Postado em 06/03/2019
Por Fábio Gomes*
Em qualquer lugar do mundo, o que e o modo como se produz, se prepara e se come comida determina e define muito sobre esse lugar e as pessoas que o compartilham. A transformação de cada elo de conexão entre pessoas, recursos naturais, plantas, animais e alimentos afeta a todos de forma sistêmica e recursiva. Por essa razão, é importante considerar que todas as formas de má nutrição são ao mesmo tempo expressões de sabotagem ao sistema alimentar e elos de perpetuação dessa sabotagem.
O consumo de comestíveis supérfluos, por exemplo, é consequência de uma sabotagem alavancada pelos fabricantes desses produtos e, ao mesmo tempo, um núcleo de distorção de todo o sistema, que começa no deslocamento da comida de verdade e segue até a destruição da agrobiodiversidade e dos sistemas ecológicos de defesa agrícola.
A compreensão de tal complexidade é fundamental; ainda mais fundamental é a ação para favorecer a comida, o comer e a vida. Para tanto, é requerido um conjunto de políticas capaz de reverter ciclos viciosos e fortalecer os virtuosos. Por um lado, as ações devem restringir o avanço de modelos de produção e consumo oligopolizados e oligopsonizados, assim como reduzir a demanda por e a oferta de produtos e práticas que comprometem a existência e a qualidade da comida, do comer e da vida. Por outro, elas devem proteger, preservar e fortalecer a conjugação de modelos que conciliem modos de produção agroecológicos, o êxodo urbano, sistemas de abastecimento mais desadensados, o cozinhar, o comer junto, o comer comida e a saúde.
A região das Américas avança na reflexão e na ação para consertar as falhas provocadas na alimentação que têm gerado obesidade e outras expressões da má nutrição que mais fazem adoecer e acabam por matar as populações, e que também fazem adoecer e/ou exterminam plantas e animais, esgotando os recursos naturais. A regulação da demanda e da oferta de produtos e práticas não recomendados tem avançado na região, enfrentando forte resistência, no entanto, de setores que operam na direção oposta.
As medidas mais custo-efetivas para regular commodities não saudáveis incluem regulação da publicidade e rotulagem; restrição de venda, abastecimento, distribuição e promoção em espaços escolares e estabelecimentos sob a gerência da administração pública; e políticas fiscais para reduzir a acessibilidade financeira. Somam-se a essas as medidas de proteção, preservação e fortalecimento de sistemas coerentes com a comida, o comer e a vida, que incluem promoção, apoio e proteção do cozinhar; políticas indutoras e facilitadoras da agroecologia, da fixação dos camponeses no campo e do êxodo urbano; ampliação e capilarização de feiras livres e outros equipamentos de abastecimento, entre outras.
Em um cenário que exige abordagens sistêmicas complexas, os países avançam por distintas portas de entrada e encontram-se em etapas distintas do ciclo de políticas que necessitam aplicar, mas reconhecem de forma cada vez mais clara que reparos artificiais não contribuem para a solução.
*Fábio Gomes é Nutricionista, Pós-Doutor em Nutrição, Estudos Alimentares e Saúde Pública pela Universidade de Nova Iorque, doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ e mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, graduado em Nutrição pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Assessor Regional de Nutrição e Atividade Física para as Américas da Organização Pan-Americana da Saúde / Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS). Ele foi um dos palestrantes do Seminário Internacional Conexão Comida. As gravações completas das mesas e conferências está disponível aqui.