Postado em 01/09/2002
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Cresce a demanda por manifestações culturais autênticas
RAFAELA MÜLLER(Trechos das músicas estão disponíveis nos links assinalados)
"Sertão – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem." A força desse sertão de que falava Guimarães Rosa ressurge hoje através de uma das principais formas de expressão da cultura sertaneja: a música feita com a viola caipira – ou viola cabocla, ou de arame, ou ainda de tantos nomes quantos são os anos de sua história em nosso país. História que andava esquecida, mas que volta com uma nova geração de violeiros que pesquisa e retoma tradições, ao mesmo tempo em que inventa estilos, levando o instrumento a passear por trilhas da música instrumental, MPB e clássica.
Para muitos desses novos artistas, a viola caipira também chegou de maneira inesperada, depois de anos tocando outros instrumentos. Seu som trazia a lembrança de cantos de folias-de-reis ouvidos na infância, de músicas de Tonico e Tinoco e de Tião Carreiro tocadas nas rádios. E é dessa memória que eles tiram a explicação para o crescimento de seu público: "A viola diz muito a respeito da história do país, do imaginário do povo, daí estar voltando com tanta força", diz o violeiro Ivan Vilela, mineiro de Itajubá. Para Passoca, compositor paulista que mistura elementos da música caipira e da MPB, "todo mundo da cidade tem um pé no mato: ouvia moda de viola quando criança, com o pai ou o avô".
Com eles voltam também histórias curiosas, como a de São Gonçalo, que, além de ser padroeiro dos violeiros, protege as prostitutas, é casamenteiro e santo da fertilidade. Ou as diferentes versões para fazer o "pacto com o capeta", necessário para quem não tem o dom de pontear a viola – pois consta que o diabo sempre foi um ótimo violeiro.
Para esses músicos, no entanto, não é fácil conquistar espaço no atual contexto da indústria fonográfica, em que as grandes gravadoras pouco se interessam por vendagens modestas. "Alguns desses artistas podem até atrair a atenção de uma gravadora de porte, pois a presença deles de certa forma valoriza seu catálogo, mas eles têm um estilo distante da fórmula de sucesso de massa", explica José Roberto Zan, professor de música do Departamento de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A produção independente ou através de pequenos selos acaba sendo a regra, e os discos são vendidos em shows, lojas com acervos mais diversificados ou pela Internet. Por essa razão, as dificuldades financeiras são maiores, o que, por outro lado, também acontece com a liberdade de criação.
"Em relação ao que acontecia décadas atrás, hoje o acesso aos meios de produção musical está mais fácil, e o reflexo disso é a grande quantidade de gravações que surgem à margem do esquema tradicional", diz Zan. "Como vem ocorrendo pelo mundo afora, no Brasil também existe uma demanda crescente por manifestações culturais ‘autênticas’, que tenham algum vínculo com a tradição, pois, com a globalização, a cultura perde cada vez mais a relação com seu local de origem e tende à padronização", acrescenta ele.
Afinações e ritmos
"Quando comprei uma viola, achei que precisaria apenas transpor os conhecimentos do violão para ela. Mas logo vi que era bem diferente", conta Braz da Viola, que hoje dá aulas para quem quer aprender a tocar e a construir o instrumento, em São Francisco Xavier (SP). Geralmente menor que o violão, com cintura mais fina, ela não tem seis cordas, mas dez, agrupadas duas a duas. Contudo, segundo afirma o violeiro e pesquisador do instrumento Roberto Corrêa, em seu livro A Arte de Pontear Viola, atualmente é possível encontrar, no Brasil, o instrumento com número variado de cordas, de cinco a 12.
Muito difundida em Portugal no século 16, a viola foi trazida para o Brasil logo no início da colonização. Num primeiro momento, ritmos indígenas se misturaram aos portugueses. Depois, vieram as influências africanas e, já no século 20, as de países fronteiriços ao Brasil. Assim, há hoje uma variedade de ritmos: cururu, cateretê, toada, cana-verde, arrasta-pé, batuque, lundu, moda campeira, xote, rasqueado, valsa, mazurca, polca e guarânia, entre outros.
A história da viola sempre acompanhou a do homem do campo. No passado, o violeiro procurava, de forma espontânea, afinar as cordas do instrumento "para que o som ficasse bom para acompanhar a voz e também não precisasse fazer muita ginástica com os dedos, já que ele tinha a mão dura por causa do trabalho pesado", explica Ivan Vilela. Assim foram surgindo várias afinações – hoje são mais de 20 no país. Uma das mais difundidas em São Paulo e no sul de Minas Gerais, a cebolão, já era usada em Portugal, e tem esse nome porque "dizem que as mulheres, quando ouviam os violeiros tocando nessa afinação, choravam como se cortassem cebola", conta Vilela.
A afinação rio abaixo, usada pelo violeiro paulista Paulo Freire – e dizem também que pelo diabo –, é típica da região do vale do Urucuia (norte de Minas Gerais), onde Freire aprendeu a tocar o instrumento. Depois de ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, foi para lá em busca do som desse sertão. Aprendeu com violeiros antigos, como seu Manelim – Manoel Neto de Oliveira –, com quem compôs algumas das músicas de seu disco Rio Abaixo, vencedor do Prêmio Sharp de revelação instrumental de 1995. Acompanhado de violoncelo, violão de sete cordas e vários instrumentos de percussão, ele toca músicas como Mosquitão, apresentada também este ano no projeto "Personagens por Seus Sons", no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, junto com o grupo Contadores de Estória Miguilim, que declamou trechos da obra de Guimarães Rosa.
Os caminhos para aprender a tocar o instrumento são diversos. Alguns artistas ressaltam a importância da vivência no sertão, do contato com os violeiros antigos e anônimos ainda espalhados pelo Brasil. Outros não consideram isso tão necessário e citam a jovem geração urbana que hoje está aprendendo a tocar viola caipira e inserindo-a em variados contextos musicais. É generalizada a opinião de que transformações no estilo e nos arranjos das músicas são inevitáveis e levam a uma maior difusão do instrumento. Mas permanece a pergunta de como modernizar sem perder a ligação com a tradição.
Na trilha do sucesso
Pioneiro da difusão da música caipira, Cornélio Pires se viu obrigado a custear os primeiros discos de 78 rotações por minuto (rpm) que lançou em 1929, com repertório do interior paulista, após a recusa da gravadora Columbia, que não acreditava na possibilidade de sucesso. A previsão logo se mostrou falha, e a série Cornélio Pires, que acabou saindo pelo selo Columbia, chegou a 48 discos, inaugurando a era fonográfica da música caipira.
Com o advento do rádio, consolidaram-se as duplas caipiras. A noção de duas vozes, explica Roberto Corrêa, é quase intuitiva no meio rural, e foi transferida para os estúdios. Nas folias-de-reis, por exemplo, há sempre um guia e um contraguia, que repete ou responde os versos entoados pelo primeiro. A dupla Alvarenga e Ranchinho, uma das primeiras a aparecer, se consagrou fazendo músicas de sátira política e de humor. Romance de uma Caveira foi um de seus maiores sucessos. Tristezas do Jeca, de Angelino de Oliveira, se tornou outro clássico da época.
Raul Torres, mais uma referência importante, fez dupla com Serrinha, com quem gravou sucessos como Cabocla Tereza e Pingo d’Água (compostas com João Pacífico), e também com Florêncio. Já na década de 50, aparecem Tonico e Tinoco, e Tião Carreiro, que tocou com Pardinho e Carreirinho e criou com este último, em 1959, um novo ritmo – o pagode –, referência para qualquer violeiro que está começando a rasquear o instrumento. Uma das músicas que consolidou a nova batida, Pagode em Brasília, de Teddy Vieira e Lourival dos Santos, foi regravada como instrumental, com o nome de Crisálida (1996), por Corrêa.
Nessa época, ritmos como o bolero, a guarânia paraguaia e a rancheira mexicana já influenciavam a música das duplas, trazendo novas instrumentações. "A partir da mudança inicial, em que a música caipira deixa de ser apenas manifestação tradicional e entra no mercado, as fusões de estilo se intensificam", explica José Roberto Zan. Contudo, pouco a pouco viria a eletrificação dos instrumentos e, com isso, a viola perderia espaço. Duplas como Chitãozinho e Xororó, em atividade desde os anos 70, buscavam se aproximar da música jovem e urbana de sucesso, como a da Jovem Guarda e principalmente a de Roberto Carlos, estourando em 1982 com seu oitavo álbum, Somos Apaixonados, e o hit Fio de Cabelo. Como eles, outros adotariam um visual de cowboy norte-americano, que evoluiria depois para os tipos de galãs da música sertaneja-romântica pop, como Leandro e Leonardo.
Redescoberta do instrumento
Enquanto a maioria dos músicos pendurava a viola na parede, outros passaram a retomá-la e a trabalhar suas possibilidades sonoras. Com Renato Andrade, mineiro de Abaeté, a viola começou a freqüentar as salas de concerto como instrumento solista já na década de 70. "Ele quebrou muitos tabus. A viola ainda não tinha credibilidade para ser tocada sem acompanhamento ou alguém cantando", conta Roberto Corrêa, também mineiro, mas radicado em Brasília, e que desde 1977 se interessou pela viola e passou a fazer músicas e arranjos, apresentando-se em recitais. Ele também compôs para a viola-de-cocho, como em Peleja de Siriema com Cobra, em seu disco Uróboro (1994). Instrumento típico de Mato Grosso, a viola-de-cocho é menor que a caipira, construída num só bloco de madeira, geralmente sem furo no tampo, e com apenas cinco cordas.
Com Elis Regina cantando Romaria (1977), de Renato Teixeira, e Pena Branca e Xavantinho gravando Cio da Terra (1981), de Milton Nascimento e Chico Buarque, a viola ganha espaço entre o público da MPB. A dupla foi revelada pelo "Som Brasil", programa apresentado por Rolando Boldrin, que ia ao ar nas manhãs de domingo na TV Globo, entre 1981 e 1989, e depois peregrinou por diversas emissoras até finalmente acabar. Foi Boldrin quem trouxe para a tela da TV o exímio violeiro Zé Coco do Riachão, "descoberto" pelo cantador Téo Azevedo no final da década de 70, na região de Montes Claros (MG). Melhor sorte teve o programa "Viola, Minha Viola", apresentado há 22 anos na TV Cultura de São Paulo por Inezita Barroso, ferrenha defensora da música ligada às tradições e que tem mais de 80 discos lançados.
Mas foi quando Almir Sater apareceu nas novelas "Pantanal" e "Ana Raio e Zé Trovão" (da extinta TV Manchete), e mais tarde em "O Rei do Gado" (TV Globo), que a viola definitivamente entrou na maioria das casas brasileiras. "De repente o violeiro era um moço bonito, com bela voz, que fazia sucesso. Isso eliminou muitos preconceitos e impulsionou a carreira de outros músicos", conta Braz da Viola. Na época, o sul-mato-grossense Almir Sater já tinha cinco discos lançados. Seus dois instrumentais, de 1985 e 1990, são sempre citados como referência pelos novos músicos.
Embora a viola estivesse em destaque no início dos anos 90, Helena Meirelles, natural de Mato Grosso do Sul, só se tornou conhecida depois de aparecer na revista norte-americana "Guitar Player", em 1993. Seus familiares tinham levado em vão fitas com suas músicas para as rádios brasileiras, até que um sobrinho resolveu mandá-las a um amigo nos Estados Unidos, e assim a história mudou. Dedilhando o instrumento desde os 9 anos, ela aprendeu a tocar sozinha, ouvindo o tio, além dos boiadeiros e paraguaios que pela região do rio Paraná passavam. Saiu de casa e passou a morar e a se apresentar em bares e bordéis de seu estado natal e do oeste de São Paulo. Aos 77 anos, ela está preparando o quarto álbum, e seu jeito único de tocar é um sucesso.
A volta do interesse pela viola também favoreceu a produção artesanal. Vergílio Artur de Lima, luthier de Sabará (MG), aprimorou com Roberto Corrêa as técnicas de construção do instrumento. São dele as violas usadas por Corrêa, Paulo Freire e Ivan Vilela. Utilizando vários tipos de madeira, ele leva cerca de 150 horas para fazer um instrumento. Da primeira, feita em 1984, à mais recente, foram 150, e o preço nunca fica abaixo dos R$ 750. Além de Vergílio, muitos outros luthiers fabricam violas, como Joacir de Carvalho, Roberto Dimathus, João Batista e Francisco Munhoz.
Velhos e novos estilos
"Há hoje um grande campo para quem quer fazer música moderna que tenha ligação com o meio rural. Mas o músico pode também simplesmente usar a viola para diversificar seu trabalho", diz Roberto Corrêa. "É importante não criar rótulos, e, apesar de achar que a força da viola está na cultura popular, tocamos de tudo, o que ajuda a desfazer a idéia de que ela só serve para música caipira", completa Pereira da Viola. Nascido no vale do Mucuri, norte de Minas Gerais, ele traz, em seus quatro discos, não só diversas cantigas tradicionais da região, como Bicho Calango, mas também um arranjo do Bolero, de Maurice Ravel, e da Habanera, da ópera Carmen, de Georges Bizet. Roberto Corrêa, por sua vez, apresenta Trenzinho Caipira, de Heitor Villa-Lobos, Odeon e Brejeiro, de Ernesto Nazaré, e Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu (em seu disco Crisálida). E até All Blues, de Miles Davis, já passou pela viola de Paulo Freire.
A verdade é que a música instrumental para viola despontou com vigor. "Creio que esse percurso foi importante para reabilitar o instrumento, mas de modo algum é o único", diz Corrêa, que canta várias músicas em seu último CD, Extremosa-Rosa (2002). Para quem utiliza a voz, como Pereira da Viola, a poesia, sempre muito presente no gênero caipira, assume lugar de destaque. Mas mesmo violeiros antigos já fizeram muito sucesso com a viola solo, como Zé do Rancho – avô de Sandy e Júnior – e Tião Carreiro.
Alguns violeiros usam a viola de maneira erudita. "Nossa música é feita com a contribuição de conhecimentos adquiridos através de estudos teóricos e a utilização de outros instrumentos", diz Ivan Vilela. No disco Paisagens (1997), ele apresenta arranjos com rabeca, violão e percussão, cujo resultado é uma sonoridade ao mesmo tempo simples e sofisticada, como na canção Saudade da Minha Terra. A variação que fez para Asa Branca, presente no disco Violeiros do Brasil, gravado ao vivo em São Paulo, no teatro do Sesc Pompéia, em 1997, teve a participação de vários violeiros. "Mas temos hoje eruditos e espontâneos, como se pode ver no ‘Viola, Minha Viola’", lembra Inezita Barroso. Com uma agenda lotada de shows, palestras e gravações, a "madrinha dos violeiros", como Inezita é conhecida, ressalta que esta geração também é importante porque escreve suas músicas, o que permite perpetuar ritmos e melodias com mais facilidade, ao contrário da tradição predominantemente oral do passado.
As duplas são hoje menos freqüentes do que antigamente, talvez porque sua imagem tenha ficado muito atrelada ao estilo sertanejo-romântico pop. Destacam-se, no entanto, Zé Mulato e Cassiano, que ganharam o Prêmio Sharp em 1997, com a música Meu Céu, do álbum de mesmo nome. "E há uma meninada voltando a tocar em duplas, com o trabalho de Tião Carreiro como inspiração", lembra Pereira da Viola, cuja música Mãos e Pilão é interpretada pela Orquestra de Viola de Coité, de Londrina. Aliás, há outras orquestras de violeiros, como a de Osasco, pioneira, e a de São José dos Campos, que, como a de Londrina, tem Braz da Viola à frente, além da Oficina de Viola Caipira, sediada em Campinas, dirigida por Ivan Vilela.
Era uma vez um saci...
Reza a lenda que "viola não afina". Hoje, com novos instrumentos e músicos, isso virou mais "causo" para contar do que verdade universal. Dizem também que violeiro mais conta "causo" do que toca... Quando se apresentam, eles gostam de falar das simpatias para que os dedos fiquem ágeis, ou das várias formas de pactuar com o diabo para tocar bem, levando pinga junto com a viola até uma encruzilhada, em noite de lua cheia. E se, mesmo assim, o show não for bom, é porque "pintou" saci, pois ele sempre bagunça tudo. São histórias que trazem para a arte uma dimensão de fantasia e ritual que sempre esteve muito presente no universo caipira.
Mas quando se pergunta se fizeram o pacto... "Fiz e não fiz", responde Paulo Freire, que em seu disco Rio Abaixo conta uma versão para o tal encontro. Já Renato Andrade diz que não sabe se fez ou não, pois, como relata no livro Música Caipira: Da Roça ao Rodeio, de Rosa Nepomuceno, em pleno vôo com o capeta, exclamou um nome de santa, por causa da vista bonita, e o diabo o largou. Mas, no texto que acompanha sua música Renato e o Satanás (A Viola e Minha Gente), conta que, no inferno, ouviu o diabo tentando imitá-lo no "ponteado rápido" da viola. E Roberto Corrêa acrescenta: "Eu sempre digo que, além daqueles que precisam fazer o pacto, existem os que já nascem com o dom!" Seja como for, muitos deles merecem ser ouvidos.