador.
É claro que foi dada uma nova missão ao juiz, pois ele não é monocrático, está
subordinado também aos tribunais, até chegar, quando possível, ao Supremo Tribunal
Federal ou, na fase infraconstitucional, ao Superior Tribunal de Justiça. Se não
acreditamos nos juízes e na Justiça, em que vamos acreditar? A vida humana está sempre
cheia de riscos. Ai daquele que pensa que pode viver sem risco. O importante é ter o
equilíbrio moral, o balanceamento de valores na compreensão daquilo que deve ser feito.
JOSUÉ MUSSALÉM Poderíamos estabelecer diferença entre um ato ilícito de natureza privada e um ato ilícito de natureza pública? Na minha opinião, um ato ilícito de natureza pública seria aquele praticado por detentor do poder, seja no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário. Para ele, seria atribuída uma penalidade mais severa, pois o ilícito público tem um impacto social e econômico maior do que o ilícito privado.
MIGUEL REALE Não vejo necessidade de estabelecer essa primazia do público sobre o privado. Pelo contrário, quanto mais a sociedade se desenvolve, mais a socialidade envolve o público e o privado, impondo exigências. O problema é mais de critério da coisa concreta do que resposta em abstrato. O que caracteriza a minha posição jurídica é exatamente o direito como experiência, como concreção, e sua pergunta pretende transpor para o plano da abstração aquilo que deve ser posto no da concreção.
JOSUÉ MUSSALÉM O Código de Defesa do Consumidor atribui ao comerciante, industrial ou vendedor de um bem ou serviço o conceito de reversão do ônus da prova. Não seria o caso de estabelecer uma legislação que aplique ao detentor do poder, no Executivo, Legislativo e Judiciário, o conceito de reversão do ônus da prova?
MIGUEL REALE Não estou de acordo com tudo o que o Código do Consumidor
estabelece, porquanto o legislador agiu pensando que o empresário é um explorador e não
um praticante de uma profissão, do exercício de um determinado valor. A inversão do
ônus da prova depende das circunstâncias em concreto. Mais uma vez, o juiz deve
verificar se cabe essa inversão no caso concreto e não em abstrato. Em abstrato tudo é
possível conceber e apreciar.
Eu não sei por que estabelecer uma legislação assim para os três poderes. A prova deve
ser produzida por quem invoca o seu direito. Isso deve ser o princípio fundamental. A
inversão somente se compreende quando há obstáculo e impossibilidade de realizá-la,
mas não deve ser estabelecida por princípio, apenas porque o outro tem mais força do
que eu. Eu sou o outro perante outros "eus". O direito vive da bilateralidade,
da intersubjetividade e não por conseguinte dessas visões abstratas que persistem. O
brasileiro é muito abstrato, muito formalista. No dia em que compreender que deve levar
em consideração o que na realidade está em pauta, apreciar e julgar, teremos uma nova
visão do direito. Portanto, o meu medo é que esse código seja interpretado com a
mentalidade formalista que presidiu a análise e a interpretação do código antigo. Se
não houver mudança de atitude intelectual no que diz respeito à hermenêutica, o
código continuará velho, não pelo que diz mas porque erroneamente se interpretou.
JOSUÉ MUSSALÉM Mas essa mudança poderia contribuir para o avanço da ética no setor público na medida em que todo político ou detentor de cargo público, ao ser acusado de corrupção ativa ou passiva, terá de provar sua inocência, levando o acusador a ter de provar o ato ilícito.
MIGUEL REALE A inocência é obrigado a provar quem, com indícios bastantes, é submetido à acusação. Quando não existem indícios que configurem um nexo de responsabilidade, não há que falar em responsabilidade, que pode ser subjetiva ou objetiva. Uma das inovações fundamentais do código está exatamente em estabelecer a responsabilidade subjetiva de um lado e completá-la com a objetiva. Em que termos o código o fez? Não por uma doutrina do risco, genericamente falando, mas pelo conceito de estrutura. Todo e qualquer ato praticado numa determinada estrutura que em si mesma já implique risco, aí a responsabilidade é objetiva. É a teoria estruturalista do risco, fundamental para a compreensão desse problema. Serei eu um adepto do estruturalismo? Sim, mas do estruturalismo concreto, não do formal, da mera linguagem aparente e externa.
MOACYR VAZ GUIMARÃES Entre os privilégios que a vida me concedeu três há que quero registrar nesta oportunidade. O primeiro é ter tido a ventura de ser aluno do professor Miguel Reale na Faculdade de Direito. O segundo foi no Conselho Estadual de Educação, onde permaneci por 20 anos e me socorreram os escritos do mestre a indicar-me rumos e posições. O terceiro é permanentemente reler suas obras, nas quais sempre descubro inspiração para novas reflexões, e orientar-me pelos seus artigos publicados no jornal "O Estado de S. Paulo".
JOÃO PAULO ROSSI A expropriação de que trata o artigo 1228, parágrafo 5º, é judicial?
MIGUEL REALE É claro, é feita em juízo, é o juiz que delibera. Só que em lugar de devolver a coisa que está ocupada pela sociedade com valores infinitos, ele manda avaliar o título, a propriedade. Será pago o valor de mercado do imóvel, pela sentença do juiz. E os beneficiados com essa norma têm de pagar o preço estabelecido pelo juiz.
SAMUEL PFROMM NETTO Numa manhã ensolarada como a de hoje, na Alemanha ocupada
pelos Aliados logo após o fim da 2ª Guerra Mundial, um rapazote pedalava sua bicicleta
pelas ruas de Berlim. Um soldado russo apontou o fuzil para o menino. Matou-o. E
tranqüilamente apossou-se da bicicleta. Começa assim, com essa ocorrência verídica, o
livro que Ralf Dahrendorf escreveu nos anos 70, com o título Anomia.
Professor Reale, em que pesem os códigos Civil e Penal brasileiros, nossa organização
judiciária, as belas tradições do direito nacional, estará o Brasil, nestes tempos
melancólicos que vemos, estarrecidos, em que crescem dia após dia o desrespeito à lei,
a criminalidade, a violência, a vulnerabilidade do cidadão comum, a audácia e
impunidade de um banditismo feroz, caminhando a passos largos para o estado de anomia a
que se refere Dahrendorf?
MIGUEL REALE É uma pergunta que até certo ponto tem a ver com o código. O novo Código Civil vai talvez incentivar mais a produção pela confiança na iniciativa privada. Ele leva em consideração o aumento da iniciativa privada. O problema da violência é tão vasto que peço que não me obriguem a ficar aqui uma hora para tratar do assunto.
ROBERTO PENTEADO O novo Código Civil, pelo visto, não contempla a questão da propriedade industrial, as patentes.
MIGUEL REALE Não, é claro que não. O Código Civil não é o código de tudo o que é matéria de direito civil. As patentes envolvem muito mais do que o direito civil, referem-se a problemas de natureza administrativa, compromissos internacionais, tratados. O código estabelece apenas as normas daquilo que é duradouro e que tenha uma amplitude social. A patente é uma questão de direito econômico comercial. Nesse ponto, aliás, quero esclarecer: o direito de empresa incluído no Código Civil não significa de maneira alguma o fim do direito comercial. Este é uma estrutura lógico-científica que diz respeito a determinada área da atividade jurídica. O que o código estabelece são apenas as normas gerais que também se aplicam no mundo dos negócios. Não realizamos, notem bem, a unificação do direito privado, longe de nós essa idéia. O que estabelecemos foi a unidade das obrigações, pois essa já era uma prática no Brasil. Em razão do obsoletismo do Código Comercial de 1850, as questões eram resolvidas à luz do Código Civil de 1916. O Código Comercial, porém, não foi todo revogado; só a parte geral, e as demais continuam em vigor com os complementos da parte empresarial. Esta estabelece as grandes diretrizes, menos as das sociedades anônimas e das cooperativas. A questão das patentes não teria sentido, porque constitui um problema internacional. O nacionalismo das patentes é um abuso contra a inteligência. Temos de respeitar o direito da inteligência no Brasil e fora daqui, e não permitir que, através de processos escusos, se recuse o poder criador e instaurador da inteligência humana.