Postado em 30/09/2019
PRESTES A LANÇAR UM ROMANCE QUE SE PASSA NO BRASIL, O ESCRITOR VALTER HUGO MÃE VÊ A LITERATURA COMO UM CHAMADO À CURIOSIDADE PELA VIDA
Nascido em Angola em 1971, o escritor Valter Hugo Mãe teve contato, já na infância, com um cenário de desigualdades que lhe emprestaria enredos, personagens e questionamentos. “No dia em que a minha cabeça nasceu ofereceram-me a liberdade e conheci a diferença. Conheci e aceitei a diferença. Que no mundo haveria de ver gente clara ou escura, pobre ou rica, mão esquerda ou mão direita fechada sobre o peito, e haveria de me reportar constantemente àquele momento que guardei esquecido para só entender mais tarde”, descreve em autobiografia no site que mantém. Aliás, é desta matéria que desnivela e constrói a sociedade que ele lapida versos e ficções. Livros para compreender ou desaprender o mundo como em O Paraíso São os Outros ou em O Remorso de Baltazar Serapião (ganhador do Prêmio Literário José Saramago em 2007), ambos reeditados pela Biblioteca Azul. Com um pé em Lisboa e outro no Brasil, Mãe escreveu seu oitavo romance justamente sobre a desigualdade nesta que é sua “segunda casa”. O novo livro se passa em terra brasileira, no século 19, onde povos indígenas e africanos ganham voz e o branco funciona como pano de fundo. Nesta entrevista à Revista E, Mãe fala um pouco sobre esse trabalho, que deve ser lançado até o final do ano, sobre A Desumanização – obra adaptada para o teatro e encenada no Sesc Santana no primeiro semestre –, além de compartilhar episódios que desvelam um chamado para contar histórias.
Como foi a descoberta dos livros e o gosto pela literatura?
Fui exposto à literatura pela curiosidade. Quando eu tinha dez anos, encontrei um livro numa pequena papelaria – não era nem uma livraria. Um livro do Alfred Hitchcock (1899-1980) para crianças chamado O Segredo do Castelo do Terror, e alguma coisa me solicitou atenção. Alguma coisa me instigou ao ponto de eu necessitar entender o que seria aquilo. Eu tinha acabado de abandonar uma casa gigante, onde eu passei a minha infância, e a casa tinha muitos ruídos. Quando criança, eu era um pouco acostumado a uma fantasmagoria e achei que aquele livro talvez fosse uma explicação para a casa onde eu tinha vivido e pedi a minha mãe, naquela altura, o dinheiro que faltava para eu comprar aquele livro. Isso gerou todo um problema na família porque eu sou o filho mais novo, meus irmãos passavam por dez anos sem pedir livros e era um acontecimento estranho na família que eu quisesse um objeto lento, demorado como o livro é. Ao fim de umas conversas com meu pai, chegaram à conclusão de que eu poderia comprar o livro. Comprei e li avidamente.
Desde então, que transformações a literatura lhe trouxe?
Entendi que aquela forma de explicar o mundo era-me uma natureza. Muitas coisas na minha vida são apenas discursivas. São coisas que alguém disse, que compõem a minha identidade. Como o lugar onde eu nasci. Eu nasci em Angola, não tenho memórias disso, os primeiros anos da minha vida são uma história que os meus pais me contaram. Então, eu costumo sempre dizer que cresci numa história mais do que num lugar específico. Nasci um pouco na imaginação dos meus pais porque tudo que eles diziam sobre Angola propendia para alguma fantasia. Eles lembravam mal, confundiam o lugar onde nasci com o lugar em que meus irmãos nasceram. E a memória opera assim para um casal que teve cinco filhos: as coisas embolam. Então, eu já fui criado por uma espécie de ficção e creio que consumei essa evidência aos 10 anos com a leitura desse primeiro livro. Nunca mais pude abdicar dessa dimensão. Nunca mais pude abdicar de uma dimensão de fantasia e de uma “aumentação” da realidade que acho que a arte também faz. A arte é uma inconformidade, um incômodo com o que existe, porque o que existe não chega.
Como é este processo de nascimento e morte dos personagens de seus livros?
O fim de um texto acarreta sempre um luto e uma pequena depressão que sucede a uma sensação de algum regozijo por conseguir consumar, mas há uma depressão porque somos o lado rejeitado de toda aquela oficina. O autor, ele é rejeitado pelo livro. Porque o livro fica completo com tudo o que leva dentro e só sobra o autor, uma espécie de excremento do livro. E é muito triste. É um pouco o fim de uma relação. Sabemos que vai ter de acabar. Estamos um pouco preparados para que esse término aconteça, mas há uma sensação de desamparo, uma carência, um abandono. A minha tendência é encontrar outro livro imediatamente. Sou assim nas relações: quando termina, eu quero logo alguém, não é nem no dia seguinte, eu quero já ter alguém programado no dia anterior porque, se eu entender que a coisa não está bem, eu preciso ter a certeza de que não vou ficar sozinho. E os livros são exatamente a mesma coisa. Quando termino um livro, a única coisa que verdadeiramente me ajuda é já saber que vou escrever outro.
Ao descrever homens, mulheres, velhos, crianças e jovens, você investiga qual o lugar desses personagens no mundo?
Sem dúvida. Só escrevo para entender. Costumo dizer ainda que a literatura ou que a arte se faz de encontrar o desconhecido, faz-se porque queremos conhecer. Por isso, normalmente, não escrevemos acerca do que sabemos. Escrevemos, sobretudo, com a vocação para uma revelação, para uma angariação daquilo que nos está vedado. Então, as personagens que invento são pessoas que uso para que eu me possa identificar, para que eu possa criar referências para o caso dos outros, o exemplo dos outros. E minha ansiedade é muito a de poder abarcar a amplitude do que é ser essa pessoa. Isso começa no meu nome: Mãe é uma intenção. É uma fita métrica deitada em cima do que é a humanidade, ela vai do homem, do que sou, ou o que eu posso mais ou menos entender pela minha experiência, e ela vai passar pela mulher até chegar à extremidade que é a mãe e que fica bem depois da mulher. Então, tudo que escrevo, todas as figuras que invento estão dentro dessa escala, dessa tabela, digamos assim, e elas são verdadeiramente aquilo que uso para saber o que é ser gente.
Podemos dizer que nos enredos de seus romances habitam a tríade: solidão, morte e religiosidade?
Eu diria a morte, a solidão e a espiritualidade mais do que a religião. Sabe que estou convencido de que a vida, na sua natureza mais iminente, é uma experiência terrível. Não pela natureza, ou não como garantia da natureza, mas tolerada pela natureza está a felicidade. Mas a natureza não oferece a felicidade a ninguém, a natureza oferece exatamente o contrário: ela nos garante que vamos nascer de um trauma, vamos nascer imprestáveis, inviáveis. Só procedemos e crescemos pelo acordo do coletivo. Nós só envelhecemos porque há uma pluralidade em nós, porque sozinho nenhum de nós sobreviveria, e a vida não nos garante regozijo nenhum, não garante alegria. Uma pessoa pode morrer sem ter sequer sabido que existiu, sem ter sequer tido consciência de si própria, por isso sem sequer ter formado aquilo que damos como garantido que é sermos quem somos. A natureza não garante isso, embora ela tolere. E, por isso, a minha perspectiva das coisas é um pouco grotesca. Por isso, os meus livros são tragédias tremendas. No entanto, sendo a natureza propensa ao grotesco, inclusive prometendo a morte a todos nós, no meio-termo, pela maturação da consciência e, para mim, sobretudo no meu caso, pela oportunidade da cultura, pela arte, pela educação, pelo ensino, nós podemos beirar a felicidade.
Na sua mais recente visita ao Brasil, você disse: “Quem não aprecia a arte fica diminuto”. Por quê?
Sou acessível a todas as artes, e tudo que propenda para uma construção preocupada e improvável me interessa. Porque a arte tem isso, ela é sempre um resultado improvável. Ela não é uma ciência de rigor, e nós não somos uma ciência de rigor. Não somos grandezas de rigor, nunca vamos ser, por isso não somos acabados, terminados, definidos. Nossa amplitude vai sempre permitir que a gente escape de todas as definições e que a gente seja um pouco mais do que algum dia já se pensou, e a arte é exatamente o ponto essencial para provar que nós somos assim. Então, presto um pouco de atenção a tudo.
Foto: Hiroki Kobayashi.
E o que chama sua atenção no cotidiano?
Esse improvável, essa compulsão para que alguma coisa não seja pura e simplesmente linear ou normal, porque não há a normalidade. A normalidade é uma coisa a que estamos proibidos ainda que estejamos constantemente chamados a ser normais. É um absurdo porque isso não há. Não existe e me chamam a atenção esses talentos que de repente todos nós podemos ter nas mais variadas coisas da vida e que fazem com que operemos, desempenhemos um determinado papel de uma forma única. Por isso nunca vamos ser esgotáveis. Nunca ninguém vai poder encontrar uma fórmula para explicar a humanidade inteira. Hoje, provavelmente, está nascendo alguém que vai ser capaz de alguma coisa que não está prevista até que o faça. Por isso, nenhuma definição vai servir para alguma pessoa que nasceu hoje.
Como é ter uma obra como A Desumanização adaptada para o teatro? Há medo ou expectativas?
Costumo dizer que depois de os livros estarem publicados, entregues aos leitores, eu aprendo sobre os livros. Porque o fato de eu os escrever não significa que seja capaz de os entender por completo e sobretudo que eu tenha a capacidade de esgotar e de acompanhr. todas as pistas. Há coisas que o livro mantém em mistério para mim. E provavelmente se o livro for bom, ele manterá mistérios para todo o sempre. Quando as pessoas devolvem suas perspectivas [sobre os livros], eu entendo coisas. Inclusive, fica mais claro alguns pressentimentos que eu tinha acerca do que escrevi e que talvez não conseguisse verbalizar. Quando um livro chega, como neste caso, a uma peça de teatro, é uma resposta, que maturou e precisou de um coletivo de gente para existir e é muito gratificante. De maneira que é como se eu viesse a aprender sobre o meu livro. O simples sorriso da Maria Helena [Maria Helena Chira, atriz que encena junto a Fernanda Nobre a adaptação de A Desumanização para o teatro] quando me falou pela primeira vez da sua vontade de fazer desse livro uma peça de teatro, esse simples sorriso já foi uma lição. Porque a energia que ela trouxe... Ela honra-me muito. E mais do que simplesmente me honrar, ela comprova meu livro, ela devolve meu livro. Bastou ela sorrir para que meu livro me viesse a pousar as mãos.
Ainda neste ano, será lançado seu próximo livro: um romance que se passa no último século do Brasil Colônia. Por que escolheu esse local e tempo?
Como do século 19 ninguém se lembra, pode ser que não fiquem demasiado zangados comigo. Tenho sete romances publicados, este será o oitavo e publiquei muita poesia. Não tenho muito interesse em escrever coisas óbvias. Não tenho interesse em replicar algo que já fiz. Então, sempre me coloco o desafio e sempre me proponho falhar. Vou escrevendo e tentando falhar a todo custo porque vou muito na beira do precipício, então não poderia escrever sobre o Brasil uma coisa que me parecesse muito fácil, que usasse aquilo que sei. Eu vim ao Brasil nestes últimos 20 anos, talvez, 60 vezes. Então, sei alguma coisa. Li muito a literatura brasileira, vi muito teatro, muito cinema, ouço muita música. Então, eu precisava piorar a minha vida escolhendo algo que fosse um pouco mais recôndito e que fosse mais instigador. E quero muito, como português, problematizar. Os meus livros falam das coisas um pouco sutilmente, expondo um resultado e deixando a causa meio subjacente para que as pessoas depois deem respostas àquela ideia, tirem suas conclusões.
E como será esse enredo?
Então, vou esconder o branco no livro, mas mostro o que acontece com as aldeias indígenas e os povos negros por causa da ação do branco. Não preciso falar muito do branco, só preciso mostrar a agitação, o horror e um certo holocausto que foi criado, quer para os povos indígenas americanos, quer para os povos negros africanos. Estou muito ansioso porque há uma dimensão poética no livro, e não poderia deixar de ser, e isso vem de eu estar a inventar, ainda que um pouco alicerçado nos imaginários abundantes que são comprováveis, estou a inventar um modo de consciência e que tem que ver com encarar a realidade ou conceber o mundo e a criação do mundo de outra maneira. Então tudo é na nossa cultura branca, digamos assim, tudo é delirante ou simplesmente poético, mas também é uma forma de aprendermos que a vida pode ser feita de outra maneira e pode ter outras convicções. Não estamos mais certos que ninguém.
Tanto em suas obras quanto em conversas com o público, há uma preocupação em falar sobre desigualdades. Qual a importância dessa postura?
Para mim é muito importante essa consciência em relação à desigualdade e o levantamento de uma voz contra todas as discriminações e contra todo o racismo. No Centro de Pesquisa e Formação do Sesc [onde ele esteve presente no semestre passado], eu dizia um pouco assim: acho que impedirmos os efeitos do racismo é a única forma de verdadeiramente não sermos racistas. O indivíduo que não influi no sentido de impedir as sequelas, por exemplo, da perseguição aos povos negros, se o indivíduo está pura e simplesmente pacífico, ele continua a ser racista. Então, o racismo acabará no momento que todos nós ativamente nos opusermos às sequelas e impedirmos que exista qualquer tipo de efeito do passado ou do presente nesse sentido. Isso é muito complexo, é muito profundo. Por exemplo, isso vai até o tempo da escravidão ao entendimento do desfavorecimento histórico dos povos negros e dos povos indígenas e, no fundo, a escravidão só vai verdadeiramente terminar quando nós todos decidirmos que seus efeitos terminaram também. Porque não é possível exigirmos aos povos negros e indígenas que estejam a par com outros povos se historicamente não lhes foi possibilitado ter acesso à igualdade. Essas são questões que me interessam muito porque não quero ser responsável pela perpetuação de um defeito de caráter tão horroroso.