Postado em 14/06/2019
A EOnline bateu um papo com a Ialê Cardoso, Coordenadora do Núcleo Educativo do Museu do Futebol, o primeiro museu do Brasil que foi planejado para ser totalmente acessível, desde sua concepção, num momento em que se pensava principalmente em acessibilidade arquitetônica. Um museu que já é inaugurado com muitas das conquistas que hoje são obrigatórias por lei e nasce com um programa de acessibilidade, o PAMF.
O Museu está localizado no avesso das arquibancadas do Estádio do Pacaembu. Sim, é isso que você ouviu. É possível tocar as arquibancadas por baixo, sentir o teto tremer em dia de jogo. O calor da sala não climatizada muda. O cheiro nos dias pós-jogo também. A exposição principal, distribuída em 15 salas temáticas, narra de forma lúdica e interativa como o futebol chegou ao Brasil e se tornou parte da nossa história e nossa cultura.
Foto: Michelle Magrini
A acessibilidade socioeconômica é garantida no Museu do Futebol pela isenção do valor do ingresso para pessoas com deficiência, estendida a um acompanhante e pela política de gratuidade, uma vez por semana para todos. A acessibilidade arquitetônica é exemplar, contando com piso tátil, totens explicativos em português, inglês, espanhol e braile, recursos táteis pensados para pessoas cegas ou com baixa visão e uma maquete tátil, não só do Museu, mas do complexo do Pacaembu e seu entorno. Possui plataforma adaptada, a princípio pensada para cadeirantes, mas que se mostrou útil também para idosos e pessoas com carrinho de bebê. E conta ainda com áudio-guia narrado pelo percurso do piso tátil, gravado pelo Hélio Ziskind (compositor de jingles como os da Ultragaz e da Johnson & Johnson e de canções para programas de TV como Cocoricó e Castelo Rá Tim Bum), enfatizando a importância da descrição poética, que além de situar localmente, traz também subjetividade, por exemplo, ao descrever o estádio de futebol como um prato de sopa de ervilhas fumegante.
“Quando divulgamos a acessibilidade estamos convidando essas pessoas. E quando elas chegam, a barreira física, a acessibilidade física está resolvida, mas qual a barreira que ainda existe? A atitudinal e comportamental” conta a Ialê. E ela não existe só por preconceito, mas por falta de convivência, segundo ela.
Na tentativa de transpor isso o Museu testou com a equipe do educativo uma série de experiências, como conduzir uns aos outros vendados pelo Museu. Mas estando em um espaço tão familiar começaram a perceber que aquilo funcionava até certo ponto, aquilo era falar pelo outro. Caiu uma ficha: a acessibilidade precisa ser construída COM o outro e não PARA o outro. Amanda Tojal, Consultora em Acessibilidade e Ação Educativa Inclusiva, diz algo parecido no documentário sobre o Projeto “Deficiente Residente”:
“É muito interessante esse caminhar dos museus, desde a década de 90, começa com os museus, o Museu de Arte Contemporânea da USP, depois vai passando para a Pinacoteca, o Museu de Arte Moderna de São Paulo também começa a trabalhar [a acessibilidade] e as coisas vão se ampliando, o público vai gostando de perceber que tem um espaço para ele e todos nós começamos, os educadores de museus, principalmente a área educativa, começamos então a se esforçar e se integrar. E uma coisa muito legal que aconteceu é que nós começamos a compartilhar nossas experiências. E, mais do que isso, nós começamos a perceber que as pessoas com deficiência também tinham que participar dessa construção, ‘nada por nós sem nós’ é a famosa frase usada por eles”
O Projeto Deficiente Residente nasce então em 2010, como meio de lidar com as dificuldades, medos e resistências da equipe perante à pessoa com deficiência. E como resposta a esse entendimento de que é preciso pensar com eles e não para eles. Residência em sua definição está relacionada com conviver. Ancorado nessa premissa o projeto implementou mudanças técnicas – por exemplo, o braile no totem era em uma altura que não atendia crianças cegas ou cadeirantes cegos, e também, era em uma posição vertical, quando o ideal seria em uma inclinação como a de um teclado; o áudio-guia, era um aparelho grande, pesado e de difícil manuseio dos botões para quem não enxerga – mas, principalmente, promoveu mudanças atitudinais no educativo diante do público.
Uma situação icônica foi a tentativa de transpor a jogada futebolística “gol de bicicleta” para que pessoas que nunca enxergaram pudessem entender aquele movimento. Naquele momento a tentativa do educador foi sentar o Chico, residente cego daquela fase, e mover sua perna simulando a jogada. O Chico deu risada e exclamou: Legal! Mas que tal se o museu tivesse um calunga articulado?!
Foto: Michelle Magrini
Pensar junto requer experimentar, testar. Por exemplo, as mesas de pebolim estão com os jogadores em diversos esquemas táticos. Antes elas eram fechadas com tampos de vidro. Isso segregava uma parcela do público, os deficientes visuais. Como se mostra esquema tático no pebolim com a mesa fechada com um tampo de vidro? Então, a pedido de outro residente, todos os tampos de vidros foram retirados e agora as pessoas podem tocar os jogadores nas diversas formações táticas.
Em um segundo momento o projeto escolheu trabalhar com deficiências que não são aparentes e que às vezes quem trabalha com público só se dá conta dela quando já está no meio do atendimento, por exemplo, deficiências intelectuais específicas como os transtornos do espectro do autismo e a síndrome de asperger. Como transpor dificuldades de comunicar conceitos como passado e presente, temas tão comuns em museus?
Um princípio do Museu do Futebol é pensar que acessibilidade é para todos. Então todos os recursos de acessibilidade não devem segregar. Eles não são usados só para pessoas que têm deficiência. “Eles são abertos pra todos. A maquete tátil, em vário museus é fechada, só acessível para pessoas cegas”, diz Ialê, “porque de fato, ela custa muito caro, e uma usabilidade maior implica em aumentar o custo de manutenção”. Mas o Museu do Futebol prefere deixar ela aberta à todos e mediar a relação com o público não deficiente, promovendo empatia através desse recurso e da ação educativa. “O projeto foi tão lindo, tão transformador, que o nosso ‘não público’ passou a ser nosso público. Nossa equipe, que tinha barreiras atitudinais, passou a ser referência no Brasil em acessibilidade” encerra ela.
E você? Já visitou o Museu do Futebol?
Foto: Michelle Magrini
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