A folha em branco foi entregue. No ambiente, o som de chocalhos e outros instrumentos fizeram-me passear pelas minhas mais profundas emoções. Quando vi, a folha já estava toda escrita. Não havia uma coerência, nada lógico, apenas o que estava dentro de mim, de forma atemporal e desencadeada. Pensei, será que era pra fazer isso mesmo?! Foi quando descobri que não precisava ter sentido, precisava apenas ser escrito.
Essa experiência foi durante a oficina “Escrita curativa: Da pele ao papel”. Para escrever sobre a atividade resolvi participar e compreender melhor esse processo. A oficina foi ministrada por Geruza Zelnys e Educardo Guimarães, durante a programação do INSPIRA “Ações para uma vida saudável”. Gerusa é escritora, poeta, escafandrista, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP – Universidade de São Paulo, criadora desse método, trabalhando com a escrita curativa desde 2013.
A escritora conta que sempre trabalhou com literatura, vivenciando longos e longos processos de escrita. Foi quando descobriu em si uma escrita mais intimista, e junto com ela, uma transformação.
“Então a partir disso, como eu já era pesquisadora, eu fui fazer um pós-doutorado e fazer um estudo mais aprofundado disso, que acabou se tornando o meu curso de escrita, que é um curso de uma metodologia baseada na experiência, na minha experiência da escrita com o uso terapêutico. E aí eu criei um método onde eu tento levar através de exercícios de estímulos criativos à vivência do mesmo processo que eu vivenciei, de encontrar uma voz autoral, uma voz de escritor”.
E cada um teve uma sensação diferente, enquanto eu naveguei pelos meus sentimentos, outra participante, a Fernanda, voltou a velhas lembranças, memórias que pra ela já estavam esquecidas.
“Essa experiência buscou muito meu profundo, foi algo assim fantástico. Eu descobri um ‘eu’ que eu não sabia que existia assim, puder ver bem profundo dentro de mim. As minhas sensações, coisas do passado que eu já havia esquecido, mas foram memórias boas que voltaram à tona, e eu estou assim encantada. Percebi que escrever é importante pras emoções." Fernanda Laranjeira Gonçalves – recuperadora de crédito
Segundo Geruza Zelnys, a escrita curativa se difere de outros processos de escrita terapêutica. Ela explica que há métodos em que você trabalha com o objetivo de identificar a patologia de uma pessoa. Já na escrita curativa não. O que se trabalha é a ficção e a poesia.
“É o texto pelo texto, então eu não penso que a escrita levará a alguma coisa... a escrita é um fim nela mesma. Eu não vou trabalhar para me livrar de um trauma, mas eu vou trabalhar pra cuidar da escrita. Quando eu cuido do texto isso se reflete no meu próprio corpo, há um espelhamento entre corpo e texto. A gente escreve do modo que a gente vive. Então as falhas, os problemas da escritura são os problemas que a gente vivencia na vida.”
Para compreendermos melhor isso, ela dá o exemplo de pessoas que escrevem com muitas vírgulas, ou muitos pontos finais. Isso pode significar que seu corpo também precisa de pausas, denota respiração. Então, não é apenas o conteúdo escrito, mas a forma como foi escrito. A escritora conta que seu modo de escrita por exemplo é sem vírgulas, e essa é a expressão do seu corpo, pois é uma pessoa muito acelerada.
“O que as pessoas geralmente pensam é: Vou escrever sobre os meus sentimentos. Não. É a forma, por isso que é ligado à literatura. O modo como eu escrevo é o modo como eu vivo. Então é um foco diferente, não no sentido, mas em como você está produzindo aquele texto. As repetições que você coloca no texto, as palavras que se repetem, as vírgulas que você põe demais ou de menos, o modo como você lê o texto... Então é muito mais sobre os procedimentos da escrita, que são únicos, são particulares seus, do que o que você escreve”.
Eduardo Guimarães, professor e escritor, também ministrou a oficina e explica que é preciso um olhar mais atento ao nosso modo de se expressar. Segundo ele, a nossa escrita fala muito sobre nós.
“Emoções que geram fissuras, podem também gerar fissuras textuais. Eu acho que sentimentos diante dos quais a gente engasga, o nosso texto também pode engasgar. Seja na leitura, seja no modo como está escrito. Então eu acho que na verdade o que é interessante, é a gente lançar esse olhar sensível para o nosso texto, para o nosso corpo.”
“A gente tende a ter algumas palavras que se chamam biografemas, elas ficam se repetindo, então eu acho que se a gente quiser ter um olhar atento pra essas palavras que a gente está usando eu acho que a gente começa a enxergar coisas sobre nós.” Eduardo Guimarães.
A escritura curativa é a tomada de consciência do seu texto como um corpo. Cada um possui sua singularidade, sua marca. Analisar isso é um processo de autoconhecimento. Geruza Zelnys fala ainda sobre a importância desse encontro com o lugar do trauma sob um outro aspecto, enxergando-o como uma potência criativa.
“Algo que te paralisa, como um trauma, uma dor, uma doença, uma morte, tudo isso que poderia te paralisar a vida, na verdade, quando a gente começa a utilizar a escrita nessa forma que eu estou colocando, escrita curativa, você vai conseguir reelaborar isso (esses traumas) criativamente, criando realidades possíveis. Ao invés de você eliminar uma parte de sua história você volta, e todas as vezes que você volta, volta para construir uma coisa nova em cima. E nisso você vai começar a lidar melhor com você, porque você não vai ter tanto medo daquele mostro. Cada vez que você se aproxima, ele vai ficando mais amigo, você vai ficando mais íntimo dessa história, e vai reconstruindo em cima dela.”
Todas essas questões foram abordadas durante a oficina. A atividade foi elaborada em grupo, sendo possível partilhar experiências e descobertas. Em cada folha, histórias únicas de vida. Palavras que expressaram alegrias, anseios, sensações. Foi possível transferir para o papel o mais íntimo do “eu”. Regredindo a traumas profundos, ressignificando medos e redescobrindo-se através da escrita.
“Eu achei muito gratificante, foi uma experiência bem nova pra mim, eu nunca tinha passado por esse tipo de experiência, foi inovadora” Angelo Gabriel dos santos – professor
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* Por Pollyana Muniz Moda, jornalista, especialista em comunicação e marketing e atualmente na assessoria de imprensa do Sesc de Birigui