Postado em 30/08/2019
Será que a noção de progresso proporcionou avanços à humanidade, sobretudo na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e aberta às diferenças? Essa é a questão investigada por 15 pesquisadores de diferentes áreas na 11ª edição da série Mutações (Edições Sesc), organizada pelo professor e jornalista Adauto Novaes, que foi diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte, do Ministério da Cultura, por 20 anos. Publicada anualmente desde 2008, essa série registra os ciclos de conferências organizados por Adauto Novaes, com o propósito de discutir e contextualizar as mudanças e crises sociais e éticas advindas das novas configurações do mundo. Do recém-lançado volume Mutações – Dissonâncias do Progresso, nossa seção Em Pauta destaca excertos de dois artigos. No primeiro, o físico e curador de ciências do Museu do Amanhã no Rio de Janeiro, Luiz Alberto Oliveira, levanta diferentes pontos de vista acerca de um progresso no âmbito global tendo em vista o aumento da expectativa de vida, a estabilização do contingente populacional, avanços na educação, entre outros fatores. Enquanto no segundo artigo, escrito pelo arquiteto e crítico Guilherme Wisnik, a cidade é o pano de fundo dessa reflexão sobre progresso.
O que se entende por fim da humanidade?
Luiz Alberto Oliveira
Eis a questão a explorar, o que é o fim do “progresso como fim”? Ou, por outra, o que viria depois do “progresso”? Como ponto de partida para nossa análise, vamos admitir que o atual estado de coisas internacional, em escala planetária, é resultado do tal progresso – deixando uma determinação mais precisa dos sentidos desse termo para adiante. Se simplesmente aceitamos chamar de progresso certo tipo de processo histórico que vigorou nos últimos 250 anos, digamos, e que foi decisivo para que fosse constituído o estado de coisas que vivemos hoje, então esse processo claramente se vincula ao paradoxo aludido acima, que apontaria assim para aspectos cruciais de nossa época.
Podemos abordar o problema examinando duas linhas de argumentação. Como exemplo da primeira linha, ouçamos o divulgador científico John Horgan, que escreve para importantes revistas científicas. Horgan declara factualmente que a humanidade, hoje, é “mais saudável, mais afluente, mais pacífica e mais livre do que nunca” (...). Ou seja, para ele, vivemos hoje no melhor momento da humanidade. Vejamos os fatores em que Horgan se baseia.
Primeiro, o aumento realmente espetacular da expectativa de vida da maior parte da população. Ao longo da história, a expectativa de vida em diferentes civilizações alcançava poucas décadas, tipicamente, como no Império Romano, cerca de 30 anos. Mas, ao longo do século 20, num prazo bem curto, a expectativa de vida cresceu para cerca de 70 anos, e em diversos países caminha para os 85 anos e além. (...)
Dito de outro modo, a estimativa é de que, por volta de 2050, 2060, um terço da humanidade tenha mais de 60 anos. Nunca antes houve uma sociedade humana com uma distribuição de idades similar a essa, e devemos, portanto, esperar impactos profundos em muitos aspectos da vida cotidiana, especialmente nas cidades, em função da presença maciça de tantos idosos saudáveis e ativos.
Outro aspecto biológico de grande importância, prossegue Horgan, é a estabilização do crescimento populacional – e a ausência de uma explosão. Com efeito, depois do final da Segunda Guerra Mundial, foram desenvolvidos vários modelos retomando a antiga concepção de Malthus de que, enquanto a população humana cresceria de modo geométrico, a produção de alimentos aumentaria apenas de forma aritmética, e, portanto, haveria um momento de ultrapassagem que daria lugar, inevitavelmente, a uma situação de aguda escassez alimentar.
(...) O que se verificou, ao contrário, foi uma tendência de estabilização do contingente da população em virtude da diminuição drástica, em duas gerações, do número de filhos por mãe. O exemplo brasileiro é muito citado, porque sua rapidez foi notável: a taxa de fertilidade das mulheres brasileiras nas décadas de 1940 e 1950 era por volta de seis filhos por mulher, e, atualmente, pouco mais de duas gerações depois, caiu para em torno de dois filhos, o que é essencialmente equivalente à simples taxa de reposição da população.
(...) Outro fato notável: a multiplicação por um fator 10, desde o século 18, da riqueza dos indivíduos. Se compararmos a disponibilidade média de bens e recursos nas sociedades de hoje com o modo de vida da maior parte da população 200 anos atrás, constatamos, diz Horgan, uma afluência dez vezes maior. (...)
Saneamento, quando havia, apoiava-se nas antigas canalizações dos romanos, inexistiam serviços como o transporte público, as bibliotecas eram confinadas aos conventos (com a notável exceção da Andaluzia moura), e a fome, a peste e a guerra estavam sempre à espreita.
Parece indiscutível, de fato, que vivemos atualmente em uma sociedade muito mais afluente do que a de nossos antepassados. E também mais pacífica. Pois esse crescimento da riqueza comum foi acompanhado por uma diminuição crescente do número de fatalidades por guerras e por uma forte queda das taxas de homicídios – em suma, por um declínio geral da violência, em diversas formas e em muitos locais.
Em vista do noticiário nosso de cada dia, essa afirmação soa como um rematado absurdo... Mas, se examinamos as séries de dados do século 20 até o 21, verificamos que, não obstante os picos das duas grandes guerras e os conflitos aparentemente duradouros em todo o período, os números mostram uma tendência inequívoca de diminuição percentual das fatalidades causadas por guerras e, se ampliamos as bases de estudo, de violências de todas as formas. (...)
(...) Por fim, Horgan aponta a multiplicação das democracias. Coloquem-se quantas aspas se julgue necessário no termo “democracia”, decerto, mas o fato que Horgan aponta é que no começo do século 20 havia talvez meia dúzia de países em que o regime político-eleitoral poderia, ainda que com fortes ressalvas, invocar o modelo da Atenas de Péricles. Nos demais, vigoravam sistemas abertamente despóticos, impérios e colônias, absolutismos hereditários, teocracias. Hoje, ao contrário, a imensa maioria dos países presentes na ONU se denominam democracias. (...)
Quer se trate de formas mitigadas de dominação, de mascaramento das verdadeiras relações de força, ou de simples hipocrisia, de qualquer maneira o ideal democrático de sociedades administradas a partir da vontade livremente expressa pelo voto de seus cidadãos parece ter se tornado, se não uma norma autêntica, pelo menos um objetivo declarado em todo o mundo contemporâneo. (...)
Mas ouçamos também o respeitado filósofo Frances Michel Serres. Essencialmente, ele endossa a proposição de Horgan sobre a melhoria sem precedentes do estado geral da humanidade, assinalando em particular os notáveis avanços ocorridos no campo da educação. Hoje, pela primeira vez na história, ele observa, mais da metade da população é alfabetizada, ou seja, há mais pessoas alfabetizadas no mundo do que analfabetas. (...)
Eis que o progresso teria assim nos conduzido para “o melhor momento da humanidade”.
Contudo, Stephen Hawking, o famoso físico britânico, fez uma afirmação igualmente marcante, mas praticamente inversa:
Agora, mais do que em qualquer outro momento de nossa história, nossa espécie precisa trabalhar em conjunto. Enfrentamos desafios ambientais impressionantes: mudanças climáticas, produção de alimentos, superpopulação, dizimação de outras espécies, doenças epidêmicas, acidificação dos oceanos. Juntos, eles são um lembrete de que estamos no momento mais perigoso do desenvolvimento da humanidade. Agora temos a tecnologia para destruir o planeta em que vivemos, mas ainda não desenvolvemos a capacidade de escapar dele.
Luiz Alberto Oliveira é físico, doutor em
Cosmologia, pesquisador do Instituto de Cosmologia,
Relatividade e Astrofísica (ICRA) do Centro Brasileiro
de Pesquisas Físicas (CBPF/MCT), onde também atua como
professor de História e Filosofia da Ciência. Também é curador
de ciências do Museu do Amanhã no Rio de Janeiro.
Não lugar, cidade genérica, planeta favela, cidade post-it
Guilherme Wisnik
Serão as nossas cidades a realização material da ideia de progresso tão acalentada ao longo da modernidade? Serão suas estruturações físicas a expressão dos inúmeros avanços técnicos ocorridos nos últimos 200 anos? São essas as perguntas iniciais que orientam esta minha reflexão.
Mas as cidades hoje não são mais entidades fisicamente delimitadas ou formalmente reconhecíveis. Daí o surgimento, quase que consecutivo, de novas perguntas: como cartografar um mundo sem fronteiras, medidas ou limites? Como figurar mentalmente as grandes aglomerações urbanas contemporâneas, conturbações gigantescas chamadas megacidades, que parecem se espraiar como líquido por todos os lados? Será que vivemos, do ponto de vista fenomenológico, um momento de ruptura na relação perceptiva entre o nosso corpo e o ambiente construído que nos rodeia?
Parece-me que a dificuldade para se responder tais questões não provêm apenas do tamanho gigantesco e do aspecto informe de muitas das cidades atuais, mas também do fato de elas serem atravessadas por dinâmicas caóticas, em permanente processo de reconfiguração. Esse é o tema do ensaio “Informe”, de Nelson Brissac Peixoto. Diferentemente do que se pensava na primeira metade do século 20, observa o autor, as cidades não se tornaram imagens ordenadas do progresso, mas sim organismos turbulentos e entrópicos.
Com o agravante de que, nas últimas décadas, sob o impulso da globalização econômica, passaram a se configurar como arquipélagos de enclaves modernizados – aquilo que Sharon Zukin denominou de “paisagens de poder” – rodeadas por massas informes de ocupações transitórias e clandestinas. Assim, frequentemente as cidades têm seus recursos públicos drenados para dotar de infraestrutura essas cidadelas-enclaves, entregando o resto do tecido urbano à total precariedade. Construídas pelo e para o automóvel, as megacidades de hoje desertificaram as calçadas e os seus espaços públicos tradicionais.
Depois da Segunda Guerra Mundial, em boa parte das grandes cidades no mundo, desfez-se a clássica contraposição dual entre um centro urbano organizado e uma periferia entrópica. Ou seja, em muitos casos o que se vê é justamente uma situação em que os centros históricos se degradam à medida que os subúrbios se tornam afluentes, abrigando as classes médias e as elites que lá se refugiam em busca de maior tranquilidade e segurança.
No fundo, há pelo menos 60 anos, o que ocorre como dinâmica global em muitas das grandes cidades do mundo é a dissolução da relação hierárquica entre centro e periferia, assim como entre a cidade e o campo. (...)
Assim, se durante séculos de história humana, como bem definiu Adam Smith ainda no século 18, o motor da relação social esteve alicerçado na clara divisão de trabalho entre a cidade e o campo, hoje essa realidade mudou inteiramente. Trata-se, no fundo, de uma enorme transformação, no mundo atual, tanto daquilo que entendíamos por cidade, por um lado, quanto daquilo que considerávamos ser o campo, ou o mundo rural, por outro.
(...) Assim, a morte do campo, este entendido como entidade avessa e impermeável à cidade, dá-se pela sua definitiva incorporação ao domínio do urbano, atravessado pelos serviços e pelo consumo, transformando-se em uma paisagem técnica. Fato que ocorre a partir da generalização da estrada, da tecnificação da agricultura, com a emergência do agronegócio e das commodities, e da banalização da paisagem colonizada pelo consumo e pela propaganda. Assim, segundo Domingues, tanto a cidade quanto o campo foram incorporados à ordem mais ampla e difusa do urbano, dissolvendo desse modo as antigas polaridades duais. (...)
Fazendo um recuo histórico, verificamos que nos anos 1980 o mundo viveu a retomada de um otimismo urbano, em que a grande moda entre arquitetos, urbanistas e pensadores das ciências humanas foi o resgate do espaço público. Sob o impulso de um urbanismo participativo e em pequena escala, de uma arte feita nas ruas e da afirmação de comunidades multiétnicas e multiculturais, renasceu um culturalismo cidadão baseado na fruição urbana e na reconquista do espaço público, tanto pela sociedade civil quanto pelo mercado, em detrimento do Estado (...).
O retrato (e base conceitual) desse momento é o livro Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar (1982), de Marshall Berman, diretamente inspirado na flânerie baudelairiana – e, por metonímia, no boulevard da Paris novecentista, criado pelo barão Haussmann. Acontece que as grandes transformações econômicas dos anos 1990 – a derrocada do Estado de bem-estar social, a globalização econômica e cultural, a difusão da internet, o predomínio da especulação financeira e, sobretudo, o crescente apartheid social – em pouco tempo soterraram as boas intenções daquele momento histórico.
Diante da nova escala de operações urbanas que surgiram para dar suporte à competição mundial entre as “cidades globais”, ou a uma Europa unificada e pronta a se renovar sob o espírito do city marketing e da espetacularização arquitetônica, outro contexto ideológico se impôs, deixando claro que a nova centralidade da cultura na economia urbana acompanhava um processo de esgarçamento social crescente, onde a fantasia do espaço público neutro já não era mais que uma bravata ou um fetiche.
Nesse momento, passou a ocorrer uma expressiva mudança de paradigma. A partir de então, a emergência da cultura digital, com a internet, somada ao processo de globalização das economias, permitindo um aumento exponencial da acessibilidade a informações e produtos, alimentou a ideia – ora apresentada de modo eufórico, ora catastrofista – de que o antigo espaço público havia migrado das praças e dos mercados para as telas de televisão e os monitores de computador, desespacializando-se.
(...) Em um ciclo de seminários na universidade de Rice (Houston) em 1991, ainda antes da proliferação da internet, Rem Koolhaas dirigiu palavras incômodas à classe dos arquitetos, que, em geral, havia se empenhado de corpo e alma nesse movimento de “volta à cidade” a partir do resgate bem-intencionado do lugar público como espaço democrático. (...)
Suas estocadas virulentas aos urbanistas aprofundam-se no texto “O que aconteceu com o urbanismo?”, escrito em 1994, no qual ele faz uma autópsia da profissão (...) E, buscando respostas para a questão, afirma que a culpa por essa situação não é só do mercado, ou do neoliberalismo, como costumamos afirmar. Ela é também dos próprios arquitetos e urbanistas, que, durante a voga
pós-moderna, pretenderam redescobrir a cidade clássica em um momento impróprio, retirando-se assim da discussão sobre os problemas reais da
cidade no capitalismo avançado.
(...) Como explica o teórico italiano Bernardo Secchi, a experiência moderna na cidade foi marcada pela preocupação em se distanciar e separar seus elementos constitutivos, o que se traduziu na noção de zoneamento e na obsessão higienista pela eficiência e pela funcionalidade.
Guilherme Wisnik é crítico de arte e de arquitetura, doutor em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde também é professor. Foi curador da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo (2013) e do projeto de Arte Pública Margem (2010), pelo Itaú Cultural.