Postado em 30/08/2019
Foto: Pixabay.
Qual a idade da velhice no século 21? No Brasil, a partir dos 60 anos é dada a largada para essa fase, marco definido em 1994 e aplicado ainda hoje. Além disso, a previsão é de que até 2050 o número de brasileiros acima dos 60 triplique, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Em maior número, essa faixa da população também viverá por mais tempo, já que a expectativa de vida média do brasileiro está na marca dos 77 anos. Nessa corrida para viver mais, ninguém quer perder o primeiro lugar para doenças, para a solidão ou para outros obstáculos do caminho. Então, como você quer envelhecer? Quem questiona é o presidente da Sociedade Brasileira de Gerontologia, médico e especialista em geriatria pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), Carlos André Uehara. Ex-diretor executivo do Centro de Referência do Idoso da Zona Norte, o pesquisador chama a atenção para o fato de que, culturalmente, não temos o cuidado de planejar o futuro. “Assim como não temos esse hábito de poupar. Envelhecer também é poupar, poupar saúde”, afirma. “E o envelhecimento é um processo longo, que deve ser planejado”. Nesta entrevista, Uehara fala sobre essa grande parcela da sociedade, de que forma ela está envelhecendo, qual a importância dos amigos e de familiares nessa jornada, e como se preparar para uma vida longa e saudável.
Qual o conceito de envelhecimento hoje? Houve mudanças?
Uma coisa é velhice e outra é envelhecimento. Envelhecimento é um processo contínuo, inexorável. A partir do momento em que a gente nasce, começa a envelhecer. A única forma de parar o envelhecimento é a morte precoce. Já a velhice é uma construção social. Ela muda conforme os anos vão passando. Na década de 1950, uma pessoa com 50 anos era considerada velha porque a expectativa média naquela época era essa. O conceito atual que nós temos de velho é da década de 1990. Não é o que a gente vê hoje. Então, velhice é uma construção social que muda e deve se revalidar ao longo do tempo. Hoje, uma pessoa de 60 anos não tem as mesmas características – doenças, incapacidades e perda de autonomia – de um velho de 30 anos atrás. Ela ainda está ativa, com potencialidades, sem os mesmos problemas de saúde do idoso do passado com essa mesma idade.
Então, a partir de que idade uma pessoa é considerada idosa?
Há um marco legal por causa de políticas públicas. Então, por lei, é a partir dos 60 anos. Saímos de uma expectativa de vida média de menos de 50 anos para 77 anos no Brasil. Falo de expectativa média de vida ao nascer. Ou seja, se uma criança nasce hoje, a expectativa de vida dela é de 77 anos. Agora a expectativa de vida de alguém com 60 anos é de, mais ou menos, 23 anos. Porque o número vai mudando conforme a idade. Quem chega aos 80 anos, tem como expectativa de vida mais oito anos e meio, aproximadamente.
Que fatores são responsáveis por essa longevidade no Brasil?
O que possibilitou a longevidade foi a melhora das condições de saúde. Isso vem, por exemplo, do saneamento básico e da introdução de vacinas, que tiveram um papel importantíssimo para diminuir a mortalidade infantil. E o que possibilita as pessoas viverem por mais tempo é a diminuição da mortalidade ao longo dos anos, na mortalidade infantil e mortalidade nos adultos, por exemplo, sobrevida após infarto agudo do miocárdio. Antes as pessoas morriam muito mais por doenças infecciosas, como diarreia, pneumonia, gripe. Então, saneamento básico, vacinas e avanços nos tratamentos de doenças foram fundamentais. Também foram descobertos antibióticos, conseguimos controlar a pressão alta. Foram vários os avanços. Se antes a pirâmide etária brasileira era realmente um triângulo, hoje essa pirâmide está virando um retângulo. Você está diminuindo a base e alargando o ápice. Além dessa transição demográfica temos a transição epidemiológica. Antes as doenças que mais matavam eram doenças agudas, infecciosas principalmente. Hoje as doenças que mais matam são as crônicas.
E quais são essas doenças?
Pressão alta, diabetes e alguns tipos de câncer. Essas doenças a gente não cura, a gente compensa. Quem tem pressão alta toma remédio para baixar a pressão, a mesma coisa para diabetes, que não tem cura. Isso faz com que a gente também tenha que pensar num novo modelo de assistência. Se antes tínhamos um modelo de saúde focado no médico e em hospitais, hoje temos que ter outros tipos de serviços para acompanhar o idoso por mais tempo. Alguém com pressão alta toma remédios e precisa ser acompanhado ao longo do tempo. Dependendo das características da pressão, pode ser mensalmente, semestralmente... Antes, esses acompanhamentos de saúde eram muito pontuais e agora não mais.
Quais os impactos de hábitos corriqueiros e diários de vida para uma vida longa e saudável?
De 15% a 20% dos fatores genéticos estão relacionados à longevidade. Todo o restante está relacionado a fatores externos, a hábitos de vida. E os hábitos de vida estão relacionados às doenças crônicas não transmissíveis [obesidade, diabetes, pressão alta, entre outras]. Então, o que a gente preconiza para tentar evitar essas doenças é alimentar-se bem: optar por alimentos naturais e evitar industrializados. Evitar consumir carne processada e outros alimentos que passam por processamento.
Tudo que for possível comer in natura é melhor. Além disso, manter o hábito de praticar, pelo menos, 30 minutos de atividade física diária, desde caminhar até subir escadas. Pegar o ônibus e descer algumas estações antes da sua parada, por exemplo, pode manter seu corpo ativo.
Houve uma melhoria na preparação para o envelhecimento?
Culturalmente, não temos esse cuidado de planejar o futuro. E o envelhecimento é um processo longo, que deve ser planejado. Assim como não temos hábito de poupar. E envelhecer também é poupar, poupar saúde, e muitas vezes não temos esse cuidado de poupar saúde, dinheiro, amigos. A Organização Mundial da Saúde elaborou a Política de Envelhecimento Ativo (2002), na qual destaca quatro pilares importantes que resultam num envelhecimento melhor: cuidados com a saúde; segurança pública, financeira e familiar; participação do idoso na sociedade; e aprendizado contínuo. Um dos autores é o médico especialista em envelhecimento Alexandre Kalache, que também fala em quatro capitais para o envelhecimento ativo: saúde, financeiro, social e cognitivo, baseados nesses pilares da OMS.
Como o capital social impacta a qualidade de vida na velhice?
O capital social é importante para a vida toda. Ter amigos e fazer novos amigos sempre, além de ter a família próxima. Nos momentos ruins, são eles que vão nos dar apoio. Então, é importante fazer novos amigos e ter o apoio da comunidade. Há características em comum nos grupos populacionais que mais envelhecem no mundo: as atividades sociais estão presentes e a espiritualidade também tem uma força importante – não estou me referindo à religião. Na vida moderna nós gostamos de tudo que traz comodidade para a gente – elevador, esteira rolante, vidro elétrico. Somos mais sedentários que no passado. E nessas comunidades com grupos que vivem mais de cem anos, os idosos são muito ativos fisicamente também. A gente tem que ampliar nosso olhar.
Em quais aspectos estamos avançando nesse preparo para a velhice?
Uma pessoa aos 60 precisa se preparar para pelo menos mais 25 anos de vida. E em 25 anos dá para fazer muita coisa: aprender um novo ofício, uma nova língua, viajar pelo mundo, constituir uma nova família, enfim. As pessoas estão começando a enxergar isso. É importante adotar atividades de prevenção, e a mulher, por exemplo, faz muito mais pela prevenção do que o homem. Se no passado a gente ganhou anos de vida, agora a gente tem que dar vida aos anos a mais. Não é só viver até os 100, mas viver até os 100 anos com qualidade de vida. É o que as pessoas têm buscado um pouco mais hoje porque o conhecimento em saúde aumentou e a informação disponível é maior. No entanto, um grande problema que enfrentamos é que as pessoas têm medo de envelhecer e buscam tratamentos milagrosos e terapias estéticas apenas. Mas gente: ficar velho é um privilégio.
Quem vai cuidar dessa população de idosos?
Um dos papéis do geriatra e dos especialistas em gerontologia é cuidar desses idosos. Mas a velocidade de formação de profissionais especializados na população de idosos não é a mesma do envelhecimento populacional. Temos que melhorar o treinamento dos profissionais que ficam com os idosos para que essas pessoas sejam capacitadas. Talvez eu não tenha geriatras e especialistas em gerontologia suficientes, mas vou ter todo um grupo de profissionais de saúde, ou não, que vão lidar com idosos e suas particularidades. Arquitetos que precisam pensar a respeito de casas adequadas, por exemplo. Precisamos de casas e equipamentos com condições de receber essas pessoas mais velhas. Também há o papel dos cuidadores de idosos. Hoje o cuidador não é uma profissão. E o problema de não ser uma profissão é que não consigo dar critérios de formação para esse profissional. Há cursos de dez horas e outros de 260 horas de formação, por exemplo. Também precisamos pensar em moradia e centros de convivência.
Medicamentos que aumentaram o tempo de vida sexual ativa trouxeram benefícios para essa longevidade?
Para alguns sim, mas não digo que seja a regra. Para essa geração esse ainda é um tema tabu. No consultório, muitos homens querem manter a atividade sexual e a mulher não quer. Mesmo porque a mulher, pela diminuição dos níveis de estrógeno, tem uma atrofia da mucosa vaginal, a lubrificação não é a mesma, o prazer é diferente, e deve haver cuidados que muitas vezes o homem não toma. Ele só quer tomar o remédio, ter a ereção e a penetração. Há também um aumento do risco de infarto em homens. Outro cenário é o aumento dos casos de HIV entre idosos. Uma geração que não usava e segue sem usar preservativo. Muitos homens têm relações fora de casa, contraem o vírus e o transmitem para sua companheira.
A biotecnologia voltada para o envelhecimento aponta que, em breve, o homem pode se tornar amortal. Qual sua opinião sobre essas previsões?
Acho que é uma possibilidade. Não sei se isso vai ser rápido. Tem uma técnica que é empregada com mais eficiência hoje que é a de edição do DNA. Por meio dela é possível pegar uma sequência de DNA defeituoso e trocá-la por uma saudável. Se há essa técnica, o prolongamento da vida é possível. Agora, viver mais tempo é multifatorial. Até identificar todos esses trechos do DNA que deveriam ser alterados vai demorar. Mas hoje já é possível. Ano passado um cientista chinês conseguiu editar uma sequência de DNA de duas meninas na China e hoje elas são resistentes ao HIV. É maravilhoso e assustador ao mesmo tempo. Isso pode ser usado para o bem ou para o mal. Então, é possível no futuro editar genes de quem tem Alzheimer ou outra doença e prolongar a vida. Mas, por enquanto, a pessoa que mais viveu no mundo foi uma francesa que chegou aos 122 anos.
Como desenvolver essa força interna para viver a velhice da melhor forma possível?
Esse é o dilema: a motivação. A gente sempre acha que a motivação deve vir do outro. E essa motivação precisa vir de dentro. No mundo corporativo, está em voga essa questão do propósito, mas essa questão deve abranger vários aspectos da vida. Tem um termo japonês, o ikigai, que significa razão de viver. O que o faz acordar todo dia? O que dá força para fazer coisas? Você pode pensar: quero correr uma maratona, subir uma montanha etc. Isso muda ao longo da vida, e posso ter mais de um ikigai. Tem muitas pessoas hoje que só vivem para trabalhar, e acabam deixando em segundo plano a saúde e a família. Uma pessoa com foco só no trabalho almoça qualquer coisa enquanto realiza suas atividades, e isso também aumenta a chance de um infarto, de outros problemas de saúde, como câncer de intestino, que mata bastante no Brasil. Mas o que você quer a longo prazo? Daqui a cinco, dez anos. Como você quer estar? Como você quer envelhecer?