Postado em 21/09/2019
Sociólogo e animador cultural no Sesc Araraquara, Lerisson nasceu e foi criado no sertão potiguar. Filho de um funileiro e de uma auxiliar administrativa, ambos contribuíram, cada um a seu modo, para que desenvolvesse seu gosto e hábito pela leitura. A mãe contrabandeava livros da escola onde trabalhava para o filho ler em casa. Já o pai tinha uma funilaria e, por acaso, reunia um rico e desproposital acervo de jornais e revistas onde o menino brincava.
Eram caixas e caixas cheias de jornais. O dono da oficina de funilaria sempre pedia para os vizinhos deixarem com ele, pois usava para proteger vidros e outras partes dos carros que ele pintava das novas demãos de tinta. As caixas ficavam no fundo do prédio de terra batida e com o tempo iam se enchendo de jornais velhos, mas também de revistas e livros.
As pessoas próximas passavam lá e deixavam tudo que era papel, afinal, isso que era importante no processo de pintura de um carro.
Esse processo - às vezes de pintar um carro inteiro - era um grande evento de alquimia. Vários elementos eram misturados: tintas, solventes, pigmentos, catalizadores, pessoas e histórias, muitas histórias.
De ficção ou não, estavam todas ali disponíveis e desordenadas para quem quisesse ver. Vasculhar aquelas caixas em meio a uma pequena nuvem de poeira fez parte da formação de alguns pequenos leitores. Nós, os meninos - infelizmente por uma série de questões machistas, as meninas não estavam ali - nos informávamos e fomos, de certa maneira, alfabetizados por aquele balaio de notícias velhas de jornais do interior, romances baratos e histórias de espiões de terras muito, muito distantes e em geral muito frias.
Em um lugar quente o ano todo, era um exercício excitante imaginar o que seria ser espião em meio à neve, chuva e frio e inimigos soviéticos sempre à espreita.
Isso faz pensar em Eduardo Galeano, escritor uruguaio, que confrontou os cientistas ao dizer que não somos feitos de átomos, mas sim de histórias. Foi um passarinho que contou isso para ele.
Somos feitos de narrativas, daquilo que contamos e daquilo que nos contam, de um balaio ambulante de contos, romances, crônicas, poemas, cordéis, equações, números, algoritmos, conversas, monólogos, tweets, stories..., uma alquimia de memórias e sotaques.
E essa miríade de narrativas nos faz conviver com o diverso, com o contraditório, com interpretações diferentes, com narrativas muitas vezes completamente opostas, pois é isso que nos define: se somos texto, então somos passíveis de muitas e múltiplas ,interpretações. E isso permeia nossa existência do prefácio ao epílogo.
O "Autoria - Encontro entre Escritores e Leitores", projeto do Sesc Araraquara, surge a partir da mistura de todos esses elementos, sobretudo da vontade de proporcionar um espaço para contarmos e escutarmos histórias. Afinal, o que faziam (em alguns lugares ainda se faz) aquelas pessoas sentadas nas calçadas no fim do dia? Ou aquelas no ponto de ônibus conversando entre si ou com outras pessoas por meio de seus aplicativos instalados em celulares?
Em que pese nossa avaliação boa ou ruim sobre a influência das novas tecnologias digitais de comunicação, elas tiveram um enorme impacto na forma como contamos nossas histórias uns para os outros. Como pessoas que gostam de passar horas em sebos e livrarias procurando livros que contem histórias interessantes ou simplesmente necessárias, ficamos rolando nossas pequenas telas no telefone esperando por novas notícias, novas histórias, para saber um pouco mais do mundo, dos outros e de nós mesmos.
Alguns faziam isso vasculhando caixas velhas e empoeiradas, outros em bibliotecas públicas ou na escola, outros escutando as conversas dos mais velhos nas calçadas e praças, de maneiras diferentes percebemos como somos parecidos.
O encontro aborda diversificadas formas de narrar histórias; que atualmente batem à nossa porta e enchem de notificações nossos dispositivos eletrônicos móveis.
Romances, crônicas, pesquisas, estórias, biografias, rimas e rap fazem parte desse balaio. As atividades valorizam exatamente aquilo que nos define: a conversa, o ato de contarmos histórias uns para os outros e o encontro entre quem escreve e quem lê, procurando ser o mais diverso possível, pois não só os meninos têm o direito de ler histórias de espiões. As caixas e prateleiras empoeiradas devem ser acessíveis para todes, afinal existir significa contar nossas próprias histórias e escutar a dos outros, um papagaio gaiato me contou...
Idealizado pelo Sesc Araraquara, o "Autoria - Encontro entre Escritores e Leitores" apresenta a diversidade da literatura e sua presença como parte do nosso dia-a-dia. Em sua primeira edição, o projeto acontece entre os dias 2 e 5 de outubro de 2019 e contempla bate-papos, oficina e ações nas escolas. A programação é destinada à todos que gostam de ler, ouvir e contar histórias e tem a presença de escritores brasileiros cujas obras se dedicam a gêneros como romance, crônica, biografia, estórias, rimas, rap e pesquisas.
O objetivo é possibilitar a circulação de saberes entre as pessoas e a valorização da arte literária, a partir da palavra, fomentando uma cultura de prática da escrita e da leitura como elementos primordiais para a expressão do conhecimento, do desenvolvimento e do diálogo.
A abertura será na quarta-feira (2/10). Programação completa clique aqui.