Postado em 16/10/2019
Falar da boca é falar do ser humano como um todo. É o que defende Carlos Botazzo, odontologista e professor associado do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Para ele, a boca é diferente de qualquer outra parte do corpo, porque seus usos são construídos e aprendidos por meio da da interação com o mundo. Conheça essa visão social e cultural da boca na entrevista com o especialista.
Nos seus estudos, você descreve a bucalidade como a “capacidade da boca em ser boca, isto é, em exercer, sem limitação ou deficiência, as funções para as quais anatomicamente acha-se apta”. O que significa isso na prática?
Não dá para dissociar a boca da vida e dos sujeitos. Na boca se cristalizam tendências, posições da sociedade, manifestações da cultura e formas de subjetividade, pensamento e expressão. Suas funções são formadas socialmente, algo que não acontece com outros outros territórios viscerais do nosso organismo, que funcionarão ao modo de uma biologia.
Eu não tenho o que fazer com relação ao meu intestino grosso ou meu fígado, mas as vísceras da boca terão que ser educadas. As crianças aprenderão desde cedo a pronunciar as palavras certas no momento adequado. A educação do bucal é parte desse universo, então nós vamos aprender a não comer de boca aberta, a não ser gulosos, a não falar palavrão.
Como você chegou a essa visão sobre a boca?
Minha formação é em odontologia, mas sempre tive interesse pelas ciências sociais e humanas. Na minha formação política eu estudei filosofia, e talvez não tivesse seguido essa carreira se não fosse a ditadura. Eu fui preso e trabalhei no ambulatório do presídio Tiradentes, onde comecei a fazer observações sobre comportamentos no momento da consulta. Percebi que pessoas muito poderosas tinham comportamento fóbico no dentista, assim como presos violentos, policiais, sacerdotes.
Quando saí da prisão, três anos depois, eu continuei a fazer essas observações e fui agregando pacientes especiais, hemofílicos, psicóticos. Trabalhava em clínica e sempre que uma criança chorava era encaminhada para mim. Diziam que eu tinha jeito para lidar com pessoas que tinham medo. Passei a discutir com psicólogos e psicanalistas e fui apresentado ao trabalho da psicanalista argentina Arminda Aberastury, que se dedica a crianças com comportamentos fóbicos, as fobias dentárias, como ela chama.
Dessas leituras, cheguei ao filósofo francês Michel Foucault. Na abertura do livro As palavras e as coisas ele diz: “a boca é vênus, pois que por ela passam os beijos e as palavras de amor”. Aí eu comecei a encontrar o bucal e ir atrás dessa boca erógena, que parecia estar dispersa pelo planeta, na literatura, no cinema, na fotografia e também em outras áreas da medicina e da saúde.
Havia muito coisa dispersa e eu comecei a investigar. Nesse meio tempo, fui trabalhar em Moçambique, no sul da África, e encontrei o mesmo que aqui: crianças e adultos fóbicos, gente gritando, tendo surtos histéricos. Mas aí eu já sabia o que fazer.
A primeira vez que formulei o conceito de bucalidade foi em 1998, no primeiro capítulo do meu doutorado. Depois voltei ao termo para adensar e encontrar uma síntese. Hoje, entendo a bucalidade como expressão dos trabalhos sociais que a boca humana realiza. Esses trabalhos são divididos em três eixos: manducação (consumo do mundo), linguagem e erótica.
Qual é a influência dessas descobertas na promoção da saúde bucal?
A boca é a única estrutura do corpo que está em relação direta com a vida. Essa exposição faz com que ela seja um para-raio psíquico, porque todas as tensões acabam indo para lá. Quando eu fazia exame bucal na clínica e encontrava placa, tártaro ou cárie, minha primeira pergunta era: o que está acontecendo na sua vida? Como você está? Está dormindo bem?
Já vi casos de pessoas que tinham uma contração muscular tão forte que a língua se projetava contra os dentes e ficava cheia de marcas de mordida. Isso indicava que a pessoa estava em um nível alto de tensão. O mesmo acontecia com casos de bruxismo, dores de cabeça. A vida está provocando estragos e a boca é o lugar que centraliza isso, não a barriga da perna.
Os estudos mostram que a incidência de cárie dentária aumenta muito entre o final da adolescência e o começo da maturidade. É quando a pessoa vai para o mercado de trabalho, sai de casa, contrai dívida. É a vida que vai provocar essa carga de desgaste bucal. E isso vai acontecer com mais frequência em populações com baixa renda, baixa escolaridade e habitação precária. Onde há desigualdade há problemas bucais.
E como isso pode nos ajudar a cuidar melhor da boca?
As pessoas esperam receber orientações sobre como limpar os dentes, que tipo de creme dental usar, quantas vezes procurar o dentista. Isso é importante, claro, mas saúde bucal também é se cuidar, se gostar. Poder comer, beijar, falar. É a liberdade de comunicação e expressão, é a língua solta, a boca liberta.
Pensar em saúde bucal pelo viés da bucalidade é possível, mas não existem ações ou atividades de promoção de saúde bucal de modo exclusivo. Grupos, comunidades e sociedades serão bucalmente saudáveis quanto mais saudáveis forem o grupo, a comunidade ou a sociedade nas quais a pessoa está inserida.
*Entrevista realizada por Fernanda Carpegiani.
Em 1 de novembro, às 10h, o Sesc Vila Mariana receberá o bate-papo de abertura da segunda edição do projeto "Boca, pra que te quero?", com Professor Doutor Carlos Botazzo (USP), responsável pela criação do conceito de bucalidade e autor de "Diálogos Sobre a Boca"; Renata Bitu, Doutora em Saúde Coletiva, abordando as relações entre a sexualidade e a odontologia; e Érica Peçanha do Nascimento, Doutora em Antropologia Social, autora de "Vozes Marginais na literatura", que falará sobre o corpo e a saúde a partir da produção de arte e cultura na periferia. Saiba mais aqui.
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O Sesc São Paulo promoverá mais de 80 atividades que colocam a saúde bucal em destaque entre os dias 1 e 11 de novembro de 2019. Para conhecer toda a programação acesse aqui.