Postado em 07/10/2019
A exposição Ver/Olhar do fotógrafo Gal Oppido trouxe uma provocação sobre o modo de ver e a importância de desenvolvermos um olhar atento “sensitivo, afetivo e social", observando com profundidade as pessoas e seus territórios.
Vivemos na era da imagem, bombardeados pelo registro fotográfico. Grande parte das pessoas possui um smartphone com capacidade para captar fotos das mais diversas formas e qualidades possíveis, mas engana-se quem pensa que o trabalho do fotógrafo está próximo de ser extinto. Assim como o pincel e as tintas estão para o pintor, o celular é apenas uma das ferramentas que o fotógrafo pode utilizar para realizar seu trabalho artístico. O diferencial está na forma como ele consegue traduzir e expressar sensações a partir daquele clique perfeito. Uma foto registra um pequeno momento, uma ação, um sentimento e produz sensações que não são recebidas somente pelos olhos. Uma boa imagem pode transmitir o som, a textura, os sabores e até os aromas daquele objeto ou paisagem retratada.
Quando chegamos num lugar novo, nosso corpo funciona como uma antena, captando cada detalhe daquele ambiente. Há uma sensação única e, sem perceber, todos os nossos órgãos dos sentidos trabalham gerando memórias afetivas daquele momento em que estivemos ali pela primeira vez e que são guardadas numa caixinha dentro do nosso inconsciente. Com o passar do tempo e as obrigações do dia a dia, vamos nos acostumando com a paisagem, vemos as cenas cotidianas passando diante dos nossos olhos viciados e ofuscados e deixamos de lado a capacidade de OLHAR.
É preciso exercitar o olhar estrangeiro que nos permite perceber além do que os olhos vêem. E foi com esse olhar atento “sensitivo, afetivo e social” que o fotógrafo Gal Oppido soube eternizar os momentos e lugares por onde passou quando esteve nos bairros do Campo Limpo e Capão Redondo na periferia da Zona Sul de São Paulo, acompanhado por Suzi Aguiar e Binho Padial, registrando as imagens - captadas com celular - que fizeram parte da exposição “Ver/Olhar” que esteve em cartaz no Sesc Campo Limpo. As imagens exploram detalhes artísticos, personagens reais e lugares que rapidamente despertaram o reconhecimento do território e a afetividade dos moradores da região.
A exposição trouxe consigo a provocação sobre o nosso modo de ver e a necessidade de prestarmos atenção ao nosso território afetivo. Gal nos fez observar os detalhes e perceber a importância do olhar: enxergar com profundidade nos olhos dos nossos pares e descobrirmos as potências que existem em todo lugar. Cada pessoa é uma ilha e dentro dela tem um mundo pulsando, gritando para ser reconhecido. E foi nesse exercício que descobrimos duas pessoas com brilho nos olhos que nos apresentaram suas formas de observar a vida.
Dona Nice foi uma das pessoas que Gal retratou em suas obras. Empreendedora da quebrada e moradora do bairro do Campo Limpo, ela lembra com saudade do dia em que a foto foi feita na janelinha da Agência Solano Trindade. “Ele [Gal Oppido] falou ‘fica na janelinha’, mas eu jamais imaginaria que isso fosse repercutir desse jeito. Depois a gente tirou outras várias, dos grafittis, e o barraquinho era pequenininho lá no fundo. Dá até saudade a hora que você olha as fotos, de ver o barraquinho lá no fundo e hoje o barraquinho não é mais o mesmo, ele se transformou. Até a janelinha da TV também já se transformou. Então dá muita saudade e a gente guarda com muito carinho porque ele foi a única pessoa que teve essa intuição de fazer essas fotos”, conta.
EOnline - Você tinha visto a sua foto antes da abertura da exposição?
Dona Nice - Não tinha visto em lugar nenhum do mundo. Eu vi só no dia da abertura. Então você imagina a emoção!?A emoção de todos. A gente queria ficar a noite inteira sentado de frente desse telão. Porque cada foto é um detalhe. Eu fui [no Sesc Campo Limpo] 3 vezes, levei minhas netas todas pra ficar olhando pra nossa cara e ver os detalhes. Foi muito gratificante. É mais legal isso do que você receber uma grana. O dinheiro é bom é ótimo, deixa você sem dívida, de aluguel, água, luz, etc. mas ser reconhecido dessa forma...tem que agradecer a Deus todos os dias.
EOnline - O que você vê quando olha pro bairro?
Dona Nice - Eu tenho um olhar muito carinhoso pelo bairro, principalmente esse aqui que a gente mora [Campo Limpo] por eu ter tido o meu filho Thiago. Eu namorei o pai dele por 10 anos na praça do Campo Limpo. Nós vimos todas aquelas árvores serem plantadas.
A partir do momento que eu atravesso aquela praça, eu atravesso ela com a cabeça de pensamentos bons. Nem existia a Casa de Cultura. Na época era um lugar onde todo mundo se reunia pra namorar, pra conversar, pra trocar ideia. A gente ficava batendo papo, era maravilhoso. Então eu atravesso a praça com vários pensamentos bons.
EOnline - Você reconheceu alguns lugares nas fotos?
Dona Nice - Eu consegui reconhecer vários lugares. Tem um lugar que eu sempre passo e que sempre me chateia muito que é um lugar onde eles espetam aquele monte de bonecas.
“Eu tenho um olhar muito carinhoso pelo bairro, principalmente esse aqui que a gente mora por eu ter tido o meu filho Thiago”
Aquilo ali me deixa muito triste porque eu vejo elas ali espetadas pelo meio da perna e aquilo dói.
EOnline - E tem alguma que te traz um sentimento bom?
Dona Nice - Tem uma que tem um telão de jogo do Brasil. É dentro do armazém orgânico que a gente tem aqui embaixo [na Agência Solano Trindade]. É muito legal! Apesar de o jogo ter sido uma porcaria, mas atrás disso aí [dessa foto] tinha um churrasco, tinha maionese, tinha cerveja, tinha cachaça, tinha tudo! Porque quando o Brasil joga, perdendo ou ganhando é um motivo de fazer churrasco, né? [risos]. E tem o motorista do ônibus aqui do terminal, o negrão alegre; tem o Rodogarcia, um caminhão que passa todo dia aqui na frente; tem a Comida Natural da Roça, o Rafa, nosso parceiro de São Lourenço que tem uma horta maravilhosa, que traz tudo pra gente orgânico, a cerveja artesanal, e coisas assim do outro mundo. Tem a casa da macumba...O nosso índio [graffiti na parede] era novinho. E eu gosto também daqueles caras que estão lá perto do Extra: o Alex Barbosa, o Thiago Simpatia, eu acho legal aquilo. É tudo muito legal, tudo muito maravilhoso. Ah! também tem um mano nosso, que é o Alex que tá na janela de óculos escuro e de boné. Maravilhosa aquela foto! Nossa. A gente guarda assim com muito carinho, muito bom! Foi lindo, maravilhoso de ver!
Morador do Parque Regina, bairro próximo do Sesc Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, Adriano Moisés da Silva visitou várias vezes a exposição e o contêiner com as ações educativas. Acompanhado de sua esposa Mizrai e da pequena Tarsila ainda na barriga, Adriano apresentava suas ideias e sua forma de arte, transformando as fotos impressas em arte tridimensional. Numa dessas vindas nos contou a sua história.
Sabe aquela velha máxima que diz que nada acontece por acaso? Com Adriano ela pode ser aplicada à risca. Aos 12 anos teve problemas de saúde e não podia brincar ou fazer atividades físicas. Foi quando começou a descobrir a arte. "Eu tava um dia sentado num pequeno comércio que o meu pai tinha e um vizinho me mostrou a arte. Quando eu vi aquele desenho, aquilo ali mudou a minha vida. Aquela situação de eu ver que era bonito, que poderia mudar. Cada vez que eu desenhava, o desenho saía todo torto mas eu queria chegar naquela arte bonita, naquela coisa legal", conta.
Tempos depois por dificuldades financeiras, começou a trabalhar com reciclagem. A vivência e a experiência com o trabalho fizeram com que ele desenvolvesse um olhar todo especial para os objetos que eram descartados. Uma folha em branco, um pedaço de papel de revista amassado, latinhas, uma embalagem de salgadinho... Naqueles objetos de descarte ele via a arte.“Com aquele esquema de latinha e ferro velho foi onde eu conheci a arte-reciclagem. Ainda não tinha despertado ser um profissional, mas ali eu comecei a tentar e descobrir alguma forma de fazer a arte com o que eu tinha, com o que aparecia", recorda orgulhoso.
Nesse mesmo local onde trabalhava, conheceu uma professora que deu o primeiro impulso para uma mudança de horizonte. Ela falou que ele era muito inteligente e que tinha capacidade de ser um professor, pela arte que fazia. Incentivado por amigos de uma igreja próxima foi procurar uma faculdade. O curso escolhido: Artes. "Chegando na faculdade eu pensei ‘vou ser o pior de todos!’ Mas na verdade quando eu cheguei lá eu encontrei o meu mundo! Muita arte, muita música, muita poesia. Cada instrumento que eu pegava, cada pincel que eu coloria, cada tinta que eu colocava no papel, as pessoas me aplaudiam", lembra com alegria.
“Quando você transforma a reciclagem em arte, que as pessoas vêem...Elas não vêem mais que é lixo, elas vêem que aquilo ali tem um valor”
Depois do curso tornou-se professor da rede pública de ensino. E os alunos ainda o reconheciam pelo seu antigo trabalho no ferro-velho. "Uma das alunas falou 'É a primeira vez que eu vejo um homem que trabalha em reciclagem se tornar professor'. Ali veio uma lágrima no meu olho. E aquele negócio me deu muita alegria de saber que com a arte e com o que eu aprendi assim na vida, com sucata, com tudo, eu podia transformar a vida das pessoas. Eu comecei a dar aula em lugar onde não tinha recurso nenhum, às vezes faltava material. E com uma revista, com papel de salgadinho, com barro, com areia...fazer
quadros. Mostrar pra eles que dava pra criar coisa do nada", conta emocionado.
EOnline - Mas o que é a arte para você?
Adriano - A arte é uma terapia. Ela pega a pessoa pra tirar tudo que tem de dentro.
EOnline - O que você vê quando encontra um pedaço de revista, de papel?
Adriano - Quando eu vejo um pedaço de revista... Até minha esposa falou uma vez pra mim. “Ah você tá pegando lixo”. Eu falei “Não, não é lixo. É lixo quando ele tá no chão. Quando eu pego ele, ele é material na minha mão". Entendeu? Ele é material e eu consigo trabalhar com ele. Quando você transforma a reciclagem em arte, que as pessoas veem. Elas não vêem mais que é lixo, elas vêem que aquilo ali tem um valor.
EOnline - E você reconheceu algum lugar nas fotos da exposição?
Adriano - Quando eu vi as fotos assim muito próximo da realidade, do meu bairro, da minha comunidade, do pessoal onde eu vivo. Você tá vendo que você passa todo dia por aquele local. Por incrível que pareça, você vê a imagem e você lembra: você indo pro trabalho, correndo atrás do ônibus, falando com uma pessoa, olhando a banca de jornal, olhando aquela pessoa que apareceu ali naquela foto. Seu bairro e tudo. Vem aquela lembrança de tudo em poucos segundos na sua mente. Você revive o que você até tinha esquecido. Você começa a lembrar tudo, né?