Postado em 11/06/2019
João Paulo Leite Guadanucci*
Uma escadaria unindo as partes alta e baixa de um bairro, cuidada por moradores locais; um idioma falado por centenas de indígenas num vídeo de youtube; três caixas de postais antigos encontradas embaixo da cama da avó, falecida há alguns meses; o museu ferroviário da cidade; uma poesia que ninguém mais lembra direito, contando como os primeiros habitantes cozinhavam; jovens aproveitando os LPs dos pais para reinventar o hip-hop; um canhão enferrujado apontado para o mar; músicas e danças que se misturam, toda sexta-feira de lua cheia, naquela comunidade; um conjunto de edifícios modernos que um dia revolucionaram o conceito de moradia; fotos digitais salvas numa pasta desconhecida; um senhor que sabe fazer ampulhetas conforme seu avô lhe ensinara.
A memória se insinua por todo lado. Está presente nos atos cotidianos e no significado que lhes damos. Configura o mundo que habitamos e o modo como nele agimos. Tão embrenhada na textura da realidade, oferece um desafio a quem queira sobre ela refletir: como circunscrevê-la? Por quais lados abordá-la?
Trata-se de uma empreitada que varia segundo o contexto. Afinal, a memória é assunto sobre o qual se comenta desde que o ser humano percebeu que se lembrava – já não lembramos exatamente quando isso ocorreu.
Muita coisa mudou desde então. Pode-se pensar tais mudanças a partir de duas frentes: de um lado, temos as concepções que buscam explicar a relação das pessoas com os fatos que a antecederam; de outro lado, há a dimensão político-social dessa questão, indagando quais acontecimentos mereceriam ser lembrados, assim como quem faria tais escolhas. Evidentemente, essas duas facetas se interpenetram, mas é útil aproximar-se delas por partes.
A palavra memória admite vários significados, os principais se referindo à capacidade (não apenas humana) de reter algo ligado ao passado, assim como dizendo respeito aos seus desdobramentos materiais, simbólicos e sociais. É visível a conexão dessas acepções com a noção ampliada de cultura (dita “antropológica”), já que ambas revelam suas respectivas tendências ao transbordamento e sua onipresença. De qualquer modo, é importante sublinhar: a memória é pressuposto da cultura.
Conforme variaram tempo e espaço, a relação com o acontecido adquiriu usos sociais diversos. A temporalidade circular que organiza a vida de certos grupos e comunidades, mimetizando em grande medida os ciclos naturais, confere à memória um estatuto peculiar: nesses casos, as ações do dia a dia e, principalmente, os ritos e celebrações atualizam permanentemente o já-vivido, solicitando-o com uma intimidade peculiar. O mesmo não acontece na experiência contemporânea, em que determinada distância caracteriza a relação com o passado, distância essa ocupada por especialistas e diletantes, por ativistas e negociantes.
Num contexto como o atual, no qual o futuro deixou de representar a promessa de progresso contínuo e passou a sugerir panoramas bem mais inquietantes – o colapso ecológico é sua faceta mais contundente –, é coerente que se olhe “para trás” com avidez, como se lá tivessem sido depositadas certas lições que desaprendemos. Indivíduos e coletividades perguntam-se sobre seu passado e seus antecedentes, empresas e entidades criam estratégias de preservação de suas respectivas histórias, inseridos numa voga que inclui agentes relevantes, como o turismo, a publicidade e a moda. Pensar a memória hoje é lidar com essa situação, marcada por excessos e carências.
O Sesc, assim como outras instituições socioculturais, está inserido em tal contexto e realiza suas ações no campo da memória levando-o em consideração. Ao longo de sua existência, é visível o incremento da atuação nesse domínio – o que dialoga, em certo grau, com as movimentações ocorridas dentro e fora do país.
Alguns marcos ajudam a compreender essa trajetória, como a requalificação de uma fábrica de geladeiras e tambores para se transformar, em 1982, num centro de lazer e convivência, o Sesc Pompeia. A decisão de restaurar e preservar a arquitetura fabril, numa época em que o zelo pelo patrimônio edificado se restringia aos símbolos do poder político ou religioso, indicou o reconhecimento de que a memória constitui um campo múltiplo, construído e reelaborado por instâncias variadas da sociedade. A chancela oficial, na forma de tombamento, viria bem mais tarde: em 2004 na esfera municipal, em 2014 na federal. Outra construção tombada atualmente sob a gestão do Sesc no Estado de São Paulo é o conjunto de armazéns criado no começo do século XX pela Companhia Ultramarina de Desenvolvimento do Japão, KKKK (Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha), adaptado para abrigar desde 2016 o Sesc Registro, na maior cidade do Vale do Ribeira.
Outro aspecto que revela a importância conferida à memória foi a constituição de acervos a partir de estratégias diversas, como é o caso do Acervo Sesc de Arte Brasileira – coleção de obras de arte brasileira incorporadas sistematicamente desde a década de 1970, acessíveis aos públicos em todas as unidades – e o mobiliário elaborado especificamente para os espaços do Sesc, concebidos por designers e arquitetos importantes da história cultural brasileira.
Em 2006, a preservação da memória institucional ganha um impulso fundamental: o surgimento do Sesc Memórias, programa encarregado do recolhimento, tratamento, catalogação, guarda, digitalização e disponibilização para pesquisa de documentos relativos às ações do Sesc desde sua fundação, em 1946. Trabalhando com itens cuja diversidade testemunha a polivalência das atividades – fotografias, materiais gráficos, conteúdos audiovisuais em múltiplos suportes, peças tridimensionais e entrevistas – o Sesc Memórias aproximou-se de especialistas para construir metodologias adequadas a um acervo tão peculiar. Atualmente, subsidia pesquisas realizadas por funcionários da entidade, por pessoas ligadas ao universo acadêmico, por veículos de comunicação e pela sociedade em geral.
Além de edificações e acervos, o cuidado institucional com o patrimônio reflete-se no âmbito natural. Uma das áreas do Sesc Bertioga constitui uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), espaço no qual se articulam preservação do meio ambiente e mediação socioeducativa, com especial atenção para a questão da acessibilidade. Além disso, duas unidades – Sesc Interlagos e Sesc Itaquera – estão localizadas em áreas de proteção ambiental, construindo importantes áreas verdes para atividades de lazer e educação permanente.
Paralelamente ao cuidado com a memória materializada, o Sesc desenvolve uma frente de ação complementar: trata-se de iniciativas de caráter educativo que têm como foco a memória e o patrimônio. Cursos, oficinas e seminários abordam a educação patrimonial e a museologia social, bem como um amplo espectro de questões ligadas a expressões identitárias e tradicionais, estimulando os públicos a refletir sobre as construções de narrativas levadas a cabos por grupos sociais os mais diversos. Tal empenho ganha maior alcance com a publicação de livros e a produção de material audiovisual dedicado ao assunto.
Em todos esses casos, tão importante quanto jogar luz sobre modos de vida plurais, com especial cuidado para aqueles menos visibilizados, é situar os debates e reflexões na perspectiva da cidadania. Isso significa a reiteração de que, dentre os direitos culturais, destaca-se o direito à memória; isso inclui não apenas o acesso às memórias dos estratos que compõem a sociedade, como principalmente a possibilidade de que cada cidadão ou grupo tenha garantido o reconhecimento, preservação e promoção de suas narrativas sobre o passado.
Afinal, a memória serve ao presente – essa condição é cada vez melhor compreendida, o que explica em grande medida a relevância que ela adquiriu para além de círculos especializados. Os interesses pessoais e coletivos que dela se apropriam determinam seus usos, por vezes inclusivos, mas que não raro reforçam situações de desigualdade e vulnerabilidade.
Cabe àqueles comprometidos com pautas de interesse público envolverem-se nessas dinâmicas, aproximando o tema da memória de uma perspectiva justa e democrática.
*Mestre em História da Arte, bacharel em Filosofia e assistente técnico da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo