Postado em 29/02/2020
No ano de 1869 foi publicada a primeira história em quadrinhos no Brasil, criada pelo desenhista ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910). As Aventuras de Nhô-Quim ilustravam os feitos de um jovem caipira de 20 anos de idade na corte do Rio de Janeiro. De lá para cá, mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais formaram uma nova paleta de cores e temas para a criação de HQs, charges, cartuns, caricaturas e outras artes gráficas no país. “Ao mesmo tempo que estas artes nasciam ao redor do mundo, os artistas no Brasil, sem muita informação do que se publicava em outros lugares, criavam instintivamente suas obras”, observa o artista gráfico e editor Gualberto Costa, o Gual, que em parceria com o cartunista e jornalista José Alberto Lovetro, o Jal, criou em 1989 o Troféu HQMIX: uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos brasileiros. Arquiteto e engenheiro de formação, Gual abandonou ambas as carreiras para respirar, absorver e pesquisar tudo o que diz respeito ao universo dos quadrinhos. Neste Encontros, ele fala sobre esse percurso e a cena das HQs no Brasil.
Como fui parar nessa? Foi numa crise existencial. Estudei tanto que esqueci o que eu queria ser. Durante as aulas do cursinho [pré-vestibular], ficava fazendo história em quadrinhos na apostila. E, naquele momento, o jornalista Luciano Ramos, o primeiro a falar de quadrinhos na tevê, era meu professor de Literatura. Eu adorava bater papo com ele. Não sabia se queria ciências exatas ou humanas e resolvi prestar vestibular para Arquitetura e Engenharia Civil. Isso me custou longos anos, porque acabei fazendo os dois cursos. Mas o melhor da minha vida era quando eu fazia quadrinhos. Um dia mostrei essas criações para o Luciano. Ele achou legal e propôs um concurso entre os alunos do cursinho. Ganhei esse concurso e é aí que começa minha carreira.
Naquele momento [do cursinho], Luciano falava de uma revista da Universidade de São Paulo (USP): O Balão [publicação criada em 1972 por alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e da Escola de Comunicações e Artes da USP, que mudou a forma de ler e fazer quadrinhos no país]. No dia de prestar vestibular, fui a uma livraria que ele me indicou e comprei o Balão. Fiquei encantado pela publicação, na qual passaram pessoas geniais, entre muitos que conhecemos, como Laerte, Luiz Gê, Chico e Paulo Caruso, Angeli, Alcy e Miadaira. Eu não via a hora de conhecer pessoalmente esses caras que faziam o novo quadrinho brasileiro, então fui ao 1º Salão Mackenzie de Humor e Quadrinhos do Mackenzie [1973], no Museu Lasar Segall, mas, como disse Adoniran: “Nós fumos, não encontremos ninguém”. Já na faculdade, resolvi juntar um grupo e criamos uma publicação independente do tipo do Balão, a revista Capa. Em seguida, me tornei o diretor cultural do diretório acadêmico e fiz o 2º Salão Mackenzie de Humor e Quadrinhos. Mais uma vez essas eram as coisas mais interessantes na minha vida porque as faculdades não me agradavam. Comecei a me dedicar a tudo que estava na órbita das artes gráficas, era muito mais interessante. Então, não era só o ato de desenhar, mas editar uma revista, organizar eventos... Eu trouxe de Niterói a Nair de Teffé (1886-1981), primeira caricaturista mulher do mundo, com sua exposição, que montei no 2º Salão Mackenzie de Humor e Quadrinhos no Museu da Imagem e do Som (MIS) em 1978. Estava ficando mais legal e eu, cada vez mais perto da formatura. Ainda trabalhei quatro anos na prefeitura como urbanista. Depois larguei tudo.
A TV Gazeta [na década de 1980] mudou a programação para aumentar a audiência com novos grupos de videomakers. Eles resolveram contratar o pessoal do Olhar Eletrônico [produtora independente criada em 1981], em que o Marcelo Machado iria dirigir a programação e criar vários programas para uma faixa etária que não existia para a tevê da época. Não tinha uma programação para jovens e adolescentes. Então, criaram um programa chamado TV Mix, dirigido pelo Fernando Meirelles, e nos chamaram – Jal e eu – para um teste. A gente ia falar de quadrinhos num programa de variedades. No teste, a gente se embananou, mas o Fernando Meirelles enxergou outra coisa: além de ser uma programação para esse público, os nerds ainda seriam valorizados no futuro. Fomos, talvez, os primeiros nerds da tevê. O programa não deu tão certo, mas, como tinha um monte de gente que não podia assistir porque estava na escola, resolveram fazer [o programa] à noite também. Chamaram o Serginho Groisman para dirigir e apresentar; como ele gostava de mim e do Jal, nos convidou para falar sobre quadrinhos e outros assuntos da área.
Na época da tevê, recebíamos montanhas de cartas, além de ligações. Era terminar o programa e receber uma fileira de fax com desenhos. A gente tinha que fazer alguma interação com aquele público que não fosse ficar respondendo cartinha ou atendendo telefone. Passamos por um momento pop star, de ser reconhecido na fila do cinema. Por conta daquela interação grande com o público, fizemos um concurso de melhor quadrinho na TV Gazeta: era uma urna, cédulas e a garotada que ia lá votar. Até resolvermos fazer uma premiação. O HQMIX seria algo como o “Oscar” dos quadrinhos e a primeira edição foi no MIS. O Serginho estava lá e apresenta o prêmio até hoje. No segundo ano, fomos para o Aeroanta, uma danceteria da moda na época. Saímos do formal para o informal absurdo: uma grande encrenca. Então, no terceiro ano, propomos a realização no Sesc Pompeia. Nestes 32 anos, nos tornamos um evento respeitado na área, um dos maiores e de grande importância para os artistas. Todo ano fazemos um levantamento de tudo que foi lançado no Brasil.
Houve uma tremenda evolução [das HQs] não só quantitativa, mas qualitativa. Hoje no Comic Con Experience [evento brasileiro voltado para videogames, histórias em quadrinhos, filmes e séries para TV], por exemplo, montam-se mesas com 800 artistas para venderem suas obras. Enfim, muita coisa aconteceu para a gente chegar a esse número. Temos lei de incentivo para esse segmento, as impressões baratearam muito e as pessoas investem no “faça você mesmo”. No HQMIX ainda temos três prêmios acadêmicos: melhor trabalho de conclusão de graduação, dissertação de mestrado e tese de doutorado. Recebemos, em média, 30 trabalhos anualmente. Quer dizer, o meio acadêmico está estudando quadrinhos. Além disso, se antes era clube do Bolinha, hoje vemos uma quantidade grande de mulheres fantásticas na área. Quanto aos temas, temos desde o quadrinho político ao quadrinho poético. E é curioso porque, ano a ano, vemos isso crescer numa progressão.