Postado em 01/11/2001
Duas das maiores expressões do ser humano, arte e esporte, aparecem juntas na exposição itinerante The Overexcited Body. Performances, instalações, fotos, vídeos, áudios e até videogames auxiliam na reflexão sobre a relação do homem com o corpo
Uma análise sobre o esporte pode ser conduzida por muitos vieses. Há o aspecto sociológico, que informa sobre sua integração nos vincos sociais; o aspecto da educação física, que trata da saúde; o âmbito econômico, que se refere aos negócios; podemos também aludir à política do esporte, à sua plasticidade, ao seu caráter antropológico. Enfim, o esporte, como uma produção do engenho humano, reflete todas as idiossincrasias da vida comum - é um espelho do mundo, no sentido de que reproduz os dramas e as alegrias da existência do homem no planeta.
Outra reflexão sobre o mundo esportivo, que considera suas raízes mais recônditas, diz respeito ao ponto fundamental da prática esportiva - inexoravelmente ligado à competição. Explica-se: na origem mais imberbe do esporte, encontra-se seu elemento fundador no antagonismo. Daí deriva uma lógica inextricável: o confronto entre rivais pontua as manifestações esportivas. É essa contradição essencial - ebulição de uma força dinâmica, que coloca frente a frente luta e paz, estratégia e movimento, silêncio e ruído - que está retratada na exposição The Overexcited Body, em cartaz no Sesc Pompéia até 2 de dezembro. Na mostra, são exibidas obras de artistas brasileiros e estrangeiros, cujo mote, claro, é o esporte, materializado em seus diversos matizes.
De acordo com a curadora do evento, Adelina von Fürstenberg, que encabeça a ONG Art for The World, o germe da exposição nasceu em 1997, quando ela organizou a exposição Limites da Consciência, também no Sesc Pompéia. "Foi a concepção do Sesc, unindo aspectos culturais e esportivos na sua base de trabalho, que me levou a pensar numa mostra como essa. Assim, The Overexcited Body não tem um objetivo específico, tem apenas uma razão de existir." A curadora convidou artistas cujas trajetórias são envolvidas com o esporte, de uma forma ou de outra. "São artistas que gostam de esporte e que já o retrataram em seus trabalhos. Quando os convidei para expor, não divisei o que cada um faria, deixei-os criar livremente sobre o tema geral. Na verdade, cada trabalho é uma reflexão individual sobre o esporte."
Dessa maneira, a exposição em si tornou-se uma arena de encontros, na qual as questões cruciais acerca do paradoxo inserido nas práticas esportivas são debatidas com o público. Como a exposição é itinerante, tendo sido inaugurada em Milão, com passagens previstas por Genebra e Nova York, Adelina ressalta a importância de privilegiar aspectos locais na concepção da mostra e dos eventos paralelos que a acompanham. "Na Itália, utilizamos o grande velódromo municipal, pois os milaneses são fanáticos por ciclismo. No Brasil, claro, a paixão é o futebol, assim, procuramos dar destaque a esse esporte e aos futebolistas." Na inauguração do evento, mês passado, a presença do ex-jogador Sócrates, um concerto com Elza Soares e a distribuição de máscaras do célebre Garrincha tingiram a exposição com tintas locais.
Paradoxo na arena
Se não existe um objetivo específico determinado, o resultado material da exposição, representado pela produção multimídia à mostra no Sesc Pompéia, com performances, instalações, fotos, vídeos, áudios e até videogames, encontra eco em uma ampla pensata, que avaliou os usos estéticos do esporte ao longo do tempo, bem como sua apropriação pelas diversas áreas do conhecimento.
O artista plástico Joseph Kossuth criou um pôster e uma camiseta inspirados nos valores anti-racistas do esporte. Intitulado I Am We (Eu Sou Nós), o trabalho exprime a sua opinião sobre um elemento que ele considera a "ponte que une diferentes comunidades culturais". "O esporte tem o poder de viabilizar o diálogo. Antes das pessoas negociarem acordos financeiros ou apreciações políticas, há outro negócio em um nível mais popular, que se desenrola nos campos, nas quadras e nas pistas", afirma o artista americano. Já o suíço John Armleder, conhecido por desestabilizar a relação entre obra de arte e espaço de exposição, criou a Skate Board Ramp, uma rampa de skate que pode ser usada livremente por patinadores e amantes da modalidade, estabelecendo assim uma relação direta entre a cultura por excelência e a cultura de rua. "Existe uma ligação muito antiga entre esporte e arte na minha vida", explica. "Por outro lado, nunca produzi trabalho de ocasião para obedecer a um tema específico de uma exposição." Armleder completa dizendo que, em alguns casos, seus trabalhos "servem" ao propósito da curadora. "Foi isso que aconteceu neste caso. Eu tinha realizado essa obra com uma esteira rolante em 1980 e, para expô-la, acrescentei alguns elementos. Eu nunca dou explicações sobre o significado das minhas obras, deixo para as pessoas interpretarem."
Já obras como a do mexicano Carlos Morales (três lutadores de luta livre mascarados que se enfrentam no teatro do Sesc Pompéia) e a instalação Iron Heavens, do jamaicano Nari Ward (bastões de beisebol queimados, recolhidos em guetos nova-iorquinos), atribulam espíritos inauditos, atrelados ainda à lição simplória, porém louvável, do Barão de Cobertin, que um dia alardeou que o importante é competir.
Verde-amarelo
Os artistas brasileiros presentes no evento preferiram ressaltar os elementos de fusion, tão caros à nossa cultura. Salvo Hélio Oiticica, homenageado, in memorian, com sua célebre Sala de Sinuca, obra apresentada em 1966 para a mostra Opinião 66, na qual ele recria as cores e as atmosferas da obra-prima de Van Gogh O Café Noturno, os outros artistas da terra lançam mão dos aspectos esportivos arraigados na vida do brasileiro.
Lenora de Barros e Cid Campos exibem a obra (Des)Encorpa - O Corpo Não Mente, 2001, peça que reúne texto, música e "samples". Regina Silveira, com sua série Dilatável, apresenta pequenas imagens de militares, políticos, executivos e jogadores de futebol com grandes sombras projetadas e distorcidas pela ação da perspectiva. Em Transferência, de Michel Groisman, a chama de uma vela é transportada de uma vela para outra com movimentos cuidadosos e equipamentos adaptados às pernas, braços e cabeça do artista. Mas, talvez, o exemplo mais pungente fique a cargo de Nelson Leirner, que ornou um campo de futebol de botão e seus arredores com uma pluralidade de bonecos de gesso e plástico, adquiridos em lojas populares. A manifestação é composta de mais de 3.000 índios, Mickeys, São Jorges, macacos, fadinhas, pretos-velhos, Super-Homens, Nossas Senhoras e uma plêiade de peças dos mais variados tamanhos, dispostas aleatoriamente. "Não há nenhuma pretensão especial por trás dessa manifestação, apenas o desejo de fazer com que as pessoas se identifiquem com essa grande mistura que, no fundo, caracteriza o nosso país", conclui Leirner.
Mostra itinerante |