Postado em 31/07/2019
MUSEUS E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: UM BREVE ENSAIO
Marilia Bonas1
1 Marilia Bonas é mestre em Museologia Social pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa. Atualmente, coordena o Memorial da Resistência de São Paulo, é uma das diretoras do ICOM Brasil e professora do Curso Técnico de Museologia da ETEC Parque da Juventude. mariliabonas@gmail.com
Nunca museus e direitos humanos foram tão citados na mesma frase quanto no atual cenário político brasileiro. Desde as manifestações contrárias à exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"2
2 A exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", com curadoria de Gaudêncio Fidelis e obras de artistas brasileiros de renome como Alfredo Volpi, Farnese de Andrade, Lygia Clark e Adriana Varejão, foi inaugurada no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 15 de agosto de 2017. Seu polêmico encerramento após um mês de abertura, em 10 de setembro de 2017, se deu em função da pressão popular articulada por grupos conservadores, que acusaram a curadoria e os artistas de fazerem apologia à pedofilia, zoofilia e desrespeitar ícones religiosos. , a liberdade dos museus brasileiros, na abordagem de temas sensíveis ou traumáticos, tem sido alvo de ataques e censura. O episódio traduz-se num incômodo que nasce, por um lado, da incompreensão de seu papel na sociedade – que não é somente o de mostrar o belo e o consensual – e, por outro, da constatação, por determinados grupos, de sua potência de desconstrução de narrativas violentas e preconceituosas. Ainda que pareça recente ao grande público brasileiro, a relação entre museus e direitos humanos é indissociável desde o pós-guerra quando, no bojo da publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da constituição das Organizações das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)3
3 A fundação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura se deu em novembro de 1945 em uma reunião em Londres, com a presença de 44 países das Nações Unidas. A UNESCO tem como objetivo a construção da paz por meio da cooperação internacional em Educação, Ciências e Cultura. http://www. unesco.org/new/index.php?id=137297&L=7 , as políticas de memória passam a ser ferramentas fundamentais na luta contra a barbárie.
A fundação do Conselho Internacional de Museus4
4 O Conselho Internacional de Museus, com sede em Paris, foi criado em 1946 para promover os interesses da museologia e das disciplinas relacionadas a ela. É uma associação profissional sem fins lucrativos, financiada predominantemente pela contribuição de seus membros, por atividades que desenvolve e pelo patrocínio de organizações públicas e privadas. (ICOM), em 1946, firmou um compromisso destas instituições e seus profissionais perante a sociedade, potencializado pelo seminário "Sobre o papel dos museus na 48
Educação"5
5 O seminário "Sobre o papel dos museus na Educação" foi o primeiro grande evento organizado pelo UNESCO sobre o tema e é considerado um marco do compromisso entre as duas áreas. Realizado em Nova York em 1952, contou com a participação de museólogos e educadores de 25 países; , organizado pela Unesco em Nova York, em 1952, bem como pelo histórico seminário regional6
6 Tendo como tema a "Função Educativa dos Museus", o seminário regional da UNESCO, realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de 07 a 30 de setembro de 1958 reuniu diversos representantes da América Latina e firmou, de maneira colaborativa, compromissos de engajamento e de desenvolvimento de políticas públicas na área. realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1958, com participantes de toda a América Latina. A contribuição latinoamericana, em especial brasileira, nessa aliança indelével entre museus e direitos humanos tem na Declaração de Santiago do Chile7
7 PRIMO, Judite. Museologia e Patrimônio: Documentos Fundamentais – Organização e Apresentação. Cadernos de Sociomuseologia/ nº 15, Declaração de Santiago (1972) Págs.95-104; ULHT, 1999; Lisboa, Portugal. Tradução: Marcelo M. Araújo e Maria Cristina Bruno. Disponível em https://www.revistamuseu.com.br/site/ br/legislacao/museologia/3-1972-icom-mesa-redonda-de-santiago-do-chile.html, acessado em 29/03/2019. , de 1972, o seu mais potente documento até os dias de hoje. Resultado de mesa redonda convocada pelo ICOM/Unesco no auge das ditaduras latinoamericanas, a Declaração diz:
(...) que o museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando outras mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais8
8 PRIMO, Judite, op.cit, pág. 112-113. .
Fortemente influenciada pelos escritos de Paulo Freire9
9 Paulo Reglus Neves Freire (Recife, 19 de setembro de 1921 — São Paulo, 2 de maio de 1997) é considerado um dos mais notáveis pensadores da história da pedagogia no mundo. Educador, pedagogo e filósofo, é autor de "Pedagogia do Oprimido", escrito em 1968 quando de seu exílio no Chile, publicado no Brasil somente em 1974. – que, exilado em Genebra, não pôde comparecer ao encontro sob o risco de ser novamente preso – a Declaração de Santiago (1972) cunha também a noção de museu integral, que alia o patrimônio natural e cultural em prol do desenvolvimento de uma sociedade mais próspera e feliz. O texto também traz a particularidade do papel dos museus no contexto latinoamericano, considerando o fato de que regionalmente tais instituições cumprem funções outras que as de países mais desenvolvidos. Por essas funções outras, sob governos autoritários, entende-se, nesse momento histórico, o espaço para o exercício da cidadania e a luta por direitos a partir da relação com seu patrimônio. 49
Da Declaração de Santiago (1972) aos dias de hoje, muito se produziu e agiu na área museológica no Brasil e no mundo na luta associada aos direitos humanos, com inúmeros e bem-sucedidos desdobramentos. Os museus saíram de suas posições de templos sagrados e inacessíveis ao grande público a hubs potentes de discussão de grandes e pequenas questões que perpassam a luta por uma sociedade mais justa e democrática, em toda sua complexidade e suas desigualdades. No entanto, se a universalidade dos direitos humanos foi plenamente reconhecida e acolhida a partir de 1948, num mundo habitado por sobreviventes e testemunhas da barbárie. Atualmente, 71 anos depois, o uso da expressão direitos humanos perpassa disputas políticas em todo o mundo e assistimos – em todas as telas - ao ressurgimento de discursos que relativizam a necessidade mínima do reconhecimento do outro como igual.
O Brasil, país fundamental na teoria e prática museológica há mais de 60 anos, viu, em especial nos 15 últimos anos, o florescer de parte expressiva de seus museus. Entretanto, o desenvolvimento inédito de políticas públicas para a área, a afluência de recursos, a crescente profissionalização, as grandes empreitadas de recuperação de instituições e tratamento de acervos, as exposições para todos os gostos, programas e projetos educativos pioneiros no mundo e, por tabela, o aumento expressivo de seu alcance e importância na sociedade, não foram conquistas suficientes para tirar os museus brasileiros da linha de risco e, em muitos casos, de extinção. Os museus brasileiros estão hoje ameaçados pelo que podemos chamar de uma criminalização moral do investimento público em todo e qualquer capital simbólico que tenha lastro e resultado na produção de conhecimento e cultura pautados na diversidade e na luta por uma sociedade mais equânime. No entanto, para todos os profissionais da área, públicos beneficiados e interessados, na luta pelos museus não cabe recuo.
Todos os museus são museus de direitos humanos, na medida em que são lugares onde o homem encontra a si mesmo e à humanidade por meio de objetos, vetores materiais ou não. Estes lugares privilegiados devotados à sociedade e ao que ela produz, sob os mais diversos arranjos, tratam necessariamente de direitos: o direito à memória, à identidade em toda sua potência e diversidade, à dignidade, à educação, ao trabalho, à moradia, à liberdade, ao direito à migração, ao lazer. Assim, nos museus de hoje não há mais espaço pacificado para narrativas hegemônicas e colonialistas, dinâmicas puramente elitistas, instituições centradas em si mesmas e círculos restritos, coleções inalcançáveis ao grande público, decisões autoritárias nas práticas museológicas e sujeição absoluta a ditames de mercado. Não há, também, retrocesso pacífico em direitos arduamente – ainda que não plenamente - conquistados e reconquistados de ser quem quiser, orgulhar-se de suas origens e legado (ainda que 50
marcados pela violência), amar, morar, trabalhar e envelhecer dignamente, sem ameaças e com liberdade, no território que decidir ocupar. Se a ameaça de perda de privilégios é a razão dos retrocessos que o mundo e o Brasil vivem, a luta histórica dos museus e dos direitos humanos, forjada à ferro e sangue, continua e continuará em toda sua potência e capacidade de reinvenção.