Postado em 16/08/2019
Texto: Adriano Alves Pinto de Campos
“Um filme não é um movimento político. É só um filme. Ele pode, no máximo, somar vozes a um protesto.”
Esta frase dita por qualquer pessoa pode parecer apenas uma singela sensatez, mas quando reproduzida por um diretor como o britânico Ken Loach se revela modesta demais. Com mais 50 anos de carreira, Loach nunca fez um filme onde deixava de expor as crueldades requintadas com que governos tratavam seus cidadãos mais fragilizados. É justamente esse o caso no filme Eu, Daniel Blake, de 2016.
No drama ambientado numa cidade ao norte da Inglaterra, Blake é um carpinteiro que, após um evento cardíaco, é orientado por seu médico a se aposentar. A saga de Daniel começa quando o sistema de aposentadorias inglês nega o benefício a ele por julgá-lo apto a trabalhar mesmo sem ter tomado contato com o diagnóstico médico.
É a partir dessa premissa que o filme se desenro-la. O personagem nos conduz por um labirinto de procedimentos burocráticos que é obrigado a percorrer para apelar contra a decisão do órgão previdenciário ao mesmo tempo em que precisa pleitear um seguro-desemprego para se manter. Esse enrosco kafkaniano tem seu ápice quando Daniel é obrigado a entregar currículos para provar que está procurando emprego e ter direito ao seguro desemprego, mas tem que declinar as ofertas de trabalho pois não pode trabalhar por recomendações médicas. Uma situação que expõe um meca- nismo que deixa todos os envolvidos insatisfeitos enquanto desperdiça tempo e dinheiro.
Entendido apenas pelo plot acima, o filme de Loach poderia erroneamente passar por um documentário-denúncia, mas não parece ser isso que move o diretor. Em meio aos dramas contemporâneos e hiper-realistas tratados em seus filmes, o que salta aos olhos na obra de Loach é o enorme poder de empatia que seus personagens têm. Os corpos, as expressões e as palavras escilhidos pelo diretor para dar vida aos seus personagens têm a missão de gerarem uma identificação instantânea com o público. Para este efeito, Loach tem um método, que é utilizar as locações e os figurantes no próprio local onde a ação se pas- sa. No caso de Eu, Daniel Blake, foram utilizados atores não profissionais que traziam em sua pró- pria bagagem uma história de vida que se rela- cionava àquela do filme. E também os figurantes eram pessoas reais, e muitos deles viviam o mes- mo drama de Blake.
A empatia é, sem dúvida, um fio condutor nesse drama. Entre um desafio e outro para sobrepor os obstáculos para contornar um erro no sistema que lhe nega uma pensão (desafios muitas vezes triviais, como a utilização de um mouse), Daniel tem o impulso de intervir em favor de uma desconhecida apenas porque é o correto a ser feito. A desconhecida, no caso, é Katie, uma mãe solteira de duas crianças que se vê obrigada a mudar para aquela cidade desconhecida para ter acesso a uma moradia social. Como o sistema de habitação não tem recursos para arcar com os altos preços imobiliários em Londres, cidade de Katie, a única opção seria arrumar algo mais em conta, no norte do país. Com duas crianças e pouca familiaridade com o local, Katie acaba se atrasando para seu agendamento com o serviço social e é punida com o cancelamento de seu benefício. É nesse momento que Daniel intervém e faz uma consulta informal aos que estavam na fila perguntando se a mulher poderia passar na frente e ser atendida. Todos concordam, mas a solução não é aceita pelos funcionários que expulsam Katie e Daniel por provocarem desordem.
A partir daí, os dois desenvolvem uma relação de ajuda mútua e aos dramas somados multiplicam-se os pequenos gestos de simpatia, seja de funcionários públicos rebeldes ou eventuais transeuntes. Nesse ponto do filme nos perguntamos se as regras e burocracias criadas por um sistema de amparo social, no caso inglês, foram cuidadosamente (e cruelmente) pensadas ou se elas se distorceram por completo em algum momento de sua trajetória.
A Inglaterra e a Europa Ocidental, criaram um grande anteparo social após a 2a Guerra financiado pelo Plano Marshal americano. O intuito dessa assistência era garantir o mínimo para a população enquanto o país se reconstruía. Com as crises mundiais dos anos 1970, (re)surgiram as ideias neoliberais que pregavam uma diminuição do papel do Estado e o consequente fim dessas políticas sociais. Dos anos 1980 pra cá, houve uma distensão entre grupos pró e contra os chamados “colchões sociais" que se alternaram no poder, com o lado liberal levando alguma vantagem, sobretudo nos períodos de crise como as de 1997 e 2008. O resultado disso é que embora muitos dos benefícios tenham permanecido, os mecanismos de controle que foram criados para conter “abusos e desperdícios”, muito caros à pauta liberal, acabaram deixando muita gente à margem. É nessa zona cinzenta que transitam os personagens de Eu, Daniel Blake.
Embora a discussão sobre como o sistema social inglês pôde chegar a esse ponto seja importante, me parece mais produtivo que se busquem soluções e modelos para a justiça social. E o filme de Loach nos dá algumas pistas para essa solução. Nele, fica evidente que Katie e Daniel precisam de um amparo. No caso de Katie, está em jogo o futuro de seus filhos que farão parte da próxima geração e contribuirão para o futuro do país, enquanto Daniel pertence a uma geração que já contribuiu para o país e ainda pode contribuir, ainda que informalmente, como quando ele ajuda na manutenção da casa.
O ponto-chave do filme parece ser a resistência da humanidade dentro de cada indivíduo contra a frigidez de uma burocracia criada para “proteger” pessoas de outras pessoas. Nesse sentido, o filme de Loach é como aquela plantinha que nasce em meio ao concreto da metrópole.