Postado em 31/07/2019
Arquiteta e urbanista reflete sobre moradia, mobilidade e desafios das metrópoles
Foto: Leila Fugii
Nascida em Santa Ernestina, cidade paulista próxima a Araraquara, Ermínia Maricato foi atrás de seus sonhos. Chegou a estudar química industrial no segundo grau e a iniciar a faculdade de Física na Universidade de São Paulo. Foi mesmo na USP que ela se encontrou, mas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em 1967. Desde então, a doutora e professora titular aposentada da FAU-USP não se esquiva de reflexões e ações como urbanista, nem de tarefas e responsabilidades como cidadã. Já coordenou projetos e instâncias governamentais, como a Secretaria Executiva do Ministério das Cidades e a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do município de São Paulo. Recentemente, exerceu o cargo de conselheira do Habitat, no programa das Nações Unidas para assentamentos humanos. Com toda essa experiência e um fôlego invejável que a conduz por viagens Brasil afora, Ermínia continua investigando como a sociedade se organiza e de que forma a questão da moradia ressoa no século 21.
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Questão de moradia
Se pegarmos o mapa da região metropolitana da cidade de São Paulo, que partes mais crescem? As áreas de proteção ambiental. A Cantareira, ao norte, e a área de proteção dos mananciais, ao sul. Hoje temos dois milhões de pessoas morando em áreas de proteção ambiental de mananciais. Elas estão lá porque não têm alternativa. Não é que sejam contra a legislação ambiental, nem são criminosas. Mas essa população, quando veio para as cidades, não encontrou alternativas – nem do Estado, nem do mercado. E ninguém vive sem moradia. Agora, e se você não tem alternativa? Em São Paulo, por exemplo, temos estudos que apontam que um quinto da população do município está nessa situação. E quando a gente fala em favelas tem quem ache que estamos falando de um apêndice, mas elas são parte da história das cidades brasileiras. Por que isso não tem visibilidade?
Locação social
Quando dois milhões de pessoas ocupam os mananciais, não vemos comoção em manchete de jornal, mas, quando um movimento social ocupa um prédio vazio, ocioso, que deve milhões de imposto, no centro da cidade, há uma comoção e eles são criminalizados: “Estão invadindo propriedade alheia”. Mas há contradições que cercam a propriedade de terra e dos imóveis neste país. E estou falando de desenvolvimento urbano. É racional para os recursos econômicos e ambientais trazer a ocupação popular para o centro de São Paulo, fazer uma readequação dos imóveis vazios, pois são inúmeros imóveis abandonados. E a população que está na 9 de Julho e em outras ocupações tem clareza disso. Ela tem o pensamento de não estar usurpando nada: “Isso aqui é mais interessante para a coletividade e não só para a gente”. Além disso, essa população da região central está sendo assessorada por arquitetos competentes do ponto de vista técnico, porque não é qualquer arquiteto que entra numa ocupação e sabe fazer um projeto de segurança contra incêndio, por exemplo. Esses moradores já estão, inclusive, conversando com as autoridades para que eles possam pagar a reforma do prédio, que é da União. Mas não está se falando em casa própria, e sim na possibilidade de locação social [que oferta unidades habitacionais a valores acessíveis de aluguel para o atendimento prioritário da população de baixa renda]. Temos que trabalhar com soluções e de uma forma muito mais criativa, técnica e com dados científicos.
Mobilidade ativa
As cidades todas por onde tenho viajado, de porte médio, negam a mobilidade ativa [forma de mobilidade que faz uso unicamente de meios físicos do ser humano para a locomoção]. Em Campina Grande, nunca me esqueço, tinha um prédio de 30 andares no meio do nada. Imagina morar numa cidade onde você precisa pegar um carro para ir à padaria. Qual a lógica de a construção estar num lugar onde não há comércio? Conversando com algumas colegas a respeito, essa é minha pergunta. Estou impressionada com a combinação de uma verticalização exagerada – em cidades como Goiânia, Palmas, João Pessoa estão sendo construídos prédios de 50 andares –, com uma dispersão exagerada. Essa é uma característica dos subúrbios americanos e que mata a viagem a pé.
Pela sociedade
Dei aula na USP por 40 anos, criei o Ministério das Cidades, mas hoje estou aprendendo muito viajando pelo Brasil, pois nosso país é desconhecido por nós. Também decidi trabalhar pela sociedade civil. Acho que precisamos de uma sociedade civil menos manipulada. E não estou sozinha. As universidades estão saindo a campo. Estou andando pelo país e falando com muitos estudantes que querem discutir as cidades e participar disso. Acho que temos que ter a generosidade de abrir espaço e entregar o bastão [para esses jovens]. É hora também de a gente mergulhar na realidade e trabalhar com os intérpretes do Brasil: Florestan Fernandes, Antonio Candido, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda e Roberto Schwarz. Por exemplo, o negro na sociedade paulistana foi estudado pelo Florestan Fernandes na década de 1950. Se a gente tivesse levado isso para a frente, a situação do negro na cidade poderia ser diferente. Mas temos toda hora um mecanismo que nos aliena. Sei que a saída não é de curto prazo, mas temos que nos munir de esperança, certeza e paciência.
Sei que a saída não é de curto prazo, mas temos que nos munir de esperança, certeza e paciência
Ermínia Maricato
esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 13 de junho de 2019.