Postado em 01/09/2002
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Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo sofre com descaso
CECÍLIA PRADAHá um portal mágico no prédio de número 158 da Rua Benjamin Constant, no centro velho da capital de São Paulo seus imponentes batentes de madeira maciça revelam o caminho para um dos tesouros mais importantes do patrimônio cultural brasileiro. A porta já é uma relíquia, pois provém do antigo Palácio do Governo no Pátio do Colégio. E o edifício é a sede do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), inaugurada em 25 de janeiro de 1954, no dia em que a cidade comemorava seus 400 anos.
Mas atenção! a visita que se inicia neste momento a uma das mais venerandas instituições culturais da capital paulista não consta do roteiro turístico da cidade. Nem mesmo pode ser empreendida pelo público. Seu valiosíssimo acervo distribuído por biblioteca, arquivo histórico, hemeroteca e o Museu José Bonifácio está fechado, à espera de dias melhores e de verbas, oficiais ou privadas, que permitam a recuperação física do edifício, que em seus sete andares apresenta, de alto a baixo, rachaduras, tetos arruinados, mofo, infiltrações, cupins. Recursos que permitam a essa respeitável instituição de 107 anos recobrar o alento, beneficiar-se dos sofisticados recursos tecnológicos hoje disponíveis para a catalogação e conservação de documentos, aumentar seu quadro de funcionários, voltar a publicar regularmente sua revista anual obrigatória, segundo seus estatutos e desenvolver uma programação de eventos, exposições, seminários e simpósios.
Enfim, que chegue ao século 21 e nele se instale, atuante. É isso o que se propõe a atual presidente da entidade a socióloga doutora Nelly Martins Ferreira Candeias, professora titular aposentada da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Ela própria constitui uma "novidade", por ser a primeira mulher a ocupar o cargo, muito embora a presença feminina na instituição já fosse normal desde 1901 com a admissão da médica belga Marie Rennotte, radicada em São Paulo.
Um grande desafio
A reforma do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, porém, não se esgotará com a recuperação física do imóvel, o restabelecimento das publicações, a salvaguarda do acervo, a reabertura do museu ao público.
Há algo além disso a ser resolvido o resgate de sua imagem e do prestígio que em outras épocas teve como elemento aglutinador da cultura paulistana. Uma questão que exige, tanto de seus membros como de setores culturais externos, uma reavaliação de posições históricas e querelas pendentes ligadas à própria ideologia que caracterizou, de um lado, no século 19, a fundação, em todo o país, de institutos históricos e, de outro, na segunda metade do século 20, a nova visão crítica da história, presente no ensino universitário em geral, e que muitas vezes levou à radicalização marxista.
Seguindo o modelo do Institut Historique francês, fundado em 1834, a primeira instituição do gênero no Brasil foi o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado no Rio de Janeiro em 1838 e favorecido pelo próprio imperador a partir de 1849 a sede da instituição foi mesmo transferida para o Paço Imperial. O objetivo do IHGB e dos demais congêneres de todo o país foi, durante todo o século 19, a unificação e o fortalecimento da nação, com a valorização da história pátria e do regime monárquico na definição da historiadora Lilia M. Schwarcz, "a produção de um saber de cunho oficial ... nas mãos de uma forte oligarquia local, associada a um monarca ilustrado" (O Espetáculo das Raças Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil, 1870-1930).
Esse "pecado de origem" está associado ao modelo historiográfico adotado universalmente naquela época ou seja, a valorização de uma história meramente factual, documental. Como dizia, em 1864, o famoso historiador francês Fustel de Coulanges, pas de documents, pas d´histoire ("sem documentos não há história"). Na década de 1920, porém, um grupo de jovens historiadores franceses se reuniria para definir novas diretrizes da disciplina a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma visão interpretativa, capaz de integrar elementos vindos de outras disciplinas geografia, sociologia, psicologia, economia, lingüística, antropologia, etc.
Conhecido como escola dos "Annales" (uma revista fundada em 1929, importante até hoje), o movimento queria "contar uma outra história" e teve como principais nomes Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel. Este último foi particularmente significativo para o Brasil deu cursos famosos na USP na década de 1930 e exerceu uma grande influência na obra de Gilberto Freyre.
Voltando aos institutos históricos, podemos agora entender como a pecha de conservadores e reacionários foi de maneira bastante genérica lançada sobre eles. Fato que tem sido rebatido por alguns como uma tentativa deliberada e viciosa de destruir o legado da instituição e adulterar a história.
Essa situação espinhosa é visível particularmente no caso do instituto paulista. Nas escaramuças, na guerrilha de pelo menos meio século entre a instituição e a USP, com a decorrente radicalização de ambos os lados, principalmente no que se refere ao Movimento Constitucionalista de 1932 sagrado para uns, abominado por outros.
Em entrevista ao "Jornal da USP" em 21 de junho de 2000, Samuel Pfromm Netto professor aposentado da Universidade de São Paulo e que, na ocasião, ocupava o cargo de 1º vice-presidente do IHGSP denunciava a deterioração do ensino de história, nos livros didáticos. Na sua opinião, estaria ocorrendo há décadas no ensino "uma omissão deliberada, com intuitos doutrinários, ideológicos e bairristas" em relação à história de São Paulo. E acrescentava: "Boa parte da história do Brasil e de São Paulo publicada neste século provém do IHGSP. A USP era o prolongamento do instituto. De repente, todo o passado foi esquecido ... e a pseudo-história invadiu a história, que antes era trabalhada de maneira documentada".
Essa opinião é rebatida pelo professor Adilson Avansi de Abreu, pró-reitor de Cultura e Extensão da USP segundo ele, a história de São Paulo continua, sim, a ser ensinada, mas a partir de uma visão crítica e inserida num contexto mais amplo, nacional. Mas reconhece: "O IHGSP perdeu espaço, e a pesquisa mais forte deslocou-se para a USP, o que deu origem a certa competição. O instituto ficou com uma imagem conservadora, que não corresponde aos valores que possui. Essa visão persiste, apesar de todos os esforços. Os estereótipos são duros de remover".
O papel desempenhado pelo IHGB e demais institutos é reconhecido pelos mais importantes historiadores. José Honório Rodrigues, por exemplo, afirma: "A pesquisa histórica brasileira nasceu com o próprio aparecimento do instituto", esclarecendo: "Ele não surgia como organização puramente acadêmica, mas com o objetivo de investigar, organizar e publicar os documentos históricos brasileiros".
Enquanto isso, em São Paulo...
Cabe uma pergunta: o instituto paulista, que só foi fundado 56 anos depois do IHGB em 1894, portanto em plena República , não deveria ser visto, na perspectiva histórica, como diferenciado dos demais, cujos moldes eram os prevalecentes durante o Império?
Não há dúvida de que sim. O contexto histórico era inteiramente diferente. A partir da segunda metade do século 19, com a mudança do eixo econômico do país do nordeste para o sudeste, começou a ocorrer uma diversificação profissional acentuada na elite ilustrada do país até então era comum a formação em Coimbra, em Portugal. Idéias "novas" varriam o país, veiculadas a partir das faculdades de direito de São Paulo e do Recife os vários ismos começavam a chegar (do darwinismo e do positivismo ao comunismo), permeando o discurso republicano e abolicionista.
O historiador Hernâni Donato, presidente de honra do IHGSP, no número LXXXVIII da "Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo" traça um panorama da cidade de São Paulo em 1894, ressaltando a "afirmação de vontade hegemônica" que ela já demonstrava na época, em relação a outros estados. Até a maçonaria paulista declarava-se independente daquela do Rio de Janeiro. A euforia prevalecente, com o afluxo do dinheiro e a importação de cultura européia, agitava toda a cidade de São Paulo, onde, segundo Donato, "o viver ganhava aceleração", pois "nas ruas ouvia-se algaraviar em dez idiomas" e "usos e costumes deviam incorporar com rapidez novidades procedentes de várias regiões e etnias". Desenvolvia-se a imprensa e o gosto pela leitura. Além de ter oito diários noticiosos, a cidade de São Paulo contava com jornais de grupos nacionais diversos. Só os italianos eram 21. Lilia Schwarcz, na obra citada, chama a atenção para a diversidade de origem social e de formação dos intelectuais surgidos a partir da década de 1870 vista como "uma nova era". Diz: "Se essa elite ilustrada não era, em sua maioria, originária das classes mais pobres, também não pode ser entendida como totalmente oriunda ou até mesmo porta-voz exclusiva dos interesses das classes dominantes".
Duas décadas mais tarde, essa nova "inteligência" estava empenhada em criar focos de ensino e cultura em todo o país. O ano de 1894 foi marcado, em São Paulo, pelo surgimento de importantes estabelecimentos de ensino e instituições culturais enquanto começava a ser construído na colina do Ipiranga o Museu Paulista, eram criadas a Escola Politécnica, a Escola Normal da Praça da República, o Ginásio do Estado. Data também desse ano a Associação Comercial de São Paulo.
Nesse clima de euforia e progresso, no dia 1º de novembro de 1894 foi fundado em um salão da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (então Academia de Direito) o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. A comissão fundadora era constituída por Domingos José Nogueira Jaguaribe, Antonio de Toledo Piza e Estêvão Leão Bourroul. Deles, somente o segundo era paulista, de família tradicional, engenheiro de profissão. Jaguaribe, cearense de nascimento, era médico, psicólogo, escritor e político, enraizado profundamente na terra paulista. Quanto a Estêvão (ou Étienne) Bourroul, nascera na França, em Nice, mas, vindo com a família para o Brasil, graduou-se em direito em São Paulo em 1881 e naturalizou-se em 1899.
Foram 139 os sócios fundadores da entidade, e seu primeiro presidente foi Cesário Motta Filho, médico e político dotado de grande visão, um dos idealizadores de uma universidade para São Paulo.
Como se pode ver, a criação do IHGSP surgiu da fermentação intelectual própria da cidade que se transformava no mais importante pólo econômico do país, portanto, sem conotação política. Foi como centro de debate de idéias e não como mero repositório de valores consolidados que o instituto se constituiu e fez história. Uma consulta à lista dos sócios fundadores e de seus sucessores no decorrer do século 20 nos remete aos mais reputados nomes da vida social, política, econômica, científica e artística da cidade muitos deles hoje perpetuados na nomenclatura das ruas paulistanas.
No campo específico de suas disciplinas, o trabalho desenvolvido pelo IHGSP tem sido, ao longo de sua existência, contínuo e fecundo. Basta lembrar que foi em uma sessão do IHGSP (5/2/1898) que o escritor Euclides da Cunha deu a conhecer parte de um trabalho que então realizava. Mais exatamente, o estudo geográfico Climatologia dos Sertões da Bahia, que integraria a primeira parte de sua célebre obra, Os Sertões cujo centenário comemoramos neste ano (veja também matéria sobre o centenário de "Os Sertões" nesta edição).
O Instituto hoje
A diretoria atual que conta com oito membros ligados à USP , apesar de todas as dificuldades financeiras, continua com uma importante programação cultural. Hoje, como ontem, instigantes questões são levantadas e discutidas em ciclos de palestras, reacendendo polêmicas. Como a da fundação de uma Vila de Piratininga por Martim Afonso em 1532, que o ecologista e historiador Malcolm Forest abordou, em sessão de 4 de abril deste ano (ver texto abaixo).
Neste momento crítico para o IHGSP, a presidente Nelly Candeias empenha-se em "um novo paradigma", que tem como foco o sistema de parcerias com empresas públicas e privadas, organizações da sociedade civil, agências internacionais. Uma tarefa que não é só do IHGSP mas de toda a cidade de São Paulo, que não pode se deixar vencer pelos cupins do descaso público que ameaçam 8 mil títulos de jornais e periódicos raros; arquivos do Partido Democrático, das tradicionais Irmandades, das muitas personalidades que passaram pelo instituto; toda a documentação da Revolução de 32; correspondências famosas (como as de Lord Byron, do naturalista Richard Burton, de Von Martius, de Washington Luís e de Eça de Queirós); desenhos e pinturas originais de Debret, Calixto, José Wasth Rodrigues; fardas do Império, mapas, edições raras e muito mais.
As pesquisas de documentos cartoriais seiscentistas efetuadas por Maia Fina são exaustivas e confirmam uma hipótese a primitiva Vila de Piratininga localizava-se na região da Cantareira, tendo sido fundada em 12 de outubro de 1532 por Martim Afonso de Sousa, a mando da Coroa portuguesa, ansiosa por demarcar as terras que lhe haviam sido atribuídas pelo Tratado de Tordesilhas. Piratininga seria um cacicado, uma vasta região localizada entre o rio Tietê, o morro do Jaraguá, o rio Juqueri-Mirim e o rio Cabuçu e os Campos de Piratininga, por sua vez, estariam localizados entre a antiga Vila de Santo André, no alto da serra do Mar, em local que não corresponde exatamente à atual cidade de Santo André, e a serra da Cantareira, "incluindo a Vila de São Paulo de Piratininga".
O local da povoação teria sido estrategicamente mantido sob certo sigilo durante 22 anos pela Coroa. A histórica missa celebrada pelos jesuítas no Pátio do Colégio em 25 de janeiro de 1554 marca, sim, a fundação "oficial" da célula mater de São Paulo. A vila nascente estaria ligada à região piratiningana, daí a denominação "São Paulo de Piratininga". O pequeno núcleo jesuítico erguido no Pátio do Colégio foi inegavelmente assentado segundo carta do próprio padre Anchieta ao fundador da Companhia de Jesus e futuro santo da Igreja Católica, o padre Inácio de Loyola no local onde havia "uma outra tapera [casa ou povoação em ruínas] antiquíssima", preexistente, portanto, a 1554. Segundo Malcolm Forest, esse fato poderia sugerir uma intrigante ocupação do local por portugueses, europeus ou outra cultura anterior a 1500. A igreja de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta serviria então às duas vilas já existentes em 1554, a de Piratininga e a de Santo André.