Postado em 29/11/2019
Creio que para muitos parecerá estranho que se faça uma distinção entre autobiografia e livro de memórias. Pois faço. Para mim são coisas diferentes. Autobiografia é um relato que, baseando-se nos documentos, alguém escreve sobre si próprio. Escreve sobre si próprio a olhar-se como se fora um outro, de quem narra a história para justificar-se ou explicar-se. Faz o que muitos políticos, e alguns deles famosos, como De Gaulle e Churchill, sempre fizeram. Escrevem livros em que contam a sua própria vida, antes que outros o façam. Como se deu com H.G. Wells, com Experiment in Autobiography, um livro fascinante, em que descreve sua vida com um abuso de sinceridade que faz com que muitas passagens, ainda que correspondam a experiências verdadeiras, pareçam fantasiosas e até mesmo cômicas, dando razão, assim, a George Orwell, quando este afirmou que uma autobiografia só é credível quando conta coisas desagradáveis sobre o autor-herói. Segundo Orwell, é preciso que o autor-herói desvende fatos desagradáveis de sua vida, para que os leitores acreditem no elogio que, em última análise, ele deseja fazer de si próprio. Mas há também aquele tipo de autobiografia que, querendo justificar-se, acaba sendo uma obra-prima. Dou como exemplo aquela autobiografia que talvez seja a melhor de todas as que li, a Apologia Pro Vita Sua, de John Henry Newman, o grande cardeal britânico que se converteu do anglicismo para o catolicismo, e que James Joyce dizia ser o livro mais bem escrito da língua inglesa.
O grande drama da autobiografia é que ela jamais é completa. E não pode ser completa, porque para ser completa teria que descrever todos os anos, todos os meses, todas as semanas, todos os dias, todos os minutos e todos os segundos de quem a escreveu. Teria de ser como aquele mapa perfeito de Jorge Luis Borges – tão perfeito que era do tamanho dos acidentes que procurava descrever. Sendo isso uma impossibilidade, tanto na autobiografia quanto no livro de memórias, o autor, inescapavelmente, seleciona, distorce e interpreta os fatos que quer narrar. Por mais que deseje ser fiel, nunca produzirá um relato idêntico à experiência. Porque uma autobiografia não é uma vida. Uma autobiografia é uma reinvenção do vivido.
Há outra maneira de se refazer, contando, a vida: o livro de memórias. Se a autobiografia se baseia nos documentos – não apenas nas lembranças, mas nas lembranças calcadas nos documentos –, se aquele que está escrevendo a sua própria biografia vai aos seus arquivos pessoais e procura ver com precisão a data de cada um dos fatos que quer recordar e descrever, o nome completo de cada uma das personagens com as quais conviveu ou com as quais partilhou determinadas situações, o livro de memórias é diferente. No livro de memórias, o autor só se interessa por aquilo que lhe volta naturalmente à lembrança. Ele não tem a ambição de reconstruir a vida da personagem que é ele próprio. A sua ambição é de reexperimentar liricamente o que lhe coube ser no passado e repartir com os outros paisagens que viu e dias que viveu. Isto vale até mesmo para uma obra que fica entre a autobiografia e o livro de memórias, Minha Formação, de Joaquim Nabuco. É no capítulo “Massangana” que está o centro e o cerne de todo o livro. E o capítulo “Massangana” é um reviver poético das emoções da infância. Não é uma escrita autobiográfica.
Em última análise, o livro de memórias é uma antiautobiografia. Contrapõe-se à autobiografia. E pode aproximar-se de outra forma de antiautobiografia, que é o romancear do passado, como se tivesse sido vivido por uma pessoa inteiramente distinta. Refiro-me àquele tipo de livro em que o autor se projeta na sua personagem e a recria como se fosse ele próprio ou como poderia ter sido mas não foi.
É a literatura dos heterônimos, de Fernando Pessoa a inventar passados para Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, de James Joyce a se recriar a si próprio no Stephen Dedalus, de A Portrait of the Artist as a Young Man, e – o caso mais importante, maior e mais completo de todos – de Marcel Proust a encarnar-se no narrador em todos os volumes de À la Recherche du Temps Perdu. Tudo isso é antibiografia e é memória.
Já vimos por que se escrevem autobiografias. Escrevem-se autobiografias para se justificar, e se explicar, e se autolouvar. Já os livros de memórias se escrevem por muitas outras razões. Para acalmar saudades, como nos poemas memorialísticos de Carlos Drummond de Andrade, em Boitempo – Esquecer para Lembrar. Para refazer o tempo, como foi o caso de Pedro Nava, na série de livros que começa com Baú de Ossos. Para vingar-se, para tirar a forra dos que lhe oprimiram a meninice ou a adolescência, como Humberto de Campos, no primeiro volume de suas Memórias, Graciliano Ramos, em Infância, Antonio Carlos Villaça, em O Nariz do Morto. Também se escrevem memórias para abrandar remorsos, para dar um desenho e um sentido à vida. E para dar testemunho de sua época, como as Memórias de Raul Brandão, que refazem o Portugal do fim do século 19 e das primeiras décadas do 20.
Um livro de memórias é sempre uma retrovisão emocionada. Alguém olha para trás, para aquele que foi, tem saudades de si próprio e procura compreender os fatos que não se despegaram jamais de sua mente. Porque a memória é um arquivo vivo, mas é um arquivo que não guarda tudo, que só guarda o que pode e o que quer. É um arquivo onde tão importante quanto aquilo que se lembra é aquilo que se esquece. O esquecimento é muitas vezes mais relevante do que a lembrança. Talvez por isso, lemos com especial interesse e emoção as memórias da infância. Porque, nos seus silêncios, nós nos vemos numa dimensão distinta. Tornamo-nos o adulto que se pensa e que se vê menino, a preencher com nossas reminiscências as pausas da lembrança da personagem do livro que, não sendo nós, nos recorda a meninice que foi nossa e as várias outras que imaginamos.
Há outro livro de memórias que me agrada muito. É aquele em que o autor fala pouco de si próprio e muito dos outros, das pessoas com quem privou ou conheceu de perto, e daquelas a que se ligou pelo afeto ou pelo sofrimento. Falo das “memórias dos outros”, de que é paradigma o livro de Rodrigo Octavio, um livro interessantíssimo, como interessantíssimo é o quase esquecido volume de Reminiscências, de Bastos Tigre, do qual se reerguem as tardes da Confeitaria Colombo e o Rio de Janeiro da belle époque. Essa espécie de memorialista não se olha no espelho: quer ser o espelho e ver o mundo a olhar-se nele. Quer compreender as coisas e as pessoas de seu tempo, ou do tempo que já passou e que se foi. Quer descrever e explicar como era um rádio galena, e como era o jeito do aguadeiro, que, em seu burrico com barricas presas às cangalhas, vendia água de casa em casa. Quer lembrar como era o bonde que, no Rio de Janeiro, nas noites de ópera ou de concertos, se dirigia ao Teatro Municipal, com os bancos vestidos de pano branco, para as senhoras não sujarem os vestidos longos nem os homens os smokings. Trata-se, portanto, de um memorialista muito mais interessado em recordar como era o mundo ao seu redor do que como nele se sentia.
Nada mais distinto de um outro tipo de memórias, que André Gide precisou muito bem, quando lhe chamou Souvenirs, lembranças de determinados momentos que explicam toda uma existência. E dos vários Souvenirs que escreveu, dois, Si le Grain ne Meurt e Et Nunc Manet in Te, são paradigmáticos. É da essência desse tipo de memorialismo ser fragmentário, confessional, perscrutador, analítico, antiautobiográfico. Mas nele, como de resto em toda a família dos livros de memórias, a lembrança está sempre ligada à imaginação. É a imaginação o que, em última análise, comanda a escrita. Não é o passado. É o que sonhamos do passado, ou o que ficou como construção emotiva do passado. Em última análise, as nossas memórias são nossas, mas são também dos outros, num sentido diferente do de Rodrigo Octavio, pois, nas conversas em família, com os pais, os tios, os irmãos e os primos, vamos armazenando as memórias deles, que de tal modo se incorporam às nossas, que, às vezes, é difícil distinguir o que pertence a nós próprios e o que pertence aos que viveram e vivem ao nosso lado.
Um livro de memórias é sempre uma reconstrução criativa, na qual se reinventam paisagens antigas, fisionomias que se foram, imagens de um mundo que já acabou. Vou dar um exemplo maior dessa reconstrução criativa: aquela passagem de Proust em que ele descreve o famoso quadro de Vermeer, Vista de Delft. Ao revelar o deslumbramento diante desse quadro, Proust o incorpora inteiramente ao seu espírito e o torna parte de sua vida mais íntima e de sua memória mais profunda.
Com memórias e autobiografias constrói-se história. E não apenas com aquelas memórias e autobiografias que mostram determinado momento da vida da humanidade. Não apenas, por exemplo, com um livro autobiográfico que considero magistral, Present at the Creation, de Dean Acheson, em que rememora os anos em que chefiou o Departamento de Estado dos Estados Unidos, numa época especialmente dramática, que foi a da Guerra da Coreia. Alguém dirá que esse livro e outros da mesma natureza não podem servir de fundamento para escrever-se história porque estão castigados pelo pecado da parcialidade dos testemunhos pessoais. Mas muito da documentação de arquivo em que se baseia a história, apesar de sua aparente neutralidade, também foi escrito por indivíduos que, ao fazê-lo, não se despiram de suas crenças, de suas posições políticas, de seus interesses, preconceitos e preferências. Além disso, nem todos os documentos sobrevivem, pois os arquivos adoecem de descaso, e se empobrecem por malícia dos que querem alterar o passado, e morrem nos incêndios, nas inundações e nas guerras. Ao serem consultados, estão sujeitos a desvios semelhantes de escolha, soma, subtração e omissão aos das autobiografias e das memórias.
Quer escrevendo memórias, quer escrevendo autobiografias, contribuímos para pintar coletivamente os grandes painéis da lembrança. Nesses painéis, há espaço até mesmo para o que é pura criação romanesca. Quem poderá, por exemplo, entender o affaire Dreyfus sem ler as páginas que sobre ele escreveu Marcel Proust? Quem não vê Waterloo pelos olhos de Stendhal? Em última análise, o que buscamos nas autobiografias, nas memórias, nos romances históricos e nos próprios livros de história, é tentar compreender como o homem se faz de passado e carrega com ele, no presente, o que já se foi.
Alberto da Costa e Silva é poeta, historiador, diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras.Especialista na cultura e na história da África, ganhou o Prêmio Camões 2014, atribuído a escritores que tenham contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua portuguesa. Autor de livros de poesias, história, memórias, infantojuvenis e ensaio, publicou Ao Lado de Vera (1997), que ganhou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, entre outros.