Postado em 30/08/2019
Bel Santos. Foto: Leila Fugii.
Ainda que estivesse a sete palmos da terra, o clássico da literatura Dom Casmurro, de Machado de Assis – publicado há 120 anos –, estaria mais vivo do que nunca. Aliás, este e outros livros compartilham vida com os frequentadores da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, no Cemitério da Colônia, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, há dez anos. Foi nesse endereço inusitado que meninos e meninas da região criaram um espaço de incentivo à leitura, capaz de entrelaçar saberes da educação, da cultura e da sociedade. À frente dessa iniciativa está a educadora social Bel Santos, que, desde 1988, atua em organizações não governamentais e facilita processos de criação de bibliotecas comunitárias gerenciadas por jovens. Coordenadora do Programa de Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário, Bel se declara uma “convertida em literatura”. Formada em Matemática, trocou a equação pela prosa a fim de abraçar todas as possibilidades que a literatura abarca como agente de transformação. “A Caminhos da Leitura é um lugar de encontro não só de leitores, mas também de quem não sabe ler. Ela virou um centro de convergência de todas as questões da comunidade e um centro de irradiação de mudanças e construções de futuro. Por isso vamos às ruas, fazemos saraus, cortejos literários e outras ações”, conta.
Direitos Humanos
A Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura começou dentro de uma unidade de saúde, considerando que o acesso à leitura está doente no país inteiro e também lá em Parelheiros. Era 2008, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estava fazendo 60 anos, e a gente pensou em começar por aí. Chamamos 60 jovens da cidade de São Paulo, um grupo do Parque Santa Madalena, da Favela do Madalena – de onde eu venho –, um grupo de Parelheiros e um grupo do Centro de São Paulo ligado à Revista Viração. Esses 60 jovens reescreveram a declaração dos direitos humanos com uma precondição: a gente vai reescrever até a mãe da gente entender. Porque todos e todas nós somos filhos e filhas de mães que não tinham frequentado a escola. Aí começa nossa primeira ação de escrita. E os jovens de Parelheiros queriam reabrir a biblioteca. Não porque eram ávidos leitores, mas porque aquele era o único lugar onde havia uma mesa redonda, e é uma delícia se sentar em roda e ter o mesmo poder de fala. Aí nasce esse movimento.
Solo fértil
A gente queria uma biblioteca que falasse de futuro, não só do presente. Queríamos uma biblioteca que ajudasse a sonhar. E as pessoas doavam tudo o que era livro que não queriam mais, principalmente livros didáticos, livros que o governo distribuía para as escolas, romances faltando as últimas páginas. Organizamos tudo na salinha dos agentes comunitários de saúde até que um instituto que apoiava ações de biblioteca abriu um edital para bibliotecas comunitárias. Foi a nossa primeira experiência com esses jovens de escrever um projeto. Todos aprenderam, nosso projeto foi aprovado e nesse edital conseguimos verba para comprar livros. O passo seguinte foi chamar pessoas que entendessem de literatura para nos ajudar a desenvolver o acervo. Chamamos bibliotecários, escritores, jornalistas de revistas literárias para ensinar a gente.
Para (re)nascer
Fomos para o cemitério porque chegou um dentista na unidade de saúde que precisava de uma sala. Alguém lembrou que a casa do coveiro estava desocupada. E o cemitério não é a pior relação com a morte. Um jovem da periferia, infelizmente, vive com a morte no seu cotidiano: a morte física, a morte da esperança, a morte de não sonhar. Mas havia um desafio: como trazer uma narrativa de vida para um lugar de morte? Um amigo grafiteiro, Elder Oliveira, conversou com os jovens e falou para eles espalharem esse orgulho que tinham da biblioteca pelas ruas. Ele criou um estêncil com as lápides do cemitério e nelas uma poesia fala de vida. Temos uma hashtag: #DeParelheirosparaoMundo. Um mundo foi se abrindo para esses meninos e meninas a partir da literatura. A gente fala que Parelheiros, “o pior lugar para se viver”, é hoje o melhor lugar para se nascer.
Assista aos vídeos deste Encontro:
Formação de leitores
Uma das primeiras ações para a gente virar um leitor é ter contato com livros que vão fazer um sentido. Depois: ler e conversar sobre literatura. Assim, a gente perde o medo do livro. E todos têm o que falar sobre o que leram. Tem sido quase um antídoto para a timidez. Lemos em 25 pessoas e quatro livros as 900 páginas de Um Defeito de Cor [Record, 2006]. Demoramos um tempão. Não estamos preocupados em entregar resultados rápidos, o que nos interessa são resultados permanentes. Pessoas que se sustentem pelo movimento de ler e acreditem que vamos encontrar sentido naquilo que está no universo da leitura. Então, depois de quase um ano lendo Um Defeito de Cor, após viajar nos navios com a escritora Ana Maria Gonçalves, pensamos em contar isso para ela e a escritora quis se encontrar com a gente. É assim que as coisas têm acontecido por dez anos.
Ler para quê?
Se a literatura, como Antonio Candido disse, é essa necessidade humana de descanso da realidade, todos nós precisamos descansar da realidade e sonhar. Por algum tempo se achou que esse direito era só para algumas pessoas: só quem tem a vida ganha teria tempo para viajar com a literatura. Que bom que conseguimos avançar e dizer que não é assim. Se todo mundo precisa dormir, sonhar, por que só alguns precisam da literatura? Defendê-la como direito humano trouxe isso. Como as “escrivivências” de Conceição Evaristo, que falam da realidade com tantas metáforas e poesia que te arrancam da realidade e te trazem de volta.
Bel Santos esteve presente na reunião
do Conselho Editorial da Revista E no dia 11 de julho de 2019.