Postado em 13/05/2019
Apagamento Histórico
Por que conhecemos George Méliès e não nos lembramos de Alice Guy-Blaché? A cineasta francesa dirigiu um dos primeiros filmes de ficção com elenco teatral, ainda em 1896, o curta La Fee Aux Choux (A Fada dos Repolhos) e seguiu como uma das mais prolíficas cineastas do início do século 20. Em seu país natal realizou diversos filmes, como o satírico Les Résultats du Féminisme (As Consequências do Feminismo), de 1906, no qual homens e mulheres têm seus papéis sociais invertidos, e o grandioso La Vie du Christ (A vida de Cristo), do mesmo ano, uma das maiores produções do período, com centenas de figurantes e efeitos visuais. Após mudar-se para os Estados Unidos, Guy-Blaché foi a primeira mulher a comandar um estúdio de cinema - a Solax Company, anterior ao surgimento de Holywood, e seguiu pioneira ao dirigir em 1912 A Fool and His Money (Um Tolo e seu Dinheiro), o primeiro filme de que se tem notícia com atores negros no elenco, em uma época na qual o recurso da blackface ainda era largamente utilizado.
Alice Guy-Blaché é tão importante para o desenvolvimento da linguagem do cinema quanto George Méliès, mas muito menos conhecida. O apagamento histórico de seu trabalho removeu também dos livros de história do audiovisual, ou relegou às notas de rodapé, cineastas como Germaine Dulac, Olga Preobrazhenskaya, Cleo de Verberena e tantas outras. Conhecemos os irmãos Lumière, Dziga Vertov e Humberto Mauro, mas pouco sabemos sobre essas cineastas pioneiras. Muitos de seus filmes se perderam e poucas são as informações sobre suas trajetórias.
O resgate do trabalho dessas mulheres, assim como o de tantas outras, é uma reparação histórica fundamental para que as próximas gerações conheçam uma versão mais equitativa da história do cinema, para entendermos nosso presente e buscarmos melhorias para o futuro do audiovisual. Segundo dados da Agência Nacional de Cinema - ANCINE, publicados em 2018, as mulheres dirigiram apenas 19,7% dos filmes lançados em 2016 no Brasil; homens negros dirigiram apenas 2% desses filmes e nenhuma mulher negra assinou a direção de um filme. Sobre esse último dado, apenas dois longa-metragens dirigidos por mulheres negras foram lançados comercialmente no país - Amor Maldito (1984), de Adélia Sampaio, e Café com Canela (2018), de Ary Rosa e Glenda Nicácio. A ANCINE informa ainda que a participação de mulheres na direção dos filmes lançados comercialmente no Brasil a cada ano é de cerca de 15%.
Representação e Representatividade
Não apenas atrás das câmeras mulheres estão subrepresentadas. A investigação sobre o impacto da representação de gênero no cinema e na televisão brasileira, divulgado em 2016 pelo Geena Davis Institute on Gender in Media, comprova que as mulheres geralmente são representadas através de estereótipos de gênero e têm os corpos objetificados. Segundo a pesquisa, 73% dos brasileiros acreditam que filmes e programas de TV mostram as mulheres de maneira excessivamente sexualizada e mais da metade dos brasileiros acredita que os filmes e a TV incentivam o desrespeito e o assédio a mulheres.
Em 1987, a cartunista americana Alison Bechdel produzia uma tirinha chamada Dykes To Watch Out For (em tradução livre, Sapatonas Com Quem se Preocupar). Foi nela que Bechdel introduziu a ideia que se tornou base para um teste que leva seu nome. Na tirinha, uma personagem diz que só assiste filmes que atendam aos seguintes critérios:
1. Tenham ao menos duas personagens femininas;
2. Que estas personagens conversem entre si em alguma cena;
3. Que a conversa entre elas não trate sobre homens ou relacionamentos amorosos.
Mais de 30 anos depois, o teste de Bechdel se tornou uma ferramenta importante para demonstrar como, mesmo no século 21, mulheres seguem subrepresentadas.
Diversos filmes canônicos não foram aprovados no teste de Bechdel e muitos lançamentos contemporâneos também não conseguem fazê-lo: de Um Corpo que Cai a O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos, passando por De volta para o Futuro, Forrest Gump, e diversos episódios da saga Star Wars. Em todos esses filmes a complexidade feminina não é retratada de maneira semelhante à das personagens masculinas.
É importante deixar claro que o teste de Bechdel não avalia a qualidade do filme, apenas mensura o roteiro, propondo uma reflexão sobre a relevância e a independência das personagens femininas. E mesmo as regras do teste podem ter falhas, por isso não devem ser a única ferramenta de análise sobre a representação das mulheres em uma obra. Por exemplo, Sex and the City 2 é aprovado no teste, mas em sua trama há elementos que estimulam a rivalidade feminina e contém diversos estereótipos machistas em sua narrativa, como piadas acerca do peso de uma das personagens.
Além das personagens estereotipadas e apresentadas de modo menos complexo que as figuras masculinas, atrizes ainda protagonizam menos filmes que atores, e encaram escassez de papéis para mulheres acima dos 40 anos. Segundo a Women and Hollywood, em termos quantitativos, as mulheres foram protagonistas em somente 24% dos filmes lançados comercialmente nos Estados Unidos no ano de 2018. Alguns anos antes, um amplo estudo do Center for the Study of Women in Television and Film da Universidade Estadual de San Diego, analisou o gênero e a idade dos personagens nos 100 maiores lançamentos de 2015 nos Estados Unidos, dos cerca de 2.500 personagens avaliados apenas 20% do total eram mulheres com mais de 40 anos, e o percentual era ainda menor para mulheres com mais 50 anos - apenas 9%, enquanto os homens da mesma faixa etária representavam cerca de 17%.
Nos últimos anos, consolidaram-se diversas iniciativas centradas no aumento de oportunidades e melhoria das condições de trabalho para mulheres no setor audiovisual. Atrizes de Hollywood saíram em campanha por salários iguais, expondo publicamente a disparidade salarial entre homens e mulheres. O movimento Me Too, focado no combate ao assédio sexual e a agressão sexual, descortinou abusos de diversos profissionais e encontrou eco em muitas partes do mundo. No Brasil diversos coletivos de mulheres surgiram nos últimos anos, como o Coletivo das Diretoras de Fotografia do Brasil - DAFB, o Coletivo Vermelha, o Coletivo Elviras, dentre muitos outros, atuando em diversas frentes.
Os desafios para a construção de um audiovisual mais equitativo são muitos, mas passam invariavelmente pela superação da sub-representação nas telas, atrás das câmeras e na formação de plateias, não só em relação ao gênero, mas também à raça, pessoas com deficiência, LGBTQ+, crenças religiosas e tantos outros.
Em maio, o Sesc Avenida Paulista recebe o ciclo Atrizes Criadoras, que se debruça sobre a atriz criadora no cinema, propondo um mergulho histórico e conceitual nos desdobramentos dessa figura sob uma perspectiva de gênero.
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Por Felipe Diniz, formado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Atua como técnico de programação em Cinema e Vídeo do Sesc Avenida Paulista.