Postado em 03/04/2020
Como já dizia um velho slogan de uma certa campanha publicitária, "Quem lê, viaja".
E em tempos de pandemia e isolamento social, a melhor forma de viajar é através de clássicos da literatura mundial.
Selecionamos, então, alguns títulos que foram abordados no projeto Livro da Vez, do Centro de Pesquisa e Formação, em que críticos literários, professores, pesquisadores e autores destrincham obras literárias e propõem uma série de reflexões sobre o processo criativo dos seus autores. Pedimos para alguns pesquisadores do CPF resenhassem essas obras e o resultado você lê abaixo.
*Por Sabrina da Paixão Brésio, Historiadora, mestre e doutoranda em Educação pela FEUSP.Integrante do Lab_Arte e do GEIFEC, e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo
Em Desaplanar, o professor e quadrinista Nick Sousanis se utiliza das histórias em quadrinhos para questionar exatamente a planificação do pensamento e a necessidade de ampliar as percepções de nossos modos de ver e compreender.
Atualmente professor assistente no departamento de Ciências Humanas e Estudos Liberais na San Francisco State University, onde criou o programa de estudos em quadrinhos, Sousanis apresenta Desaplanar como sua tese de doutoramento em Educação na Columbia University. Lançada nos Estados Unidos em 2015 pela Harvard University Press e no Brasil pela Editora Veneta em 2017 durante as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da USP, esta obra estabelece uma ponte entre Epistemologia, Artes Visuais e divulgação científica, sendo inovadora na forma de apresentar uma tese acadêmica que seja conceitualmente consistente e profunda, e ao mesmo tempo, acessível ao público externo à academia. Em 2016 foi laureada com o American Publishers Awards for Professional and Scholarly Excellence (PROSE Award) na área de Humanidades, com o Lynd Ward Prize como Melhor Graphic Novel de 2015, e indicado ao Eisner Award como melhor trabalho acadêmico.
O autor parte da ideia de plano e planificação para abordar como se dá nossa forma de pensar, de experenciar e de conceber a multiplicidade que existe para além do plano. A planificação do pensamento é apresentada como parte do processo de uniformização da pessoa, onde esta planura exclui as dimensões da crítica e da potência do ser para uma redução massificante, transformando a padronização social como uma função de eficiência e, naturalizada em nós, inibe nossas possibilidades de olhar além. Deste modo, nos tornamos como os habitantes da Planolandia, referência ao livro de Edwin A. Abbott, aqueles seres que habitam apenas duas dimensões e assim não concebem uma terceira dimensão, tomando apenas o que sua vista alcança como a totalidade da realidade.
Assim, faz-se necessário ousar ver além de nosso horizonte reduzido. Mudar a perspectiva, reposicionar o ponto de vista, e perceber que o que vemos é parte de um todo absolutamente inapreensível por um olha fixo. Ao longo da obra, utilizando metáforas verbais e visuais e citando diversos estudiosos, o autor demonstra os mecanismos pelos quais funciona nosso pensamento, incluindo fatores biológicos e ópticos; o intercambio e conexão entre os hemisférios cerebrais; as organizações sociais enquanto participantes da construção de nossa identidade; o papel das linguagens na organização de nossas experiências no mundo; o estreitamento de nossa flexibilidade em apreender e explorar além de nossa visão, trazida através de constructos sociais planificadores e reguladores; o papel fundamental da imaginação e do espanto como meios de rever e questionar pontos de vista inflexíveis.
Pensando em termos de epistemologia, ele demonstra como a mesma plasticidade que nos permite criar e explorar o desconhecido pode contribuir para nos amarrar a pontos de vista reduzidos, através da hisperespecialização dos saberes, que criam barreiras e estreitam o olhar. Para romper as fronteiras destes olhares autocentrados, são as conexões, a diversidade e a divergência os caminhos para escapar a um pensamento planificado. Aqui coloca-se a velha discussão da primazia do escrito sobre o visual, dilema que a linguagem em quadrinhos habilmente consegue dissolver. O livro é elaborado de modo a mostrar como texto e imagem se complementam, um permeando outro, criando multiplicidades de leitura.
A tese defende a urgência em resgatarmos nossa capacidade de ver além, com a necessidade de reconhecer que nossa visão é limitada em termos absolutos, será sempre parcial, incompleta e fluida, e exatamente por ter estas condições é que é fundamental que os processos educativos incorporem a conexão, os pontos de vista diversos, os lapsos que são preenchidos com nossa imaginação, com nossa experiência sensível do mundo e com as potencialidades de nossa linguagem, dentre elas, a expressão do pensamento através de histórias em quadrinhos.
*Por Dulci Lima, Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais e integrante do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da UFABC e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo
Três décadas após o lançamento de sua primeira edição foi traduzido para o Português o livro Pensamento Feminista Negro da socióloga Patrícia Hill Collins (tradução de Jamille Pinheiro Dias) e publicado pela editora Boitempo.
Patrícia Hill Collins é professora emérita de Sociologia da Universidade de Maryland e do Departamento de Estudos Afro-americanos da Universidade de Cincinnati, e é também autora outros importantes estudos que conjugam discussões de gênero, raça e sexualidade como Black sexual politics: african americans, gender and the new racism e Intersectionality em coautoria com Sirma Bilge.
No prefácio à edição brasileira, Collins afirma ter escrito um livro que sua mãe pudesse ter lido e se surpreende com o alcance da obra. Amarrando a todo momento conceitos sociológicos com relatos de vivências de mulheres negras ouvidas ao longo da produção do estudo que resultou no livro, a socióloga nos apresenta uma escrita acessível, retomando com frequência questões já abordadas de modo a criar conexões entre informações que favoreçam a compreensão, ainda que o leitor não tenha familiaridade com os estudos raciais e de gênero.
Pensamento Feminista Negro - escrito durante um período de efervescência do feminismo negro norte-americano, a década de 1980 -, se insere num contexto onde se buscou desenvolver condições para compreensão da opressão multifacetada vivida por mulheres negras e do modo como essa característica produziu tradições intelectuais próprias que frequentemente não gozam de reconhecimento ou apoio de outros setores da sociedade. Em seu livro, Patrícia Hill Collins afirma que as intelectuais negras produzem suas análises a partir do lugar de marginalidade e que tais produções, oriundas desse ponto de vista, resultam em perspectivas diferenciadas (das hegemônicas) – e criativas – das questões de raça, classe e gênero. Dessa forma, a produção de conhecimento entre as mulheres negras se dá de maneira distinta do padrão acadêmico (mesmo porque o acesso à universidade é tardio para a população negra), grande parte dessa produção se desenvolve por meio da oralidade e em atividades cotidianas resultantes de situações de subordinação racial, de gênero, de classe, de sexualidade além de outras. Tal aprendizado adquirido na vivência dessas opressões fomenta a criação e transmissão de um conhecimento subalternizado que se constitui, por sua vez, em uma teoria social crítica das mulheres negras.
O pensamento coletivo das mulheres negras foi forjado, portanto, na oposição à opressão e orientado a encontrar maneiras de escapar à violência, se opor à injustiça social e econômica, buscar formas de garantir a sobrevivência em meio inóspito. O cerne da crítica feminista negra é, de acordo com Collins, o compromisso com a justiça para as mulheres negras, mas também para outras coletividades igualmente subalternas.
*Por Rosana Elisa Catelli, Doutora em Multimeios pelo Intituto de Artes da UNICAMP e Coorenadora de programação do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo
Yambo está com 60 anos, é um aficionado por livros e livreiro especializado em obras raras. Depois de um acidente, acorda no hospital e não se lembra do seu passado, a única memória que lhe resta são as histórias e os personagens que leu nos livros. Recorda-se das aventuras de Dom Quixote, personagem criado por Miguel de Cervantes. Sabe tudo sobre a vida de Charles Swan, o protagonista de “Em Busca do Tempo Perdido”, escrito por Marcel Proust. Recorda-se das batalhas descritas por Napoleão. Tomás de Aquino e seus escritos estão vivos em seus pensamentos, ou seja, Yambo lembra de tudo que leu nos livros. Yambo tem agora uma memória bibliófila.
Num dia, Yambo abre o livro de Santo Agostinho, “Confissões”, percebe que as páginas estão sublinhadas, sendo um sinal de que ele deve ter lido atentamente esse livro. Depara-se com um trecho no qual Agostinho aborda a questão da memória: “Chego então aos campos e aos vastos palácios da memória, quando estou lá evoco todas as memórias que quero, algumas se apresentam de imediato, outras se fazem desejar mais longamente, sendo quase que arrancadas dos escaninhos mais secretos… Todas essas coisas a memória acolhe em sua vasta caverna, em suas sinuosidades secretas e inefáveis, no enorme palácio da minha memória recebo o céu, a terra e o mar juntos, lá me encontro a mim mesmo…” O livro de Umberto Eco é uma reflexão sobre a memória individual e a memória coletiva, sobre o lembrar e o esquecer, e sobre os significados de nossas recordações.
Nessa narrativa de Umberto Eco, publicado no Brasil em 2005, os leitores acompanham Yambo em sua busca pelo passado. Yambo precisa encontrar uma entrada para a “caverna” de sua memória. Nesse percurso tragicômico, nos divertimos com as lembranças dos personagens ficcionais e com as confusões que Yambo faz entre a ficção e a vida real. Como também nos angustiamos, com sua aflição, por estar perdido num labirinto repleto de personagens e livros. Sem reconhecer as pessoas a sua volta, sem saber qual a sua relação com elas e sem conseguir identificar quais histórias fizeram de fato parte da sua vida.
* Por Flávia Prando, Doutoranda em música (ECA/USP), violonista e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo
Casé Angatu já havia anunciado que Nem Tudo era Italiano na metrópole que mais crescia no país, evidenciando a pluralidade das experiências culturais que davam suporte à narrativa de prosperidade e desenvolvimento de uma cidade que insiste historicamente em apagar vestígios de suas memórias, onde a força da grana não apenas destrói as coisas belas, como ainda reduz identidades a condição de contingentes "invisíveis".
Neste livro, fruto de uma pesquisa de doutorado, a pesquisadora Marília Cánovas traz a luz a uma faceta pouco estudada do fenômeno que ficou conhecido como o da "emigração em massa", período responsável pelo deslocamento de imensas ondas humanas que cruzavam o Atlântico em direção à América. Embora a presença dos imigrantes espanhóis em São Paulo seja numericamente importante, suplantada apenas pelos portugueses e italianos, esta imigração não conta com a mesma visibilidade que outros contingentes populacionais.
A autora busca em fontes de jornais, juntas comerciais, livros de registros de imigrantes espanhóis e recorre a depoimentos orais para compor uma pesquisa de fôlego e rigor. Esmiuçando o cotidiano dessa metrópole em ebulição; reconstituindo territórios, práticas de sociabilidade e sobrevivência e revelando confrontos culturais gerados pela convivência forçada dos atores de diversos deslocamentos humanos, Marília Canovas constrói uma história envolvente sobre a cidade de São Paulo na virada do século XIX para o XX que certamente encantará os apaixonados pelas múltiplas possibilidades de narrativas que a cidade esconde.
*Por Maurício Trindade, Doutor em Sociologia pela FFLCH/USP, gerente adjunto do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc
A literatura é, do ponto de vista da cultura e da educação, um bem incompressível, ou seja, que não deve ser negado a ninguém. Essa afirmação, feita por Antonio Candido, o proeminente crítico literário brasileiro falecido em 2017 aos 98 anos, mostra bem a importância da literatura como direito humano essencial. Ler, assim, permite novos horizontes de descoberta e a consequente abertura para a reflexão e o autoconhecimento.
O romance A Flecha de Deus é a terceira obra do escritor nigeriano Chinua Achebe (1930-2013), considerado um dos maiores autores da literatura contemporânea, sendo inclusive um dos influenciadores da escritora Chimamanda Ngozi Adichie. Os dois romances anteriores do autor, O Mundo se Despedaça (20xx) e A Paz Dura Pouco (2013) formam algo como uma tríade, ao trazerem sob roupagens diferentes uma mesma problemática.
A Flecha de Deus ocupa lugar de destaque, cujo valor reside em seu caráter representativo que permite entender, de uma perspectiva histórica e com suprema eficácia estética, as transformações impelidas na organização social de populações que sofreram o processo de colonização inglesa na Nigéria. O autor narra o drama da aldeia de Umuaro, regido pelo sumo sacerdote Ezeulu, o qual se vê dividido entre a tradição de seu povo Igbo e o mundo novo do colonizador inglês; portanto, dividido entre a manutenção dos valores locais e a aderência à visão ocidental trazida pelo colonialismo. Compõe, assim, com maestria, uma ficção narrativa afinada que traduz a realidade social humana, permitindo a inteligibilidade de dois mundos em confronto.
Chinua Achebe nos presenteia com uma narrativa densa e dramática, cuja contribuição intenta realizar o “equilíbrio das histórias” – termo que ele mesmo cunhou para dar ênfase à importância de contar a própria história a partir de suas vivências, contrapondo-se a uma narrativa colonial e epistêmica eurocentrada.
*Por Emily Fonseca, doutoranda em História Social pela USP, onde pesquisa historiografia arabe clássica e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo
O universo teve uma origem? O que é o ser? Quem são os deuses? O que é o homem? O que é a felicidade? Por que dizes isso? O que leva o ser humano ao pensamento especulativo? O que leva o homem a filosofar?
A obra do filosofo italiano Enrico Berti – professor de História da Filosofia da Universidade de Pádua na Itália -, publicada originalmente em 2007 é um trabalho cuidadoso em que o autor busca apresentar as respostas dadas pelos pensadores do antigo mundo ocidental - do pré-sofismo à filosofia cristã, destacando os pensamentos de Platão e Aristóteles – para as principais questões que atravessaram o pensamento especulativo no mundo ocidental.
O desejo do saber é o ponto de partida de Enrico Berti. Segundo ele, está na maravilha o princípio da filosofia ocidental. Aristóteles estava convencido de que havia esse desejo de saber nos homens e que ele se manifestava quando fossem satisfeitas todas as outras necessidades ligadas à sobrevivência. Logo, essa busca do saber era desinteressada, livre das necessidades materiais. Era a expressão da verdadeira liberdade. Esta é a maravilha.
“A maravilha é a consciência da própria ignorância e do desejo de a ela se subtrair, ou seja, de aprender, de conhecer, de saber”. Ela é a pergunta inicial da causa que levou o homem antigo a buscar além das narrativas míticas que explicavam o mundo. A maravilha retirou o homem ocidental do pensamento mítico, do campo da revelação e o iniciou no pensamento especulativo, dos sentidos e da razão.
A filosofia é uma palavra de origem grega, como se sabe, deriva de philen, amar e sophia, conhecimento. O princípio da filosofia é o amor pelo saber. A filosofia nomeia a manifestação do pensamento especulativo entre os povos gregos. Não foram os gregos que inventaram o pensamento especulativo, mas foram eles que inventaram a filosofia, o amor desinteressado pelo saber.
O livro foi publicado em português em 2010 pelas Edições Loyola, com tradução de Fernando Soares Moreira. As respostas dos filósofos antigos às perguntas reunidas neste livro podem ser muito instrutivas àqueles que fazem filosofia hoje, àqueles que ainda contemplam a maravilha.
*Por Maurício Trindade, Doutor em Sociologia pela FFLCH/USP, gerente adjunto do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc
Pode-se medir o impacto de um livro por sua continuidade em estar presente como leitura fascinante através das décadas e, também, por sua persistência em animar os debates críticos acerca de sua significação ao longo de gerações. Macunaíma, romance rapsódia do escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945), é sem dúvida o exemplo de um livro seminal de nossa literatura, cercado de prestígio e apreço – e, como tal, permanece desbravando intérpretes inusitados e interpretações as mais variadas.
Publicado em 1928, a recepção inicial da primeira edição de Macunaíma, cobrindo o período entre o lançamento até o ano de 1936, tornou-se objeto de estudo do pesquisador José de Paula Ramos Jr., professor no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em seu livro Leituras de Macunaíma. Primeira onda (1928-1936) (Edusp | Fapesp, 2012).
Neste #LivroDaVez, Ramos Jr. sedimenta uma linha analítica que busca compreender o valor artístico e estético de Macunaíma como efeito de uma construção cultural alicerçada justamente por conta das diversas camadas de significação simbólica que se foi agregando à obra, mediante o estudo da história das leituras críticas realizadas. Assim, Leituras de Macunaíma – que seduz pela escrita leve, precisa e fundamentalmente marcante – vem somarse ao esforço de compreensão histórica, crítica e cultural desta rapsódia fecunda, recompondo as polêmicas e as tomadas de posição que a mesma gerou, e gera, em seus apreciadores.
Para aguçar a curiosidade, um dos méritos de Leituras de Macunaíma, entre outros, se mostra ao circunscrever o debate em torno do conceito de nacionalismo, justo para mostrar a pluralidade de assertivas vinculadas a esse conceito naquele período pesquisado. Prato cheio para o nosso momento histórico, por diluir certezas e (re)compor o debate tenso e indefinido acerca da caracterização – e persistência – de nosso conturbado nacionalismo
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