Postado em 20/09/2019
Poesia numa hora dessas?, nos pergunta um dos bordões que se tornaram marca registrada de Luis Fernando Verissimo. A frase é um alerta para a gravidade da situação, qualquer situação (lembra um de seus personagens mais saborosos e atuais: Dudu, o alarmista), e para o deslocamento da poesia nos dias de hoje.
Mas é também uma afirmação da poesia (e do humor) a qualquer momento, em especial do tipo muito peculiar de poesia que Verissimo nos oferece há cinco décadas, mesmo quando escreve em prosa, mesmo quando desenha, faz piadas para um roteiro de TV ou sopra o seu sax.
Para celebrar cinco décadas desse humor fino que, decantado em colunas de jornal, deu corpo a uma obra sólida e popular, convidamos o jornalista Paulo Werneck para repassar neste abecedário a enorme crônica da vida brasileira que é a obra de Verissimo.
Uma obra que espelha o país em cada linha e cada entrelinha, e nunca nos deixa sozinhos, sempre fazendo rir e pensar, quase sempre ao mesmo tempo.
Algumas cidades se inscrevem com nitidez no horizonte sentimental da vida e da obra de Luis Fernando Verissimo: a Washington em que viveu com os pais nos anos 1950 e 60, a Nova York dos clubs de jazz, a Porto Alegre de sempre, a Bagé do Analista, o Rio onde conheceu sua mulher Lucia, e ainda Paris, Roma e outras capitais onde esteve a trabalho e sobre as quais escreveu. Mas nenhuma cidade se projetou mais na cultura brasileira a partir de sua obra que Taubaté.
Um a senhora sem nome, nascida na pacata cidade paulista, se tornou uma das suas personagens com maior força no imaginário popular. Em fins dos anos 1970 e 80, quando a ditadura, já moribunda, se via às voltas com graves crises políticas e econômicas, Verissimo apresentou a seus leitores a Velhinha de Taubaté, que acreditava em tudo o que o governo dizia.
Entusiasta do general Figueiredo, a boa senhora ajudou o governo a enfrentar a hiperinflação dos anos 1980 como “a última fiscal do Sarney” -- numa crônica, o presidente a visitou de helicóptero.
A Velhinha de Taubaté ficou adormecida até voltar com força total nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, quando passou a frequentar a coluna de Verissimo com frequência quase semanal. Virou assunto nacional.
Em 2005, no governo Lula, durante a crise do Mensalão, o autor anunciou a morte da personagem, que não suportou as denúncias contra seu ídolo, o então ministro e homem forte do governo Antonio Palocci: “Ela morreu na frente da televisão, talvez com o choque de alguma notícia. Mas a polícia mandou os restos do chá que a Velhinha estava tomando com bolinhos de polvilho para exame de laboratório. Pode ter sido suicídio”.
Fora deste mundo, a personagem talvez cumprisse seu destino final no imaginário popular, segundo seu autor. “A Velhinha pode muito bem se transformar em milagreira depois de morta. As pessoas querem acreditar, pelo menos, em quem acreditou um dia.”
O Universo, escreveu Verissimo, “existe para a gente existir”. Isso não significa que ele admita que ele próprio, o Universo, “exista”. “Nós não conseguimos imaginar o universo. Seus limites, suas origens, suas intenções, sua razão de ser. Simplesmente não estamos equipados para isso.”
Mas aí é que Verissimo se engana. Ele, pelo menos, está equipado com um poderoso recurso que dá conta de tudo isso — a imaginação literária, capaz de viajar do universo ao... umbigo, sem sair da mesma letra.
“O umbigo tem causado controvérsias há gerações. Discutiam se nas imagens do Paraíso, Adão e Eva deveriam aparecer com ou sem umbigo, já que não tinham nascido de partos normais e sim feitos por Deus. Uma corrente justificada a presença de umbigos no primeiro casal como uma espécie de “imprimatur” do Criador, um carimbo bem no centro do corpo garantindo o equilíbrio da imagem e a autenticidade da obra. “
A vida privada, ensinou Verissimo, é uma comédia. A vida pública um pouco menos, embora ele também nos ensine a rir dela.
Sua capacidade de descrever conflitos de família, entre amigos, entre casais com uma insuperável graça — e também uma grande, mas quase imperceptível, profundidade. Por isso uma parte significativa de sua obra, ao deixar as paginas dos jornais, foi batizada como Comédias da vida privada.
Virou quase uma expressão popular. E numa obra escrita em fragmentos — as crônicas — a ideia conferiu unidade ao conjunto. Talvez se Veríssimo tivesse esboçado um projeto como Balzac fez a sua comédia humana não tivesse conseguido alcançar o resultado que conhecemos. E talvez a comparação não seja de todo injusta, guardadas as diferenças entre a França do século 19 e o Brasil dos séculos 20 e 21.
Talvez as comédias da vida privada sejam o ponto alto da obra de Verissimo, ou pelo menos algo que a sintetiza de forma notável, assim como A vida como ela é define, de certa forma, a obra de Nelson Rodrigues.
Seja como for, as comédias de vida privada de Veríssimo se espalharam em livros e até na TV tiverem sucesso — pareciam feitas para a telinha.
Resta saber se, como Nelson, Verissimo um dia nos dará a ler memórias de sua vida privada — pois é notável também a forma como os aspectos biográficos e familiares, tão próximos dos interesses literários de Verissimo, não se deixam ver em seus textos.
Depois de passar três anos entre Los Angeles e San Francisco, os Verissimo retornaram aos Estados Unidos em 1953, desta vez para a capital, onde Luis Fernando se forma na high school e estuda música. Do período, ficariam na memória dele as escapadas para Nova York, que fervilhava na vida cultural do pós-guerra.
Entre os expatriados brasileiros em Washington estava um casal de amigos de Erico e Mafalda: o diplomata Maury Gurgel Valente e a escritora Clarice Lispector. Nascia uma das amizades fundamentais na vida da autora de Laços de família.
“Clarice encontrou em minha mãe alguém com quem ela podia relaxar e baixar a guarda”, relembraria Clarissa Jafet, irmã de Luis Fernando. “Minha mãe era uma mulher muito descomplicada, o oposto exato de Clarice.” O irmão concorda: “Elas não poderiam ter personalidades mais diferentes, mas se tornaram amigas de infância”.
"O xadrez é a última tentativa humana de conviver inteligentemente com o infinito. Depois do xadrez é que vem a metafísica. A metafísica é o abismo no fim do tabuleiro."
"O xadrez é um jogo violentíssimo. Parte do tempo em que parece estar pensando no seu próprio lance o jogador de xadrez se dedica a imaginar o que faria com o adversário e sua família se não precisasse se controlar. Coisas envolvendo machadinhas e óleo fervendo no ouvido."
O Z, escreveu Verissimo numa crônica sobre as letras, "sempre me parecia estar olhando para trás. Talvez porque não se convencesse de que era a última letra do alfabeto e quisesse certificar-se de que atrás não viria mais nenhuma".