Postado em 06/11/2019
Por Allan da Rosa *
Não é raro se referir à nobreza da presença negra ressaltando seu teor comunitário e isso diz muito em tempos de exaltação ao individualismo. Há várias apreciações, e até idealizações, sobre as chamadas “culturas tradicionais” de fonte africana no Brasil. Coletividades que pulsam políticas e estéticas, compondo lugares e formas propícias ao ninho e às lutas - por vezes contundentes e, noutros momentos, gingadoras -, arrodeando caminhos em vez de atalhar cortes em conflitos abertos. Porém, além de frisar a criatividade que renova com fundamento, estremece certezas e lida com escamas costumeiras, quais seriam as tradições que, por outro lado, nos esfaqueiam o pensamento e ofendem o corpo? Quais seriam as linhas tão arraigadas, e mesmo oficializadas, dessa tecelagem que emoldura e recheia o racismo por nossas terras? Ou seja, se já destacamos e tanto se debate a fortaleza e o balanço dos elementos que qualificariam e estruturariam uma “negritude”, até mesmo balizando diferenças entre si, o que caracterizaria historicamente uma “branquitude”? Como podemos compreender seus fatores no campo psicológico, geográfico, econômico, filosófico e histórico? Pois, se as culturas negras giram dentro (e ao mesmo tempo à margem) de sistemas regionais e de um tabuleiro nacional de ideias e forças que visam dominar, definhar ou arrefecer gente negra, não seria também tradicional a cultura do racismo? Quais pilares engenharam-se através de cinco séculos na modelagem dessa branquitude que, escancarada ou aparentemente branda, se aloja nos âmbitos de poder, seja no graúdo dos palacetes, edifícios empresariais e quartéis ou no miúdo das vielas e beiras de córrego?
Por um instante, então, não apenas louvaremos a boniteza, a galhardia e a inventividade negra, mas refletiremos sobre o pano de fundo, as paredes da casa e os traçados do mapa que delineiam e metem cor, mesmo que cinza-chumbo ou pálida, no sufoco de um país em que 90% das pessoas dizem haver racismo, mas também são 90% as que afirmam não serem racistas. Nesse curto espaço, orna ao trazer apenas gotas dessa bacia, vislumbres dessa lâmina que tanto escalpela como corta rente e sutil, tão recorrente que passa despercebida para muitos, mas firma pilares e veredas negras.
Conceituamos como se estruturam algumas vertentes tradicionais - e letais - da branquitude: perceber-se como “universal” e não como pessoas também racializadas, numa sociedade que distribui oportunidades e condições pela corporeidade e proveniência de seus indivíduos; forjar alianças intra-raciais pela negação, mudez e manutenção de hierarquias diante do racismo excludente (o chamado pacto narcísico); defesas da retorção discursiva que carimba a pecha de racista em quem denuncia o racismo; organização de um imaginário regido por símbolos de dominação ou de tutela benevolente; aspectos de perversão, pânico e terror mental cultivados em esquemas cognitivos e educacionais que deformam mentalmente seres moldados desde a infância a exercer superioridade e desprezo; crises de uma identidade fascinada pelo “outro”, ao catalogar, controlar ou mercantilizar esse “outro” e suas faces, consumindo de modo efêmero ou duradouro o que pinta como “exótico” - ao desfrute de seu olhar ou de seu tecnocapital; projeções de hipersexualização, brutalidade e incapacidade atribuídas às pessoas pretas; autorização de uma visão parcial que define pelos comportamentos de uma pessoa negra o que seria próprio de toda sua comunidade; definições e jurisprudências de validades distintas para lugares e pessoas diferentes (como as metrópoles faziam com suas colônias e hoje os centros poderosos fazem com as periferias e morros) determinando quais vidas menos valem e quais decisões são tomadas por viaturas e tribunais, de acordo com o fenótipo e o CEP dos sujeitos em questão; racionalização que dita lógicas de estado de exceção e de sítio a espaços de destacada população não-branca; normalização de poderes médicos e discursos que estabelecem noções de patologia social desembocando em práticas de “higienização” e encarceramento.
Desse modo, a consciência negra também marcou em sua peleja movimentos que, em laboratórios científicos, páginas de bibliotecas, versos e orikis de terreiro ou adivinhas de encruzilhada, elaboraram reflexões profundas e dúvidas férteis sobre o racismo brasileiro. Isso se destaca na busca de consciências libertas e subjetividades livres que abordem suas cicatrizes e mutilações, dediquem-se a pensar os espelhos trincados e as minas explosivas dos caminhos, porém também tocam cultivos ancestrais e oferecem golaços em uma sociedade que demonstra salivar por masmorras ou quartinhos de empregada para nós. Se há resistência e celebramos a anunciação, a sensibilidade e a sapiência negra, é porque isso se confronta com aspectos sólidos plantados neste chão e que ainda frutificam seus arames farpados e flores de sangue.
Mestras em dilemas pesados, as culturas negras brasileiras e suas africanias entrelaçadas ao lado de cá da grande kalunga, ou oceano Atlântico (maior cemitério de morte física e social da história da humanidade, devido ao infame tráfico escravista que ainda nos sequela), lidam com o hiperencarceramento que já comprovamos ser um plano macro-gerencial de estado diante do avassalador miserê e da escassez de políticas públicas; com o empilhamento de nossos jovens em cemitérios e estatísticas medonhas; com salários desiguais, escolaridade rala e o coração em permanente alerta para escarros, depreciações, acusações e mesmo fuzis corriqueiros que disparam em nossa nuca sob a alegação de que a câmera fotográfica, o caderno ou o guarda-chuva em nossas mãos parecia ser uma arma.
Bordamos contestações às fronteiras, emblemas e troféus nacionais, e atravessamos limites para as linguagens nas artes, sejam as plásticas, as da palavra ou do corpo, que pulsam quando atentamos ao manancial de nossas matrizes antigas, ainda tão estereotipadas, vampirizadas e folclorizadas. Celebramos também a teimosia de esmiuçar por dentro muitos conceitos e práticas do urbanismo, do direito e da educação, tão tramados sobre nossos cangotes para nos fixarem como o avesso da tal humanidade evoluída e bela; ou como portadores de tal “estágio cultural” a superar. Concebemos também as possibilidades de viver o tempo para além da primazia de uma linha única que nos direcione apenas ao futuro e imponha a novidade como valor absoluto, pois lidamos com temporalidades que cultivam o princípio da ancestralidade e as várias dimensões temporais da memória, dos traumas e dos sonhos, desde suas formas difusas até as mais objetivas. Essas gingas do pensamento, por necessidade e gosto, também são legados de cultura negra. Estão aí no construir e no retinir de um berimbau, na botânica de um terreiro e nos improváveis doutorados pretos trincando chicotes disfarçados em currículos e cartilhas escolares.
Por isso, também celebremos mocambos, comemoremos a dignidade, a vitalidade e a memória salobra que insiste em ajardinar no lodo, escrevendo nossas contradições, filosofando nossos enigmas e cantando nossas matrizes. Seguimos com os dedos trançados de mãos que se negam a serem decepadas e que, apesar dos bueiros mentais e das valas da mortandade, pontearam glórias nas artes, nas ciências e no cotidiano umedecido de sonhos.
* Allan da Rosa é escritor de ficção e educador popular. Angoleiro, historiador, mestre e doutorando em Educação pela USP. Autor de “Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem”, “Zumbi Assombra Quem?” e “Reza de Mãe”, entre outros livros.
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